Eles não sabem nem sonham
Que o sonho comanda a vida
E que sempre que o homem sonha
O mundo pula e avança
António Gedeão (pseudónimo de Rómulo Vasco da Gama de Carvalho)
Professor e poeta português
(1906-1997)
Por: Manuel Amaro Mendonça
(colaborador do "Memórias...e outras coisas...")
Apesar do choque inicial, a maioria das pessoas achou que as cabeças dos homens-macaco seriam uma boa oferenda aos deuses e não foram por isso removidas dos postes onde foram empaladas.
O inverno avançava em passos largos e os grupos de caça já regressavam com presas cada vez mais pequenas ou mesmo de mãos vazias. A neve caía, por vezes durante dias sem interrupção e havia um manto branco mais ou menos permanente a cobrir toda a paisagem.
Os cereais começavam a reduzir drasticamente e as frutas armazenadas comeram-se ou tiveram de se deitar fora por se estragarem. Temendo a fome no clã, Erem mandou convocar aqueles cuja opinião tinha em maior conta, embora o acesso fosse livre e frequentado pela maior parte dos aldeões. Em volta de uma enorme fogueira que derretera toda a neve e gelo em volta, os enregelados vizinhos foram-se acumulando, mantendo-se encostados para conservar ao máximo o calor corporal.
Na sua voz grave, Erem expôs o problema que todos tinham conhecimento; corriam o risco de não ter alimentos suficientes para sobreviver à época dos grandes frios e necessitavam de arranjar soluções.
Depois de várias vozes que se limitaram a apresentar queixas ou sublinhar as dificuldades já sentidas, pediu a palavra Alim, o mais velho dos nómadas, cujo grupo estava já completamente integrado na comunidade.
Ele começou por abordar o frio que todos sentiam nestas reuniões, que, aliás, deveriam repetir-se mais vezes sobre outros assuntos. Sugeriu que fosse construído um edifício maior onde coubessem de forma confortável os membros de um conselho que debateria o futuro do clã. Necessitariam de menos lenha para se aquecerem e os problemas das pessoas teriam um lugar onde serem apresentados para se obterem soluções.
Imediatamente se levantaram um conjunto de vozes discordantes que alegavam a incapacidade de se construir um espaço grande o suficiente, duvidavam da necessidade do mesmo ou até se queixavam do tempo que levaria a construir. No entanto, havia muitos rostos sorridentes que aprovavam a ideia.
Erem foi um dos que se interessou e pediu silêncio, fazendo sinal ao outro para continuar.
Alim explicou que era o que se fazia em muitas das localidades por onde passaram e que a construção de espaços maiores do que as pequenas casas redondas que erguiam não era muito complicada. O seu filho Beki ajudara por várias vezes nessas construções que juntavam madeira encaixadas e pedras, tudo unido por lamas endurecidas. Estava certo de que conseguiriam construir algo suficientemente digno recorrendo a esses conhecimentos. O tempo para o fazer; não há caça, nem agricultura, nem frutas, de certeza que se arranjará sempre uns pares de mãos para se avançar com a obra. A necessidade da mesma era outra questão: todos sentiram uma vez ou outra dificuldade ou um assunto que deveria ser trazido ao conhecimento da comunidade e que por vezes até nem o fazia porque chovia, ou estava muito frio, ou até muito calor.
Lemi, Erem e Zia conferenciaram entre eles em voz baixa enquanto Fikri ridicularizava a ideia, secundado por alguns outros. Naci, que chegara tarde e indolentemente, aproveitou o desdém do amigo para afirmar que quem decidia o que devia ou não ser apresentado ao clã era o seu chefe e não um estrangeiro qualquer.
Uma vez mais, Erem ergueu as mãos a pedir silêncio. Reafirmou que a ideia tinha interesse e iria ser discutida com ele mais em pormenor… via muitas possibilidades para essas “casas grandes” nomeadamente para um melhor armazenamento dos víveres do clã, em vez de estarem distribuídos por várias pequenas casas. O problema que os trouxe ali, no entanto, continuava sem sugestões de resolução, mas também nesse tema Alim alegava ter algo a sugerir e o chefe fez-lhe sinal para que continuasse, enquanto Lemi exigia silêncio às vozes discordantes.
A sugestão do homem ia no sentido de se iniciar uma atividade por demais conhecida por ele e o seu grupo: o comércio; tinham pouca comida, mas havia peles e ossos trabalhados, alguns tecidos, ou mesmo um, ou outro animal. Visitariam as aldeias em redor e fariam trocas por outros itens mais vantajosos e comida. Asil poderia dar algumas das estatuetas que esculpia, Enis os tecidos que produzia, até mesmo algumas das mezinhas de Nehir se podiam tocar.
Uma vez mais, Naci fez-se ouvir acima dos outros alegando que ninguém no seu juízo perfeito trocaria comida em pleno inverno, o outro, porém, tinha a resposta na ponta da língua; lembrou terem peles curtidas e arranjadas e que haveria quem trocasse animais vivos por elas, que consomem muito tempo e necessitam habilidade para ficar prontas.
