terça-feira, 28 de fevereiro de 2023

A Obra Nasce - Na Madrugada dos Tempos – Parte 7

 Deus quer, o Homem sonha,
A obra nasce.
 
Fernando Pessoa
Escritor português
(1888-1935)

Por: Manuel Amaro Mendonça
(colaborador do "Memórias...e outras coisas...")

O pequeno grupo de nómadas estabeleceu-se na aldeia e gradualmente, o clima de desconfiança da maioria dos vizinhos desvaneceu-se. Claro que havia exceções, sendo as mais conhecidas Fikri e Naci, a que se juntava Cemil, um dos irmãos de Erem, que continuavam a desprezar os recém-chegados. Acreditavam que eles eram deserdados da sorte, sem casa e atacados por todos, porque não tinham o favor dos deuses e estes não iriam gostar que os acolhessem.
Naci estava principalmente sensível devido ao estado de saúde da sua mulher Su, que nunca recuperara completamente desde o ataque aos homens-macaco. Nehir lograra fechar o ferimento, mas ocasionalmente atacavam-lhe “uns calores” muitos fortes e caía desacordada com o corpo todo a ferver. Nessas alturas, a curandeira passava o dia inteiro a tentar baixar-lhe a temperatura com folhas de videira molhadas na testa e fazendo-a engolir pastas de alho e mel para combater os maus espíritos do corpo, mas após cada uma dessas crises, ela estava mais fraca que antes.
Ignorando as vozes discordantes, vários aldeãos emprestaram peles e ajudaram os nómadas a erguer quatro tendas nos limites da povoação. Como agradecimento, a noite fria em volta da fogueira foi abrilhantada por Beki e os irmãos que fizeram um pequeno espetáculo de malabarismo e dança. O ritmo era mantido pelo bater sobre peles esticadas em vimes entrançados num círculo. Todos ficaram extasiados pelas cabriolas acrobáticas dos jovens, pela percussão e pelas cantigas das mulheres. Gritos de alegria e assombro ecoaram na noite sob o límpido teto de veludo ponteado a prata antes de todos irem descansar.
Nos dias seguintes, Erem avisou Alim que se esperava deles a participação em todas as atividades da comunidade e, entre elas, a construção do santuário. Todos os que tivessem força para levantar um pote de barro cheio de água teriam de ser recrutados para as tarefas. Foi uma forma de os integrar e dar mais confiança.
Após consultar os astros e conferenciar com as outras mulheres, Zia anunciou a chegada da Noite das Sombras, que marcava o início da estação fria[1]. Nesta noite, dizia-se, os espíritos dos que já se foram podiam vaguear entre mundo das sombras e o dos vivos. Havia até quem afirmasse que, nas noites de nevoeiro, podiam-se distinguir as fogueiras do lado das sombras. Era uma noite de apreensão, pois representava o fim do período de maior abundância de caça e frutas. Os cereais estavam já moídos em farinha que se esperava que aguentasse muitos meses e as cabras e ovelhas mais velhas abatidas e a sua carne seca para consumir durante o inverno. As peles e os ossos resultantes da matança armazenaram-se para utilização futura.
Zia preparava a cerimónia que daria as boas-vindas ao inverno; a época dos dias frios em que o sol dava mostras de morrer e no coração de todos ficava o medo de que não voltasse. Em volta dos ídolos de Swol e Mensis já se erguiam quatro imponentes megálitos, dos vinte e quatro previstos. As pedras eretas foram coroadas com ramos de oliveira e colocaram-se coroas e folhas nos locais onde se previam erigir as restantes.
Desde o início da construção existiu grande polémica acerca do número de pedras a erguer no santuário e se no início pensaram apenas em dezasseis, cedo começaram as discussões se não deveriam, isso, sim, representar toda a aldeia e erguer uma pedra por cada um. Nem assim chegavam a acordo, pois, se nascesse alguma criança, teriam de erguer rapidamente outra pedra, ou retirar se morresse alguém. As discussões em redor da fogueira por vezes eram apaixonadas e se uns achavam serem precisas muitas para honrar os deuses, outros havia que não queriam arrastar mais do que as estritamente necessárias… ou mesmo nenhumas. Por fim, foi Lemi quem deu a solução para resolver o dilema; cada homem tem dez dedos nas mãos e a mulher, porque um homem não deve viver sozinho, tem outros tantos dedos. Não teriam uma pedra para cada homem e cada mulher, mas apenas duas vezes dez pedras, isso simbolizava todo o clã, o número de dedos com que produzem tudo o que necessitam para sobreviver! Após uns segundos a “digerir” a ideia, ergueu-se um clamor de aprovação de toda a audiência. Zia acalmou-os erguendo as mãos e pedindo a palavra: “Concordo com as vinte pedras.” — Informou ela erguendo a voz acima do burburinho. — “Mas acrescento quatro! Quatro pedras que definirão