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SOBRE O BLOGUE: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blogue, apenas vinculam os respetivos autores.

quinta-feira, 29 de dezembro de 2022

Os Deuses e os Homens - Na Madrugada dos Tempos – Parte 5

Por: Manuel Amaro Mendonça
(colaborador do "Memórias...e outras coisas...") 

Já não adianta nada dizer que matar em nome de Deus é fazer de Deus um assassino. Para os que matam em nome de Deus, Deus é o Pai poderoso que juntou antes a lenha para o auto-de-fé e agora prepara e coloca a bomba.

José Saramago
Escritor e prémio nobel português
(1922-2010)

No dia seguinte, o ar estava espesso e saturado por uma névoa esbranquiçada, enquanto flocos de neve esvoaçavam, rebeldes, rebrilhando ao sol encoberto.
Erem mandou reunir toda a gente frente à sua choça no largo onde faziam a fogueira em volta da qual se reuniam muitas noites. Usava o capote feito com a pele e a cabeça de um leão das montanhas e o fio de couro com uma pedra reluzente apanhada no rio de onde eram originários; os símbolos do poder nele investido.  Estava de mão dada com Zia, que usava o cocar de penas de corvo e pomba, assinalando o seu estatuto de oráculo. O casal e a filha Zehir, ocupavam os lugares mais influentes no clã e eram respeitados por todos, mesmo por aqueles que por vezes discordavam das suas decisões.
Ele olhou tristemente para todos os seus amigos e familiares, a maior parte deles ostentando as marcas do combate recente e levou as duas mãos ao peito, abrindo-as depois sobre a audiência, no gesto comum de saudação a todos os presentes.
— Filhos, irmãos e primos. — Começou com a voz grave que fazia todos pararem e deitar atenção. — A vida não tem sido fácil para o nosso clã. Sozinhos nestas planícies, progredimos com muitas dificuldades pedindo o favor dos deuses.
Vários entre a audiência acenaram em concordância uns para os outros.
— Perdemos entes queridos para as doenças e para os ataques, — continuou —, mas se Welnos[1] nos tem levado uns, Da Matter[2] abençoa-nos com novos rebentos assegurando sangue novo e força que serão o aconchego daqueles que conhecerem a velhice.
Alguns homens e mulheres mais jovens soltaram expressões de júbilo e grunhidos enquanto erguiam os punhos fechados em demonstração de força.
— Há, porém, uma grande sombra negra sobre nós. — Erem baixou os olhos e os braços exibindo desalento. — Os homens-macaco estão a ser uma grande provação para o nosso povo. Não só nos roubam muitas vezes a carne necessária para a nossa sobrevivência, também mataram o meu amado filho Nuri, vosso primo, sobrinho, irmão… e agora levaram-nos Fuat e Alev, além de deixarem vários de nós incapazes de trabalhar para si ou para os outros.
Havia agora vozes iradas e gritos insultuosos contra os homens-macaco.
— Não me atrevo, neste momento, — o chefe continuava com as mãos abertas numa súplica —, a pedir-vos para arriscar as vossas vidas e as dos que nos são queridos noutro ataque. Não temos condições, há demasiados feridos e penso que os deuses estão distraídos dos seus filhos.
A audiência silenciou-se em espanto com a revelação.
— Temos de fazer alguma coisa para obter os favores dos deuses. Algo que eles vejam dos céus e se lembrem de nós e do quanto precisamos do seu auxílio. — Ele apontou na direção do improvisado templo presidido pelas representações divinas. — Não chega uma simples cova no local que eles escolheram com o fogo do céu. Temos de lhes mostrar os sacrifícios que fazemos! Precisamos que aqueles que foram para junto dos deuses nos protejam a todos e não apenas aos familiares diretos, precisamos que intercedam pelo clã junto de Swol[3] e Mensis[4].
Todos apoiaram com urros e gritos de concordância.
— Por cada um dos nossos mortos, — continuou ele sobrepondo-se à ovação —, colocaremos uma grande pedra em volta da cova de oração.
Os gritos de apoio foram reduzindo à medida que começavam a interiorizar a enormidade da tarefa.
— Não era mais importante caçar para nos alimentarmos e vestirmos, agora que vêm os grandes frios, do que andar pelas colinas a arrastar pedras? — Interveio Naci, azedo, mas obtendo assentimentos de uma parte dos ouvintes.
— De que te adianta palmilhar os montes, ou correr atrás de animais mais velozes do que tu, se não tiveres a ajuda dos deuses para conseguires apanhar a presa? — Ripostou Zia apontando-lhe um dedo acusador. — Que és tu perante um leão, se não tiveres a proteção divina?
— Os deuses não foram de grande ajuda na gruta dos homens-macaco. — Resmungou a discordância. — A minha Su foi ferida com gravidade por aqueles monstros, assim como vários de nós e ainda não recuperou.
