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SOBRE O BLOGUE: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blogue, apenas vinculam os respetivos autores.

quinta-feira, 23 de junho de 2022

Verão de 1984 / Festa!

 Estamos na última semana de Agosto. Não se fala de outra coisa em Grijó: a festa.
 Os mordomos, muito compenetrados, inchados da dignidade de terem sido escolhidos democraticamente para cargo de tanta responsabilidade, andaram nos últimos dias a carpinteirar a quermesse e o recinto de venda dos bilhetes, a aprumar postes embandeirados e a engalanar de festões as ruas principais.
 As mulheres, cada qual em sua casa, embrenharam-se num labirinto de tarefas tão dispares e exigentes que me deixa estarrecido só de pensar em como podem acudir a tanto. Ele são os folares, ele são as carnes, ele são as limpezas domésticas, ele são até as remoções de esterco e estrume que durante todo o ano se acumularam nas ruas por onde a procissão há-de passar — eu sei lá o que mais é! —, tudo isto a par da rigorosa observação dos diversos momentos religiosos que a festa comporta. E tudo providenciam, a tudo acodem com gestos antigos e medidos e uma eficiência de que homem algum jamais seria capaz. 
 Admiráveis mulheres trasmontanas!
 Ao ver a azáfama de uns e outros, fico-me a cismar em como esta tradição da festa consegue ainda subsistir num tempo que vai tão avesso a tradições. Sim, eu sei que a festa teve uma função social importante em tempos idos, quando a roda do ano era um chorrilho ininterrupto de trabalhos e tribulações, e as pessoas precisavam de um momento de escape anual como de pão para a boca. Era como que uma transgressão colectiva, uma das poucas que o povo reclamava e lhe eram consentidas — mesmo assim, severamente pautada pelas cerimónias religiosas. Mas os horizontes vivenciais foram-se alterando, na peugada do desenvolvimento científico e tecnológico. A vida melhorou algum tanto. E a televisão — o grande agente transformador — invadiu o quotidiano das comunidades rurais, trazendo-lhes novas propostas de diversão que logicamente deveriam ter tornado obsoletas as ingénuas alegrias da festa anual.
 Deveriam. Mas a verdade é que não tornaram. Pelo menos de todo. É que uma argamassa muito forte e resistente à corrosão do tempo continua a dar consistência e sentido à festa: a sua componente religiosa.
 Na verdade, é em função desta que toda a restante matéria festiva se organiza. Basta dizer que em Grijó a festa abre, sábado à tarde, e encerra, segunda de manhã, com a procissão do Senhor do Calvário. Mais precisamente: o Senhor do Calvário, que passa o ano na sua capelinha erigida num morro sobranceiro à aldeia, é trazido em procissão para a igreja matriz, no sábado à tarde, e restituído à sua morada habitual, na segunda de manhã. São estes dois momentos que balizam o universo das manifestações profanas.
 De resto, as manifestações profanas não são muitas. Digamos que a mais importante é talvez o almoço de domingo, que tem lugar por essas três horas da tarde, quando os estômagos inconformados já roncam fragorosamente reclamando a sua quota parte das iguarias da cozinha. Mas quê! Uma vez mais a primazia do religioso se impõe: a missa, que já começa tarde, é solene, com pregação geralmente prolixa, e rematada com uma procissão, e antes de estas cerimónias terminarem ninguém se atreveria a sentar-se à mesa. O que, por um lado, até é vantajoso: o apetite exacerba-se e os dentes cravam-se depois com mais prazer e raiva nas carnes várias que em todos os lares, mesmo os mais modestos, o forno assou.
 Há depois, na praça pública, uma ou outra tenda: a doceira, a barraca de tiro, o vendedor de melões e, quando calha, algum bufarinheiro de calçado manhoso ou confecção barata. De toda esta chatinaria, retenho na memória de tempos idos a doceira, a quem eu comprava por quinze tostões não as cavacas nem as fatias de pão-de-ló que também vendia, mas o conteúdo dumas garrafinhas que vinha a ser uma beberagem à base de aguardente e açúcar e eu sorvia sôfrego por um tubinho de lata dobrado em ângulo obtuso, que servia sucessivamente a todos os clientes (só havia um tubo), sem melindres de higiene. Onde isso vai...
 Mas voltemos à festa de Grijó. Há a quermesse, onde está exposta toda a casta de objectos escalavrados e sem préstimo, que foram angariados pelos mordomos de porta em porta, até em aldeias vizinhas. Para a quermesse deste ano, eu próprio contribuí com uma horrenda pomba de barro com olhos do feitio dos da gente, pálpebras e tudo, que veio parar a minha casa já não sei bem como nem porquê. Os objectos recolhidos são agora sorteados através de bilhetes de rifa, que se compram defronte da quermesse, enroladinhos à mão como cigarros e depois dobrados ao meio, para que ninguém possa cocar, sem os desembrulhar primeiro, se têm prémio ou não. Esta quermesse é a tentação dos raparigos, que nela consomem as magras moedas que nas últimas semanas andaram a juntar para o dia da festa.
