O sol nascente iluminava Outeiro, mas a aldeia parecia menos viva. As ruas de pedra, normalmente cheias de sons de vida, estavam silenciosas. O vento trazia um cheiro estranho de ferro, fumo e terra remexida, lembrando a todos que a batalha tinha deixado marcas que não desapareceriam facilmente.
Tomé caminhava lentamente pelas ruas, observando o chão marcado pelas marcas da luta. Lembrava os amigos que não voltariam. O peso da vitória misturava-se à dor da perda. Parou em frente de uma casa parcialmente destruída e viu que uma família ainda chorava sobre os escombros, agarrando, com força, as mãos de quem não sobrevivera.
Maria passava de casa em casa, cuidava dos feridos e confortava os que tinham perdido familiares. As lágrimas que ela enxugava não eram só de dor, eram também de alívio. Cada habitante vivo era uma pequena vitória dentro do caos.
- Tomé… Chamou ela, e segurou na sua mão. - Temos que continuar. Precisamos reconstruir, mesmo que seja só um passo de cada vez.
- Eu sei… Respondeu ele, com a voz embargada. - Mas é tão difícil aceitar que alguns dos nossos não voltam…
Enquanto caminhava, Tomé encontrou João, sentado sobre uma pedra. Olhava para o horizonte, ainda tenso, como se esperasse que os castelhanos voltassem a qualquer instante.
- Quase todos estão vivos… pelo menos a maioria, disse João, tentando acalmar-se. - Mas o que vimos… nunca vamos esquecer.
- É isso que significa a Matança, respondeu Tomé. - Não basta vencer. É preciso pagar o preço da vitória.
As crianças, muitas delas ainda assustadas, corriam entre as casas, ajudando como podiam. Carregavam água, pequenas ferramentas e cuidavam de animais feridos. Era a primeira lição de que mesmo os mais jovens precisavam de se envolver, compreender que a vida e a aldeia dependiam da coragem de todos.
O velho Tiago, com passos lentos, percorreu a aldeia. Falava com os aldeões sobre a importância de honrar os mortos e aprender com a batalha:
- Cada um dos canhões, cada memória… é um professor silencioso, disse ele, olhando para o canhão sobre o cavalete. - Não podemos esquecer os que caíram, nem o que defendemos.
Nos dias que se seguiram, Outeiro tornou-se uma aldeia em reconstrução. As casas foram reparadas, o cansaço físico e emocional dos aldeões era evidente. O martelo do ferreiro soava mais lentamente, cada golpe fazia lembrrar a luta que travaram. As crianças aprendiam sobre coragem e responsabilidade, acompanhando adultos em pequenas tarefas vitais.
Tomé, Maria e João passaram a liderar grupos de reconstrução. Tomé coordenava as reparações na oficina e nas casas, Maria organizava mantimentos e cuidava da saúde dos feridos, e João supervisionava a vigilância dos arredores, prevenindo qualquer surpresa de novos ataques.
Na praça central, à noite, os aldeões reuniam-se ao redor de fogueiras, partilhando comida, histórias e lembranças. As conversas eram interrompidas por silêncios e emoção, lembrando que a vitória, embora conquistada, tinha um preço que todos carregariam para sempre.
- Conseguimos proteger Outeiro, disse Tiago, a voz firme mas suave. Mas nunca se esqueçam que a coragem é um fardo tão pesado, ou mais, do que a vitória. Cada um de nós tem de carregar essa recordação, para que o sacrifício dos nossos nunca seja em vão.
Enquanto o vento soprava sobre a colina da Matança, a aldeia permanecia unida, tentando transformar a dor em força, o medo em sabedoria e coragem, as perdas em memória. A vitória tinha sido alcançada, mas o verdadeiro desafio começava agora. Reconstruir, honrar e manter viva a memória da Matança.
Continua...
N.B.: Este conto tem como base a "Lenda" de Outeiro "A Matança". A narrativa e os personagens fazem parte do mundo da ficção. Qualquer semelhança com acontecimentos ou pessoas reais, não passa de mera coincidência.

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