segunda-feira, 29 de maio de 2023

Olho por Olho - Na Madrugada dos Tempos – Parte 10

 A guerra é, a princípio, a esperança de que a vida nos venha a correr melhor,
a seguir, a expectativa de que corra pior aos outros,
depois, a satisfação por ela também não correr melhor aos outros, e,
mais tarde, a surpresa por ela correr pior a ambos.

Karl Kraus, Escritor austríaco
  (1874-1936)
Por: Manuel Amaro Mendonça
(colaborador do "Memórias...e outras coisas...")

Partiram ainda noite escura, em silêncio, uma extensa fila com vinte e dois elementos que marchava com dificuldade sobre a neve fofa debaixo de um ameaçador céu de chumbo. Entre as lanças empunhadas pela maioria destacavam-se os dois arcos de madeira e osso, fabricados por Alim e Beki, os nómadas adotados na aldeia. Este último e também Dogan, sobrinho-neto de Erem eram exímios atiradores e tornaram-se uma mais-valia entre os caçadores, permitindo-lhes matar ou ferir as presas, surpreendendo-as a grande distância.
À cabeça do grupo seguiam Erem e Naci. Se o primeiro seguia de cenho carregado e apreensivo, o segundo exibia um ar de satisfação feroz. Atrás seguiam os restantes, maioritariamente homens, escolhidos a dedo por Lemi que, com exceção dos estrangeiros, conhecia intimamente cada um deles a quem ensinara as artes da caça desde crianças. As quatro mulheres escolhidas eram Ezgi e Eda, que já tinham revelado a sua mestria com a funda no primeiro ataque e duas outras estrangeiras, empunhando lanças e que quase só se distinguiam dos homens por não terem barba. Zia não acompanhou o grupo, para desilusão desta; o chefe convenceu-a a ficar com Nehir e Asil, porque decidira que desta vez não arriscaria que toda a governação do clã se perdesse de uma vez só.
A luz da manhã já iluminava, tristonha, os montes de cristas nevadas e a paisagem ondulante de vegetação rasteira coberta por um manto branco. Esta região distinguia-se dos planaltos onde o clã vivia, era agreste, com pouquíssimas árvores e cortada por profundas brechas ou montes desproporcionais. Os deuses deviam estar furiosos quando fizeram aquela parte do mundo e via-se que era um terreno de exílio para uma espécie que se refugiava, a terra que ninguém queria.
Num autêntico “déjà-vu”, o grupo reuniu-se no promontório que permitia uma ampla vista da entrada da gruta, mas que estava separado desta por uma funda garganta. Aquele era um bom ponto de observação, conseguiam ver, não só o seu objetivo, como uma grande distância em redor… o local ideal para uma sentinela. As pegadas recentes na neve fofa testemunhavam que houve atividade ali nas últimas horas. Havia a forte possibilidade de terem sido avistados.
Erem observou atentamente todos os pormenores, enquanto lamentava não ter trazido Lemi, o seu indiscutível estratega. Ao fim de alguns segundos fez um gesto aos outros e todos se afastaram da crista para uma zona onde não seriam vistos pelo inimigo.
O chefe ficou em silêncio fitando o chão, formados em círculo à sua volta, os outros respeitavam a introspeção. Depois ele ergueu os olhos para cada um deles, fixando-se nos dois archeiros.
— Acham que conseguem atingir a entrada da gruta desde este promontório? — Atirou Erem repentinamente. — Derrubar quem apareça à entrada?
Dogan, um dos mais jovens do grupo, fez uma expressão de incerteza, mas Beki, o mais velho dos filhos do nómada Alim, acenou com a cabeça afirmativamente.
— Então está decidido. — O chefe concluiu. — Desta vez não seremos surpreendidos antes de estarmos todos no planalto de entrada. Eles manterão a vigilância, — explicou dirigindo-se aos outros — e se algum daqueles monstros sair, será morto ou pelo menos afugentado. Vamos escalar a parede até ao planalto e ninguém — aqui olhou conspicuamente para Naci —, repito, ninguém, ataca sem todos terminarem a subida. Subiremos em linhas de quatro, os mais novos e fortes à frente e ajudam os outros assim que chegarem. — Tomando a dianteira, ordenou: — Agora vamos!