Mas Alim tinha mais uma surpresa; aproveitando ter deixado o seu oponente sem resposta, informou ter um presente para o chefe da tribo, enquanto se aproximava e ofertava Erem com um objeto comprido, quase do seu tamanho, enrolado em pele.
Erem desenrolou rapidamente o objeto, revelando ser um elegante arco recurvado, totalmente diferente daqueles grosseiros que quase não utilizavam devido ao pouco alcance e força obtidos. Observou cuidadosamente a obra, perante os olhares admirados da assistência e apreciou como era composto por osso, madeira e couro endurecido, formando um elemento só mantido sob tensão por uma corda de tendão. O estrangeiro sorriu-lhe e explicou, enquanto lhe entregava uma seta, que levou muito tempo a fazer aquele trabalho, porque a cola utilizada precisava secar por muitos dias. Também a seta era habilmente trabalhada, resultando numa haste direita, lisa, com algumas penas na parte de trás e uma reluzente ponta de cobre.
A assistência abriu um caminho, sem que fosse preciso pedir, assim que o chefe em gestos lentos preparou-se para disparar a elegante arma.
Erem apreciou a tensão obtida no arco e esticou o máximo que pode, sempre pronto para ouvir o conhecido estalo que significava a destruição por esforço do utensílio. Não conseguiu, porém, que o objeto se partisse; estava já a ficar sem força para esticar muito mais quando soltou a corda e um velocíssimo projétil voou com um silvo pelo espaço aberto pela comunidade, desaparecendo de vista depois das últimas casas da aldeia. Algumas crianças saíram a correr a persegui-lo, apesar dos gritos de dissuasão das mães, para que não se afastassem, pois começava a escurecer.
Um clamor de espanto e admiração ecoou por toda a assistência, enquanto falavam entusiasticamente uns com os outros. Aquela era uma arma fantástica; poderiam caçar animais de distâncias maiores, antes que eles se apercebessem nem sequer da sua presença. Entre a alegria e excitação, ninguém se apercebeu do olhar rancoroso de Naci, que abandonou a reunião logo seguido por Fikri.
As novas ideias eram bem recebidas pelo chefe do clã e pela maior parte dos seus elementos, ajudava a isso a presença de estrangeiros das outras aldeias, que começava a ser frequente, fruto da admiração pela construção do santuário. Começavam a ser encarados com alguma naturalidade os grupos que vinham ajudar na construção por um ou dois dias, trazer oferendas ou simplesmente rezar aos deuses. Alguns fixavam-se em tendas nos arredores, com autorização do chefe, embora com o aviso de que teriam de respeitar as determinações do chefe, não teriam a palavra nas reuniões do clã, nem teriam acesso à distribuição de alimentos que era feita aos doentes, velhos e órfãos. Mas mesmo assim, isso representava uma ofensa para Naci e um reduzido rol de descontentes que desprezavam os estrangeiros e os seus conhecimentos.
As sugestões de comércio de Alim produziram o resultado necessário e poucos dias após partir com mais três homens e dois trenós carregados de bens, ele regressou com várias cabras, ovelhas e cereal. Ficou muito feliz ao deparar com a construção de um grande edifício a decorrer no extremo do casario. O progresso chegara a Barinak, que quer dizer santuário, o nome pelo qual começava a ser conhecida a aldeia nas redondezas.
O inverno estava no seu pico. A neve depositava-se sobre neve tornando as deslocações difíceis, alguns dos estrangeiros que visitavam o santuário, procuravam Asil pelas suas estatuetas em madeira que trocavam por objetos decorativos e até já havia encomendas para objetos de maior tamanho que seriam pagos com algumas cabras ou mesmo meio javali. Alguns queixavam-se de serem atacados e roubados no caminho para Barinak, outros diziam ter conhecimento da morte de um ou outro “peregrino”. Além de penosas, as viagens tornavam-se perigosas.
O Clã do Leão das Montanhas florescia em pleno inverno, quando a maioria apenas sobrevivia, mas os velhos inimigos não dormem. Uma noite, envolvido na escuridão, um estranho bando invadiu a aldeia e matou dois dos estrangeiros que residiam nos arredores, feriu com gravidade uma mulher do clã e roubaram toda a carne pendurada a secar. Entraram numa das casas onde estava armazenado cereal e levaram o que puderam, espalhando e espezinhando o restante pelo chão. Os homens-macaco haviam chegado.
Manuel Amaro Mendonça nasceu em Janeiro de 1965, na cidade de São Mamede de Infesta, concelho de Matosinhos, a "Terra de Horizonte e Mar".
É autor dos livros "Terras de Xisto e Outras Histórias" (Agosto 2015), "Lágrimas no Rio" (Abril 2016), "Daqueles Além Marão" (Abril 2017) e "Entre o Preto e o Branco" (2020), todos editados pela CreateSpace e distribuídos pela Amazon.
Foi reconhecido em quatro concursos de escrita e os seus textos já foram selecionados para duas dezenas de antologias de contos, de diversas editoras.
Outros trabalhos estão em projeto e sairão em breve. Siga as últimas novidades AQUI.
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