esse círculo de dez mais dez e defini-lo-ão da mesma forma que é marcado e definido o círculo da nossa vida. Como nascemos, crescemos, amadurecemos e morremos, também Swol assim é. Renasce ao fim de muitos dias moribundo e começa a ganhar força, a erguer-se no céu e a trazer a luz por mais tempo, trazendo o cio nos dentes e despertando a caça. Depois reina sobre o céu, inchando os dias com luz e calor, dourando as espigas e chamando as grandes manadas de auroques e bisontes. Mais tarde começa a perder a força, no período das colheitas, enquanto se aproxima do fim da terra, até ficar moribundo. Fica depois quase morto com a chegada dos grandes frios, quando as sombras ameaçam a luz e trazem a incerteza do seu renascimento… quatro pedras do ciclo da vida de Swol.”
Zia era a autoridade incontestável na marcação dos dias e todos confiavam cegamente nas suas indicações de quando era a época para deitar as sementes à terra, quando haveria mais abundância de caça ou quando seria a altura de o rio transbordar. Com os muitos conhecimentos passados de pais para filhos, ela possuía uma pele onde estavam meticulosamente atados um conjunto de ossos e paus enfileirados que era um dos seus guias. Por ali conseguia seguir as fases da lua e complementava as suas medições com a observação do tamanho das sombras projetadas por um pau espetado no chão para distinguir os solstícios e os equinócios. A mulher, munida daquele compêndio dos saberes dos antigos, era um calendário vivo.
Dos quatro grandes monólitos que começavam a demarcar o círculo, o último, erguido apenas no dia anterior e era o que representaria o início da estação dos grandes frios, a morte de Swol[2]. Estava perfeitamente alinhado com o sol do meio-dia e a sua sombra alongada tocava o ídolo correspondente ao astro-rei no centro do complexo.
Zia fazia-se acompanhar de uma Su débil e insegura, que ninguém conseguira demover de colaborar na preparação das cerimónias. A sogra obrigava-a a que estivesse sentada a entrançar as plantas para as coroas, enquanto as restantes mulheres iam recolhê-las entre as árvores da floresta. Apesar do frio que já dominava, aquele dia mostrava-se com um sol invulgarmente quente que fazia transpirar os laboriosos celebrantes.
Su, tendo terminada uma pequena coroa verde que adornou com alguns fios dourados de feno, ergueu-se e caminhou até ao local onde haviam enterrado Ediz. A terra remexida, na sombra de um dos megálitos, ainda estava húmida pela geada noturna e a rapariga baixou-se para pousar a singela homenagem no lugar onde estaria a cabeça do guerreiro. Quando se ergueu, sentiu que todo o mundo começara a correr à sua volta e as enormes pedras rodopiavam e cabriolavam ameaçando cair sobre ela. A cabeça parecia explodir com uma dor insuportável e soltou um grito lancinante antes de cair desacordada.
Quando Naci chegou com os grupos que arrastavam os grandes toros de lenha para a fogueira no santuário, já a sua jovem esposa havia partido deste mundo. Ele soltou gritos furiosos, com os olhos injetados de sangue, empurrou quem o tentou acalmar e nem mesmo a mãe conseguiu que sossegasse. Entrou como um ciclone na sua casa, fazendo fugir as mulheres que velavam e ajoelhou-se banhado em lágrimas ao lado do corpo débil e sem vida da companheira. Saiu depois a correr cegamente na direção da floresta gritando imprecações contra os deuses.
 Ficava assombrada com tal perda a celebração do primeiro dia de inverno. Alguns diziam que uma morte no recinto do santuário não era um bom presságio, mas logo outros contrapunham que ela morrera na sua casa e não ali e, mesmo que assim não fosse, não era aquele também um monumento aos mortos? Embora com muito menos ânimo, resolveram continuar com os preparativos.
Erem, que começava a ficar preocupado com Naci, mandou dois homens procurá-lo, mas eles voltaram passado algum tempo sem o encontrarem. Acrescentaram que ele era um caçador experiente e conhecia bem as florestas e, se não quisesse ser encontrado não seria. Com a noite a cair, Zia estava preocupada porque o cadáver de Su não devia ficar insepulto depois do por-do-sol. Se isso acontecesse, ela não conseguiria encontrar o caminho para as grandes pastagens nos braços da Da Matter[3]e ficaria eternamente a vaguear sobre a terra como um Ansu[4] perdido.
A sacerdotisa tomou a iniciativa e mandou que fossem buscar a infeliz para o santuário; ficaria ali sepultada, no local onde tanto se esforçara para estar. Os filhos Zilo e Nali, o rapaz com quatro e a rapariga com dois anos, assistiram tristemente ao sepultamento abraçados pelas tias. A avó cantou as orações rituais presididas pelo olhar atento do avô, após o que todos caminharam sobre a sepultura acabada de tapar.