Os dois archeiros tomaram posição, o olhar fixo na entrada da gruta, sem descurar os companheiros que desciam a garganta.
Uma águia piou no alto, na sua busca por alguma presa que se aventurasse fora da toca em cima da neve fofa. Tirando isso, não se avistava vivalma, o que começava a ser estranho. Era dia claro e aparentemente ninguém saía da gruta… esperavam que, pelo menos os caçadores, já estivessem fora há muito.
Foram estes pensamentos que fizeram Beki olhar pelas redondezas dos seus companheiros e detetar o pequeno grupo de homens-macaco que, no fundo da garganta, saía de uma fenda na parede e avançava na direção deles. Gritou o alarme e começou a enviar dardos na direção dos inimigos. A primeira flecha cravou-se no tronco de um e a segunda no pescoço de outro, os restantes inimigos, porém, saíram da vista do atirador refugiando-se na parede contrária. Uma última flecha partiu-se contra as pedras; Dogan conseguira finalmente vencer as tremuras e atirar o primeiro dardo.
Naci, Fikri, Altan e dois dos estrangeiros, à cabeça dos restantes, correram na direção indicada por Beki. Gritos de guerra e dor ecoavam no fundo da garganta fora da vista dos aflitos archeiros. Por fim, à medida que o restolho da refrega reduzia, viram um dos mais jovens estrangeiros a fugir perseguido de perto por um homem-macaco. Beki armou o arco e preparava-se para desfechar sobre o inimigo quando se apercebeu que Fikri corria logo a seguir. O corpulento inimigo estava quase a deitar as mãos ao franzino rapaz quando a lança do filho de Lemi cravou-se com um baque surdo nas costas dele, derrubando-o. O fugitivo parou imediatamente de correr e, fazendo jus à sede vingativa que os movia a todos, saltou sobre o homem-macaco tombado e começou a espetá-lo furiosamente com a faca de sílex. Era o filho de uma das mulheres assassinadas no assalto à aldeia. Fikri arrancou o seu dardo das costas do inimigo e ergueu-o num gesto de triunfo para os dois archeiros. Lentamente, os atacantes reuniram-se no fundo da garganta, havia feridos, mas não parecia faltar ninguém.
Não havia agora dúvidas de que haviam sido avistados e os homens-macaco já estavam à espera do ataque. Deixaram aqueles fora da gruta para os apanhar pelas costas enquanto subiam e decerto haveria mais surpresas pela frente.
Rapidamente e sem hesitação, todos se lançaram na escalada. Os dois archeiros mantinham-se vigilantes entre a observação atenta da entrada da gruta e a preocupação dos companheiros que subiam com esforço. Conseguiram perceber que alguém espreitava rapidamente da abertura escura e avisaram por gestos os primeiros que concluíram a subida, invariavelmente Naci e Fikri.
Enquanto os archeiros concentravam a sua atenção nos companheiros, um restolho fê-los voltar-se de supetão; um homem-macaco erguia uma temível clava sobre Dogan. Tinha a cabeça e o rosto coberto de sangue pingando profusamente da haste partida de uma flecha cravada logo abaixo do ombro esquerdo. Beki, que nunca deixara de ter um dardo a postos no seu arco, lançou-o imediatamente sobre o inimigo, mas demasiado tarde para evitar que este descarregasse a moca em cima do companheiro. O infeliz Dogan ainda tentou esquivar-se da pancada, mas esta atingiu-o com violência sobre a clavícula e o braço com que se protegeu. O arco que empunhava desfez-se em pedaços quando o jovem rolou sobre ele.
