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SOBRE O BLOGUE: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blogue, apenas vinculam os respetivos autores.

terça-feira, 29 de novembro de 2022

Lambendo as Feridas - Na Madrugada dos Tempos – Parte 4

Por: Manuel Amaro Mendonça
(colaborador do "Memórias...e outras coisas...")

Um pecado tem sempre como consequência outro pecado.
Ben Hazzai
(Sábio rabínico do século II)

Destroçados e de cabeça baixa, entraram na aldeia arrastando os mortos e ajudando os feridos. Foram recebidos em silêncio numa primeira fase e depois com prantos e consternação de todos quantos haviam ficado de guarda às crianças, casas e bens.

Lemi, que fora um dos instigadores da vingança, estava arrasado pela morte do filho, Fuat e para Erem, se também lamentava a perda do primo, a do seu irmão Alev era impossível de suportar. Na tentativa de vingar uma morte havia agora mais duas e uma delas era o pai de cinco crianças que deixava agora a viúva sozinha.
Nos dias que se seguiram, todo o povoado tentou regressar à normalidade, considerando que, apesar do preço que pagaram, a vingança da morte de Nuri fora cumprida. Os grupos de caça retomaram o seu trabalho, sempre atentos à possibilidade de aparecimento de homens-macaco, enquanto outros pescavam e outros ainda cuidavam das magras colheitas ou do curtir das peles. O gado, composto basicamente por cabras-selvagens criadas desde pequenas nas imediações da aldeia, eram responsabilidades das mulheres e dos mais jovens, assim como o cuidar das colheitas e a busca e colheita dos frutos silvestres. Já tinham tentado criar jovens javalis, mas eles arranjavam sempre uma forma de fugir, por mais cercas, ou cordas, que fizessem ou com que os amarrassem.
A organização das tarefas, era uma herança do clã do Rio Brilhante, que devia o sucesso e crescimento ao facto de ter dado os primeiros passos no sedentarismo há algumas gerações atrás. Após comprovarem que se podiam semear e colher algumas das plantas comestíveis, foi fácil que alguns dos membros do clã não quisessem deslocar-se em migração, preferindo ficar junto das suas colheitas que eram um complemento para a caça e a pesca. Após se fixarem, já podiam construir paredes de pedras empilhadas em volta das tendas de paus e peles, para se protegerem do frio do inverno e pouco tempo depois já abdicavam da tenda, erguendo simplesmente os muros circulares e utilizando as peles apenas para o teto. A lama servia para tapar os espaços entre as pedras para reduzir a entrada do frio e consolidar as paredes. A estabilidade conduziu à conclusão de que não podiam andar todos a caçar ou a pescar e começaram a criar-se grupos especializados nas tarefas que mais gostavam de fazer, ou que aprenderam desde crianças.
Quando estavam no vale do lago salgado, eram visitados ocasionalmente por grupos de nómadas com quem trocavam peles ou mesmo caça. Acabava sempre por ficar um ou dois entre eles, porque estava ferido ou doente, ou simplesmente porque estava cansado de vaguear, por vezes até famílias inteiras. Ali, nas terras altas, não tinham visto ainda nenhum outro grupo de humanos. Estavam entregues a si próprios, eram pioneiros em desbravar as terras que o degelo deixara para eles.
Nos primeiros anos, a dureza do clima mais agreste, e as terras duras e pouco generosas causaram mal-estar no clã do Leão da Montanha. Havia críticas sussurradas e lamentos por seguirem o jovem chefe para uma tão grande provação, principalmente da parte dos irmãos de Zia que começavam a perguntar-se se não teria sido melhor ficar com Birol, ao invés de Erem. Os verões eram frios, em comparação ao vale e os invernos rigorosos, embora, talvez fruto do hábito, parecessem mais amenos a cada ano que passava. As sementes não germinavam com facilidade e a terra era dura e difícil de cavar, no entanto, a caça era abundante e um rio próximo tinha muita fartura de peixe, embora não pudessem viver demasiado próximo dele devido aos ursos. Foi só ao terceiro ano que se decidiram sobre o local onde deveriam fixar-se, abandonar as tendas e construir as suas casas de pedra; um planalto batido pelo sol e protegido dos ventos do Norte por um monte mais alto.