Os últimos laivos de luz desapareceram no horizonte e a noite aparecia fria, com um ar fino e gélido e a Lua Nova impercetível no céu. Um murmúrio de espanto e receio percorreu os aldeãos assim que se aperceberam de dois pequenos grupos com seis ou sete homens e mulheres cada, composto apenas por estrangeiros que se aproximaram timidamente do santuário. Lemi, encabeçando uma improvisada segurança com vários elementos do clã, questionou as intenções dos recém-chegados que exibiram algumas oferendas compostas por coroas de flores secas, peles e mesmo cabritos. Eram oriundos de duas aldeias próximas e pretendiam assistir à cerimónia, algo a que Erem assentiu com um gesto magnânimo.
A audiência amontoou-se vocalizando um som profundo e gutural, em volta do círculo definido pelas pedras já erguidas e os locais das próximas. Archotes compridos, feitos de vimes secos e gordura animal, crepitavam e pingavam no chão onde estavam espetados, deixando a audiência numa penumbra irreal. Iluminada pela luz bruxuleante da grande fogueira, Zia orou ao Sol para que voltasse e não abandonasse os seus filhos, enquanto a noite se enchia de pequenos pontos brilhantes e a Via-Láctea impressionava como um imenso rasgão no céu. A percussão nas peles esticadas sobre as coroas de vimes fazia tremer o peito e aumentava o temor e o sentimento de reverência pelos deuses.
Com maestria, a sacerdotisa espetou a faca de sílex no pescoço de uma pequena cabra e sangrou-a para um recipiente de barro. Em seguida aspergiu as chamas e a assistência com o sangue obtido gritando para os céus que aquela era uma oferta dos filhos de Sol que pediam para que regressasse rápido e trouxesse o ventre cheio de caça e espigas douradas. Dois dos rapazes mais jovens aproximaram-se dela sendo marcados em ambas as faces com três dedos ensanguentados, após o que voltaram o cadáver da cabrita de patas para cima expondo o ventre para Zia. A mulher do chefe fez um corte profundo expondo as entranhas do animal, sem as cortar. Extraiu os intestinos e todos os órgãos da carcaça, distribuindo-os cuidadosamente por vários recipientes, deitando especial atenção ao coração e ao fígado, que cortou em vários pedaços, chegando mesmo a comer alguns. Ergueu-se depois, com os braços abertos ao céu, as mãos escorrendo sangue e gritou: — Swol voltará! Vem aí muito frio, chuva e neve, onde Ele parecerá moribundo e ausente, mas não esquecerá os seus filhos e regressará para nós! Swol! — Gritou por três vezes, recebendo o eco de felicidade de toda a audiência.
Com o sangue recolhido, a sacerdotisa marcou cada um dos monólitos com uma mão carmim de dedos bem abertos.
Durante toda a cerimónia, o chefe do clã não tirava os olhos da orla da floresta, sempre esperando ver regressar Naci.
Quando todos se recolhiam, Zia queria organizar buscas pelo filho, mas foi Erem quem a desencorajou. Na busca por Naci, no meio da floresta e na escuridão, arriscavam-se a perder mais alguém.
— Por muito que me custe — o chefe sentenciou com as lágrimas nos olhos —, ele é um homem feito e um dos nossos melhores caçadores e pisteiros. Sabe para onde foi e saberá encontrar o caminho de volta… se quiser voltar.
A noite para ambos foi insone; de olhos abertos e em silêncio, sempre a esperar ouvir os cães a assinalar a chegada de alguém. Acabaram por adormecer completamente esgotados para serem chamados às primeiras horas do dia. Naci havia chegado e estava no santuário.
Correram para lá; o filho de ambos, com o rosto marcado por vários pequenos cortes e equimoses, estava embrulhado numa grossa pele de urso e sentado ao lado da sepultura da mulher. Na entrada do santuário, havia duas estacas exibindo as cabeças decepadas de dois homens-macaco.

[1] Refere-se ao solstício de inverno, 20/21 de dezembro
[2] Refere-se ao solstício de inverno, 20/21 de dezembro
[3] Deusa mãe
[4] Espírito

Manuel Amaro Mendonça
nasceu em Janeiro de 1965, na cidade de São Mamede de Infesta, concelho de Matosinhos, a "Terra de Horizonte e Mar".
É autor dos livros "Terras de Xisto e Outras Histórias" (Agosto 2015), "Lágrimas no Rio" (Abril 2016), "Daqueles Além Marão" (Abril 2017) e "Entre o Preto e o Branco" (2020), todos editados pela CreateSpace e distribuídos pela Amazon.
Foi reconhecido em quatro concursos de escrita e os seus textos já foram selecionados para duas dezenas de antologias de contos, de diversas editoras.
Outros trabalhos estão em projeto e sairão em breve. Siga as últimas novidades AQUI.

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