Tendo uma das ameaças eliminada, o homem-macaco, agora com nova flecha cravada no pescoço, soltou um grunhido inumano ao mesmo tempo que levantava a clava para atacar o outro. Beki recebeu-o atabalhoadamente com novo dardo no peito, mas não parou o ataque. Dogan, tombado aos pés do inimigo e com um braço sem ação, apanhou uma pedra e feriu-o várias vezes na parte desprotegida das pernas entre as botas de pele e a túnica de couro que envergava. Surpreendido pela dor inesperada, o formidável adversário saltou para o lado, pronto para lhe esmagar a cabeça, mas estes segundos foram preciosos para Beki empunhar a sua faca de cobre e saltar sobre ele. Sem espaço para manobrar a clava e sem poder fazer mais do que tentar esmagar o inimigo que se colava a ele, o homem-macaco caiu e debateu-se, enquanto Beki lhe cravava sucessivamente a adaga até aos copos, procurando atingir o coração. Dogan conseguiu arrastar-se até junto dos contendores e rasgou-lhe a garganta com a faca de sílex. Só assim terminou o combate.
Beki ergueu-se ofegante e ajudou o companheiro, que se retorcia com dores, a sentar-se mais comodamente. Aparentava ter o úmero e a clavícula partidos e fora um esforço sobre-humano para se arrastar e ajudá-lo. Devia-lhe a vida com toda a certeza. Depois olhou para os restantes companheiros que terminavam a escalada, ignorando a luta de vida ou morte que acabara de ser travada.
No patamar de acesso à gruta, os atacantes ajudaram os últimos a terminar a escalada e começaram a formar uma linha de cada lado da entrada. Começavam a tombar suavemente diáfanos flocos que pousavam sobre a neve calcada e suja do chão. Não se escutava qualquer ruído do interior escuro e intimidante. Um dos estrangeiros, ansioso por mostrar-se mais valente que os restantes ou incapaz de suportar a expetativa, avançou para a goela negra, tendo sido presenteado com uma lança no peito que o projetou para fora. Tombou numa posição pouco natural, com o peso do dardo a curvar-lhe o corpo para trás, os olhos esbugalhados perderam o brilho rapidamente… uma mancha rubra espalhou-se imediatamente sobre o tapete alvo.
Desta vez, Naci tivera o bom senso de não se precipitar, mas mais dois corajosos jovens se lançaram para a abertura hiante para serem confrontados de imediato com um homem-macaco que derrubou ambos com possantes pancadas da clava que empunhava. Por estarem demasiado próximos, nenhum deles teve tempo de usar a lança que empunhava. Este foi o sinal, porém, para Erem gritar para o resto do grupo se lançar decididamente no ataque. Uns ainda com as lanças, outros, optando por armas mais manejáveis em lugares estreitos, largaram-nas e empunharam os machados de sílex que traziam à cintura.
Chocados com a diferença entre a luz exterior e a penumbra da gruta, os primeiros invasores tiveram de combater por instinto com os quatro inimigos que os receberam com clavas e lanças. A vaga inicial quase foi travada, não fosse Naci espetar a sua lança, por cima do ombro de um dos companheiros, diretamente no pescoço de um dos defensores. Imitando a técnica, os seus companheiros eliminaram rapidamente a resistência e passaram por cima de mortos e feridos. Com os machados e as facas, acabaram violenta e sangrentamente com quantos inimigos tombados depararam. A presença dos amigos feridos e mortos só serviram para aumentar o ódio e raiva que sentiam. Ninguém ficou para os ajudar, todos respingados e inebriados de sangue, como demónios ululantes, atravessaram a estreita entrada e desembocaram numa ampla gruta fracamente iluminada pela fogueira que ardia sozinha no centro. As silhuetas de vários homens-macaco movimentavam-se a esconder-se nas sombras ou nas cavidades em redor.
Soltando gritos horrendos, a horda demoníaca lançou-se como um rio que desagua num lago de águas calmas. Para ambos os lados partiram homens e mulheres com os machados ensanguentados em punho. Atacaram todas as figuras difusas que lhes apareciam pela frente. Fosse a fugir, fosse a defender-se, todos tombavam perante aquela maré de fúria homicida. Gritos apavorados de mulheres e crianças, misturavam-se com urros masculinos de dor ou raiva. Palavras desconhecidas misturavam-se com maldições, todas ecoando na alta abóbada da gruta.