Nehir fora a segunda criança a nascer da união de Erem e Zia. A menina rebelde, tornou-se uma adolescente indómita e depois uma mulher laboriosa e independente. Não deixava que nenhum homem se aproximasse demasiado e, os que se atreviam a fazê-lo, saíam derrotados pela argúcia e às vezes até pela força. Forte para uma mulher; herdara a estatura do pai e a determinação da mãe. Quando faziam parte do Clã do Rio Brilhante, cedo se interessou pelo trabalho do xamã e, quem a queria encontrar, fá-lo-ia junto de Gokai e das suas duas esposas. Com eles adquiriu o conhecimento das ervas, da forma de tratar as feridas e mesmo dos encantamentos necessários para curar algumas maleitas. Agora, porém, sentia-se sozinha e impotente perante a quantidade dos feridos e gravidade dos ferimentos.
Erem emitiu um ronco, para evitar um grito, quando Nehir cauterizou o corte sob a vista direita, que parecia querer infetar, recorrendo a um graveto de oliveira em brasa. As nódoas negras quase tinham desaparecido e as dores no corpo já eram coisa do passado.
— Como está Tekin? — Perguntou ele para se distrair da dor.
— Está muito mal. — Informou Nehir mantendo a atenção enquanto tirava os vestígios de cinza do ferimento do pai. — Tem vários ossos partidos e respira com muita dificuldade. — Ela suspirou. — Mas acho que podemos ter outros casos mais complicados.
— Quais? — Erem olhou-a alarmado.
— Há vários bastante feridos por lanças e pedradas, mas são ferimentos pouco profundos, as lanças deles não são de ponta de sílex como as nossas, apenas paus afiados ao fogo. Não é o caso de Su e Ediz; ela tem um buraco profundo nas costas que lhe dificulta a respiração e ele outro na barriga. — A mulher torceu o nariz revelando pouca esperança. — Fiz-lhes pachos com folha cheirosa, folha doce e folha amarga após queimar o ferimento e fiz a reza a Da matter[1], mas têm muitas dores… receio por eles. Os deuses terão de usar o seu poder.
Ele coçou a barba, pensativo, Ediz era seu cunhado, irmão de Zia e Su, mulher de Naci, sua nora, o primeiro jovem e sem filhos, mas a segunda deixava duas crianças. Mais preocupações para o chefe; além de familiares próximos e estimados, eram braços fortes e decididos que deixavam órfãos.
Erem saiu da tenda de Nehir preocupado, (como ela era uma mulher solteira, não construíra uma casa) foi visitar Su e Ediz, para tirar ele próprio as dúvidas. Regressou muito pessimista, temendo que a sua filha e curandeira/xamã podia ter razão.
Sentado na pedra que mandara por para o efeito na entrada da sua choça, ficou a observar uma das noras de Lemi ajoelhada em frente ao totem que ergueram quando decidiram fixar-se naquele local. O grande tronco de madeira com mais de três metros fora aliviado da sua casca e da maior parte dos ramos, deixando-lhe apenas dois laterais com curvas em ângulo reto, dando-lhe uma aparência antropomórfica. Nos seus “braços”, iam sendo pendurados presas, cornos, cascos ou mesmo peles, em agradecimento à intervenção divina na caçada bem-sucedida. Aos pés ou pendurados no ídolo havia bocados de cabelo, lanças, facas ou outros objetos que lembravam aqueles que já partiram… estava lá o chapéu de pele do seu filho Nuri.
Se não tivessem cuidado, todos eles não passariam de recordações naquele totem… até que não houvesse mais ninguém para os lembrar.
Precisavam mesmo de ajuda divina; teria de implorar a Da Mater pela salvação daqueles dois e que o ajudasse a fazer o melhor pelo seu povo. Teria de fazer um sacrifício para manter os maus Ansu[2] afastados e que apenas os bons pairassem sobre a aldeia. Há alguns invernos, os deuses marcaram o lugar onde deveriam ser adorados com um raio que destruiu um imenso pinheiro. Ali se ergueram os troncos gravados por Asil representando Swol[3] e Mensis[4] com a madeira do pinheiro destruído e todo o povo gostou do santuário… talvez estivesse na altura de fazer mais alguma coisa para agradar aos deuses.