— Devíamos ter feito um grande sacrifício e aberto uma lebre para ver se os deuses estavam do nosso lado, antes de partirmos arrogantes da nossa força! — A mãe continuava a fustigar o filho enquanto o resto da audiência murmurava em concordância. — Ainda ontem estive na cova de orar e sacrifiquei uma cabrita pela recuperação tua mulher… vi que a madeira dos ídolos Swol e Mensis está a ficar podre e bichenta. — Perante as expressões de horror dos vizinhos, ela dirigiu-se-lhes: — É o sinal de que os deuses se ressentem do pouco caso que lhes fazemos. É tempo de fazer mais honrarias aos nossos protetores.
Este último argumento pareceu convencer a maioria e as manifestações e gritos de apoio regressaram. Naci abandonou a audiência, ressentido.
— Erem tem razão! — Apoiou Lemi, erguendo as mãos a pedir silêncio. — Temos de fazer alguma coisa para pedir o favor dos deuses…
— Agora, nos grandes frios que estão a chegar, precisamos de toda a ajuda possível na caça. — Avisou Civam, um dos irmãos de Zia. — Os animais são poucos e estão muito dispersos, temos de ir cada vez mais longe.
— Ou bem que estaremos a caçar, ou a arrastar pedras para o santuário! — Resmungou Fikri, um dos filhos de Lemi, cruzando os braços. — As duas coisas não podem ser! A terra pouca coisa dá nesta época e os rebos não se comem.
— Teremos de nos organizar ainda melhor. — Esclareceu Erem, conciliador. — Dividimo-nos em menos grupos, mas maiores, uns caçam e outros trabalham, depois trocamos. As tarefas como fazer roupas, fiar, curtir as peles, cultivar a terra, cuidar do gado, serão desempenhadas por quem tem mais jeito para elas, ou pelos que não podem caminhar; poderão trabalhar para todo o clã e receberão os alimentos pelo trabalho. Além disso, para nossa segurança, precisamos de mandar grupos maiores de caçadores. Mas não quero que lutem com os homens-macaco se eles aparecerem e irão aparecer, quando a caça reduzir…
— Deixamos que nos roubem então? — Asil abriu os braços em desalento.
— Não! Não podemos é arriscar a vida de mais dos nossos. — O chefe olhou o filho com tristeza. — A sobrevivência do nosso clã pode estar em risco se perdermos mais gente. Precisamos todos de começar a praticar a funda; viram como eles ficaram surpreendidos quando Eda e Ezgi os atacaram? Não contavam que as pedras pequenas voassem com tanta força, tão longe e tão certeiras, enquanto eles só sabem atirar calhaus à mão. — Ele sorriu para todos antes de continuar: — Penso que a solução estará aí; dispersarem em todas as direções, para eles não saberem quem perseguir e depois atacá-los por todos os lados com as fundas. Não largam as vossas lanças, porém, que são precisas para se defenderem.
Uma onda de otimismo pareceu correr a assistência. Todos falavam apressadamente e satisfeitos com a nova estratégia.
— Lembrei-me disto mesmo antes de adormecer… — continuou o chefe sorridente — logo depois de ter decidido que iriamos construir o santuário aos deuses. Bastou isso para começarmos a ser abençoados.
— Já falei com algumas das nossas mulheres para cortarem e polirem tiras de couro para as fundas e fazerem sacos para as pedras — avisou Zia — a partir de agora, ninguém deve sair sem a funda e o saco com seixos do rio.
— Uma excelente ideia. — Também Lemi estava entusiasmado. — Vamos organizar os grupos de trabalho e de caça, assim como começar imediatamente a treinar a funda.
— Mesmo aqueles que ficarão normalmente na aldeia, até as crianças, devem saber usar a arma! — Acrescentou Erem. — Se tivermos um ataque aqui, todos, com exceção dos doentes e crianças muito pequenas, terão de lutar e defender o clã. Eles podem ser como um bando de hienas das cavernas, mas nós seremos como os auroques; podemos não ter dentes tão fortes, mas, numa carga organizada espezinhamos tudo no nosso caminho.
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[1] Deus do submundo
[2] Deusa-mãe
[3] Sol
[4] Lua

Manuel Amaro Mendonça
nasceu em Janeiro de 1965, na cidade de São Mamede de Infesta, concelho de Matosinhos, a "Terra de Horizonte e Mar".
É autor dos livros "Terras de Xisto e Outras Histórias" (Agosto 2015), "Lágrimas no Rio" (Abril 2016), "Daqueles Além Marão" (Abril 2017) e "Entre o Preto e o Branco" (2020), todos editados pela CreateSpace e distribuídos pela Amazon.
Foi reconhecido em quatro concursos de escrita e os seus textos já foram selecionados para duas dezenas de antologias de contos, de diversas editoras.
Outros trabalhos estão em projeto e sairão em breve. Siga as últimas novidades AQUI.

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