Ferido num braço por uma lança e a sangrar da cabeça por uma pancada de uma clava, para Erem tudo não passava de uma névoa rosada, enquanto se desviava dos ataques e devolvia pancadas selvagens com o seu machado. O corpo e os ferimentos doíam-lhe e começavam a faltar-lhe as forças para manejar a arma.
Gradualmente, a gritaria converteu-se em murmúrios e gemidos, alguns calados violentamente ao som de pancadas surdas.
Sem inimigos à vista, Erem deixou-se sentar pesadamente, arrastando as costas pela parede áspera. O chão de pedra estava morno e viscoso. Passou a mão pela cara para limpar os olhos, mas ficou a ver ainda pior. Deixou cair a cabeça para a frente e fechou os olhos, esgotado.
— Pai? — A voz de Naci sobressaltou-o. — Estás bem?
Levantou o rosto e sentiu a água gelada que lhe despejavam na cara. Esfregou os olhos e estava novamente na penumbra avermelhada da caverna. O cheiro fétido a sangue e carne era indescritível e misturava-se com o fedor de cabelos e pele queimados. Por onde os seus olhos vagueavam só via corpos caídos de bruços ou dorsal, em posições pouco naturais… quase só mulheres e crianças. Havia mesmo bebés tombados sem vida ao lado das progenitoras…
Suspirou e escondeu o rosto entre as mãos. O estupor tomava conta dele ao mesmo tempo que se inteirava da enormidade do que haviam feito. Sentia as forças a faltar-lhe e era de muito longe que lhe chegavam as vozes dos companheiros.
— Vencemos! — Apregoavam uns.
— Acabamos com eles todos! — Gritavam outros.
— Viva Erem, que nos trouxe a uma grande vitória! — Soltou outra voz, logo ovacionada por todos.
O chefe ergueu-se ajudado por Naci e Fikri, que se haviam colocado um de cada lado e depois olhou os seus valorosos companheiros, onde não havia um rosto incólume. Abraçou o filho e deu umas palmadas afetuosas no ombro do filho de Lemi, enquanto sorria e acenava a cabeça tristemente para os outros.
— Vamos pegar os nossos mortos e feridos e vamos embora deste lugar maldito. — Soltou Erem num quase gemido.
Foi num silêncio quase total que revistaram o espaço pejado de cadáveres em busca dos companheiros perdidos, antes de se reunirem todos no exterior. O ataque “bem-sucedido”, saldara-se em seis mortos e quatro feridos com gravidade. Na realidade, ninguém escapara sem ferimentos e a distinção era apenas se precisava de ajuda para andar ou não. Da parte dos homens-macaco, a derrota fora total; quase trinta adultos e várias crianças. Não restara nenhum vivo, os atacantes certificaram-se disso enquanto procuravam os amigos.
Havia poucos deles em condições para arrastar um corpo morto durante as várias horas que lhes levaria o regresso à aldeia, além disso, precisavam de transportar a carne seca e os cereais que encontraram por isso e após animada discussão, resolveram deixá-los. Os cadáveres dos companheiros foram alinhados numa pira feita com a lenha que os inimigos haviam armazenado e incendiada. Os corpos dos homens-macaco ficaram onde caíram, os lobos e os abutres teriam o festim assegurado por vários dias.

Manuel Amaro Mendonça
nasceu em Janeiro de 1965, na cidade de São Mamede de Infesta, concelho de Matosinhos, a "Terra de Horizonte e Mar".
É autor dos livros "Terras de Xisto e Outras Histórias" (Agosto 2015), "Lágrimas no Rio" (Abril 2016), "Daqueles Além Marão" (Abril 2017) e "Entre o Preto e o Branco" (2020), todos editados pela CreateSpace e distribuídos pela Amazon.
Foi reconhecido em quatro concursos de escrita e os seus textos já foram selecionados para duas dezenas de antologias de contos, de diversas editoras.
Outros trabalhos estão em projeto e sairão em breve. Siga as últimas novidades AQUI.

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