 E há a animação sonora: música e foguetório. No tocante a música é que houve maior evolução em relação aos cânones ancestrais. Quando eu era garoto, nas festas de aldeia havia a banda e mais nada. Vinha de longe, precedida de grande fama: Revelhe, Pevidém, São Mamede de Ribatua, Mateus.... Entrava na povoação, em formatura impecável, com o mestre muito compenetrado à frente, a tocar um passe-calle, seguida do rapazio excitado. À noite, as pessoas postavam-se em redor do coreto, escutando admirativamente a execução das partituras, e não era invulgar ouvir alguém mais entusiasta soltar um comentário irreprimível:  ‘Carválhitchas! Peis a música toca bem duma bêze!’ Ou seja: ‘Caramba! A banda toca mesmo bem!’ 
 A banda acompanhava as solenidades religiosas, balanceando-se a compasso na procissão, e à noite, no coreto, estreloiçava intrepidamente — arroz p’rò pote, arroz p’rò pote — as suas rapsódias e modinhas.
 Hoje porém o povo não se contenta com tão pouco. Vem a banda, sim senhor, e toca lá o que tem a tocar à hora que lhe é marcada. Mas, mal se cala, irrompe a voz potente dos altifalantes, debitando música folclórica e pseudofolclórica, alguma desta simplesmente detestável e não raro obscena: Quim Barreiros e uma legião de imitadores a cantar ordinarices que o povo toma por música popular e dança entusiasticamente. E — progresso dos progressos — chegada a hora, um conjunto de nome bombástico, vindo de alguma das vilas circunvizinhas, salta para cima do atrelado dum tractor e atroa os ares com o mais desalmado rock — exigência da juventude que, envolvida na poeira da praça, dança em espasmos como vê dançar na televisão. Contaminação inevitável, pois Grijó não quer ficar de fora da aldeia global a que o mundo, segundo o sábio canadiano, está reduzido.
 Talvez seja esta a fenda, cismo, por onde se hão-de insinuar os germes da destruição da festa. Talvez. Mas por ora a festa vende saúde. É certo que estouram menos foguetes do que há vinte anos, mas isso procede da crise económica generalizada, que não de ter caído em desgraça o fogo de artifício. E enquanto o povo, incluindo a mocidade, mantiver, como mantém, acesa a sua devoção ao Senhor do Calvário, estou que não há Quim Barreiros nem conjunto rock que atirem de pantanas com a festa de Grijó.
 Tudo isso é muito bonito. Mas, por muita simpatia e respeito que tenhamos pelas manifestações da cultura popular — e a festa é uma delas —, não temos vocação de martírio em grau suficientemente elevado para nos dispormos a passar a noite da festa em Grijó. Era um sacrifício demasiado penoso. É que a nossa casa, por nosso mal, fica junto da igreja, cujo largo fronteiro é o centro nevrálgico de todas as manifestações. Passarmos ali a noite de sábado para domingo equivale a ficarmos submergidos num mar de decibéis agressivos e não pregarmos olho durante toda a santa noite. 
 Mas, mais ainda do que o não poder dormir, incomoda-nos a nauseante brejeirice da música do altifalante, revezando com o mau gosto da música do conjunto, as duas coisas no máximo volume, berrando o mais que podem e fazendo com que um barulho impiedoso nos invada a casa, não deixando recanto nem esconso onde se esteja a salvo. Ah, que saudades dos tempos em que, em matéria de música, bastava a banda no coreto, que, por muito desafinada que fosse, sempre debitava meia dúzia de notas de arte. E dos tempos em que, em matéria de ruído, bastava pela meia-noite o foguetório a estralejar durante um quarto de hora. Podia-se dormir, nesses tempos abençoados. Mas mesmo em Grijó os jovens impõem a sua lei e, com o seu engodo pela música aos berros — que ou me engano muito ou há-de fazer de cada um deles um surdo precoce—, transforma a noite do arraial num tormento insuportável para ouvidos e mentes sensíveis. De forma que, dois ou três dias antes da festa, metemos as malas no carro e, ala!, batemos em profiláctica retirada para Vila Real — onde de resto também temos alguns vizinhos barulhentos, mas que, comparados com os agressivos extremos da festa de Grijó, nos parecem agora meninos de coro a cantar pianíssimo uma canção de embalar. 
 Não damos, contudo, ao demo os dias passados na aldeia. Pelo contrário, guardamo-los gratamente na memória. Porque foram dias de paz, de comunhão com a ruralidade que pulsa ainda no nosso sangue, de proximidade da natureza. Para o ano lá estaremos.  
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Uf! Chegámos ao fim. Posso descansar agora um bocadinho?

A M Pires Cabral

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