Tânia Reis |
Há quem não ligue puto à Páscoa. Ora, mesmo para quem não é católico, ignorar a Páscoa sempre foi impossível em Trás-os-Montes. Não sei se é da Semana Santa, do cheiro a folar, ou se das pessoas que teimam em voltar à terrinha.
A Páscoa era a altura em que havia doces económicos em todo o lado, e amêndoas, que podiam ser “das boas” (quando apareceram as recheadas de chocolate) ou das foleiras, com amêndoas mesmo à séria. Havia mais gente da família, havia mais tempo. Havia um ar pesado e macilento, que emanava da Semana Santa, em que tudo era pecado. Ouvir música aos berros era motivo para levar sermão, e eram dias seguidos em que se lutava contra o tal do pecado, que parecia estar a tentar-nos de uma maneira espectacular (pecado, i.e, comer demasiado, brincar demasiado, chegar tarde a casa e não comer a sopa). Havia, até, preparativos para encher as ruas com as representações da Via Sacra. E nós íamos, vejo agora à luz de alguns anos de distância, como uma maneira de apaziguarmos os tais pecados. Havia quem se confessasse, até, por estes dias, rara excepção no ano, que permitiria caminhar imaculado no dia da Ressureição, para comungar.
Depois da Sexta-Feira Santa era sempre boa altura para barrigadas de comidas boas e que fazem mal ao colesterol. Antes, era tempo de encher os fornos de lenha, de partir ovos (e às vezes lá vinha um podre, que estragava tudo). Tirava-se o azeite para pôr ao sol, para que voltasse ao estado líquido (com o frio, para os mais distraídos, o azeite “tralha”, e não há nada que o tire dos garrafões). Faziam-se limpezas, como se fosse Primavera (houvesse ou não andorinhas).
No dia propriamente dito, ninguém podia acordar muito tarde. Era tempo de sentar à mesa com muita gente, e comer cordeiro. Era tempo de reclamar com a mãe que não se gosta de cordeiro. Era tempo de a mãe dizer que havia outra coisa no forno para nós. Era dia de missa; de roupa nova, às vezes. Era dia de benzer as casas e de beijar a cruz do Senhor. Era tempo de correr pela aldeia, para beijar a cruz mais do que uma vez - em casa dos avós, dos tios, dos primos, dos amigos. Queria-se estar presente neste ponto alto do ano, em que as portas de casa se abriam para quem quisesse. Era tempo de contar a história mítica do fulano de tal que uma vez só colocou metade da nota no envelope para o padre, prometendo completá-la no ano seguinte.
Era altura de encontrar muita gente, que jurámos que nunca mais íamos ver. Comentava-se a “sorte” com os folares nesse ano. Convidava-se para o provar. Apreciavam-se as fatiotas e a gordura alheia. Se namorico novo houvesse, e fosse à Páscoa (ou até à Pascoela), era sinal de que era para seguir até ao altar.
Eram três dias intensos. Um pouco mais. Quinta à noite já havia carros que não paravam ali todo o ano. “Venho à Páscoa”, diziam os recém-chegados. E até Domingo, comia-se, bebia-se, cozia-se a Páscoa. Ninguém ia a centros comerciais, a sessões de autógrafos, ao cinema, almoçar fora, ou com estranhos. Porque isto não fazia sentido.