Zia saiu do interior da casa e sentou-se, sorridente, ao lado dele. Erem retribuiu o sorriso, apreciando aquele rosto redondo e moreno adornado com dois carvões reluzentes, que acompanhava a sua vida há tantos anos. Apesar dos cabelos que começavam a branquear, mantinha-se em boa forma e não se deixara engordar, mesmo após seis partos bem-sucedidos e um nado-morto. Logo que as dores do nascimento a abandonavam, começava a pastorear as cabras, enquanto a criança precisava de mais acompanhamento e logo retornava às tarefas de caçadora, calcorreando os montes e equiparando-se, ou mesmo suplantando, os homens em resistência e tenacidade. As suas funções de oráculo não a prejudicavam, antes a complementavam, fazendo previsões se haveria um bom dia de caça ou não. Os quase vinte e oito anos não pesavam no seu físico, porque não se deixava abater e engordar após o segundo parto, como grande parte das mulheres.
— Que fazes aqui? — Perguntou Zia sem deixar de sorrir. — Não vais entrar?
— Estava aqui a matutar no que fazer a seguir… — Erem desviou o olhar da companheira para o chão. — Por minha culpa, perdemos dois dos nossos e estamos em riscos de perder mais dois, numa vingança estúpida e impensada.
— Não foste tu quem nos levou. — Ela pegou o rosto dele entre as mãos para lhe ver os olhos. — Todos nós queríamos ir. Fomos todos inconscientes, não nos preparamos, achávamos que Tarhun[5] estaria do nosso lado pela justeza da nossa causa. Um só dos Seus raios seria suficiente para dizimar os homens-macaco, mas tal não aconteceu. Agora resta-nos lamber as feridas e esperar melhores dias.
— Os deuses estão ocupados nas Suas vidas — ele exibiu um sorriso desalentado —… os homens estão entregues a si próprios, implorando a Sua atenção, desde os tempos de Manu[6]. Implorei a Da Mater pela salvação de Su e Ediz, esperemos que nos ouça.
— Consultei as pedras e os ossos. — Zia disse, mas também baixou os olhos. — No caso dele, havia apenas uma linha curta; o fim deve estar breve, mas para ela os resultados eram confusos, não consegui uma certeza.
— Se Su morrer, Naci vai ficar pior do que o costume — previu o chefe —… se ele já é revoltado e impaciente, se ficar sem ela…
— Ontem falei com Nehir, naquela tenda gelada onde vive e ela também acha que Ediz é o caso pior, Su terá mais hipóteses. — Informou a companheira.
— Não sei porque é que ela quer estar ali. — Ele encolheu os ombros. — Connosco, ficaria melhor.
— Lá pode receber e estar com quem quiser… — ela exibiu um sorriso conhecedor.
— O quê? — Erem entusiasmou-se. — Já arranjou finalmente um homem? Vamos ter mais netos? Algum dos teus sobrinhos?
— Não… — Zia retorceu os lábios a olhar para o companheiro —… é mais… Enis, uma das filhas de Lemi.
— Que raio… — Ele coçou a cabeça perturbado.
— Por isso é que ela não quer estar aqui. Teme que não aproves.
— Ela já não tem idade para esses impulsos, essas preferências normalmente passam quando crescem! — O chefe sentia-se desalentado. — Não teremos novos netos, então…
— Sim, mas não te preocupes, o que interessa é que ela esteja feliz. — Afirmou ela sorridente, erguendo-se e puxando-lhe pela mão. — Anda, pode ser que se arranje outro filho em vez de um neto.

[1] Deusa-mãe
[2] Espíritos
[3] Sol
[4] Lua
[5] Deus do trovão, da caça e da guerra
[6] O primeiro humano

Manuel Amaro Mendonça
nasceu em Janeiro de 1965, na cidade de São Mamede de Infesta, concelho de Matosinhos, a "Terra de Horizonte e Mar".
É autor dos livros "Terras de Xisto e Outras Histórias" (Agosto 2015), "Lágrimas no Rio" (Abril 2016), "Daqueles Além Marão" (Abril 2017) e "Entre o Preto e o Branco" (2020), todos editados pela CreateSpace e distribuídos pela Amazon.
Foi reconhecido em quatro concursos de escrita e os seus textos já foram selecionados para duas dezenas de antologias de contos, de diversas editoras.
Outros trabalhos estão em projeto e sairão em breve. Siga as últimas novidades AQUI.

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