segunda-feira, 27 de maio de 2013

CALDO e SOPA, em Comeres Bragançanos e Transmontanos

“E, comido o caldo verde da ceia, nunca o Tomé da Eira ia para a cama sem descer primeiro a ver o Sultão...”
in Os Meus Amores, de Trindade Coelho

As diferenças entre caldo e sopa para a maioria das pessoas não serão grandes, ou os termos são de igual significado, só variando o seu uso de terra para terra. E, no entanto, existem tanto quanto é a diferença entre entornar o caldo e molhar a sopa.
Entende-se por caldo o líquido resultante da cozedura de carnes e legumes. O caldo tem grande uso para cozer certos produtos em vez de água ou de um fundo branco e para confeccionar molhos e sopas, assim ensina o Larousse Gastronomique. Ou seja: não há sopa sem caldo. Em rigor o caldo não é um prato por si mesmo, serve de base para a elaboração de outros pratos, entre eles a sopa. Na cozinha, tecnicamente, o termo caldo significa parte líquida dos legumes, peixes e carnes, podendo ser simples ou concentrado, aromatizado ou guarnecido, servido quente ou frio.
Mal o homem dominou o fogo, logo surgiu o caldo, passados alguns séculos começou a considerado comer grosseiro e leve, a que não foram alheios os espartanos. Nos anos negros da tirania de Licurgo, os espartanos tinham no caldo negro o prato principal, uma mistura de gordura, carne, sangue e vinagre. O tirano Dionísio, o Antigo, aceitou na sua corte de Siracusa um cozinheiro de Esparta e pediu-lhe um caldo segundo a receita dos espartanos. Após lho apresentar o tirano rejeitou-o siderado pelo que viu, cheirou e provou. O cozinheiro atreveu-se a dizer-lhe que faltava àquele caldo o fundamental do tempero: a fome, a fadiga e a sede.
Os possidónios nutriam pouco apreço pelo caldo, só quando estavam doentes acediam a incorporar na sua dieta os leves, até porque “cautela e caldos de galinha nunca fizeram mal a ninguém” recorda o provérbio. Relativamente à canja o panorama é diferente, não é só destinada a debilitados, também é incluída nas ementas festivas incorporando carnes de aves, às vezes de coelho, sendo muito cobiçada a divinal canja de galinha velha repleta de ovos e dotada de espessa enxúndia. Em Contos Escolhidos, de Júlio Brandão, podemos ler: “Lá me esperava a canja, verdadeiramente divinal...”
O caldo da parida, canja, servia-se às mulheres após o parto, noutras terras esse mesmo caldo dava-se às recém-casadas no dia posterior à boda, acreditando-se trazer felicidade.
Nos receituários portugueses ao exemplo dos estrangeiros surgem receitas de caldos de natureza vegetal e animal, ou das duas naturezas, podendo-se afirmar que o caldo verde, caldo de couves na Terra Fria, é prato nacional português, tendo a couve de ser cortada (cegada) em tiras finíssimas.
O caldo de substância significa opulência pela grande quantidade de matérias nutritivas que engloba, um caldo grasnado, roncado e escornado no dizer de um lavrador transmontano, é aquele que leva carne de aves, de porco e de gado vacum.
As nossas avós eram obrigadas pela necessidade a conceberem caldos de unto, a mesma fraqueza de meios levava-as a servirem à ceia caldo requentado sobrado do jantar (no quadro das refeições do passado). Outro caldo famoso em terras de Bragança era o caldo de castanhas, essencial enquanto não apareceu a batata, quando a colheita de castanhas mirrava “entornava-se” o caldo na maioria das casas ao reinar a fome.
O caldo de cultura devia fazer parte da ementa diária de todos nós, os caldinhos davam-se gratuitos aos fregueses nas tabernas a seguir à refeição, os caldinhos sem sal têm grande consumo quando duas pessoas principiam uma relação amorosa, assim o dizem os clássicos.
No referente à sopa nos primórdios não passava de uma fatia de pão colocada num prato ou numa tigela, deitando-se por cima um molho ou um líquido, daí resultar a expressão molhar a sopa. O líquido embebia as fatias de pão tornando-as moles, permitindo comer-se o pão duro sobrante de outras refeições. Desde a descoberta da forma de produzir e conservar o fogo, os alimentos passaram a ser cozinhados, nascendo nessa altura as sopas, base alimentar dos povos, sendo tradicionais em todos os países.
O historiador Ferdinand Braudel em Civilização Material, Economia e Capitalismo, sustenta que a segunda revolução alimentar é a da agricultura neolítica com o advento dos cereais cultivados. Os campos cultivados sustêm os terrenos de caça e da pecuária intensiva. Os documentos em diversos suportes alicerçam a tese de Braudel, a qual assenta no seguinte: “Os homens, cada vez mais numerosos, relegados para os alimentos vegetais, crus, cozidos, muitas vezes insípidos, sempre monótonos, sejam os não fermentados: papas, sopas ou pão. A partir daí, passam a opor-se duas humanidades, ao longo da história: os raros comedores de carne, os inúmeros comedores de pão, de papas, de raízes, de tubérculos cozidos. Na China, no segundo milénio, “os administradores das grandes províncias são designados por... comedores de carne”. Na Grécia antiga, dizia-se que os comedores de papas de cevada não tinham vontade nenhuma de fazer a guerra.” Séculos e séculos mais tarde (1776), um inglês afirma: “Encontra-se mais coragem nos homens que almoçam carne do que nos que se contentam com alimentos mais leves”.
As esclarecidas pistas deixadas por Braudel remetem-nos para a crua realidade da cadeia alimentar do Nordeste, carne apenas por ocasião de festas e casamentos, no mais: pão duro, pesado, negro, em sopas, migas e açordas.
Pelo exposto aos comedores de sopas restava a capacidade de conceberem sopas ricas em conteúdos: fosse a astuciosa sopa de pedra, a de aproveitamento, caso da sopa do cozido, a sopa juliana, conjunto de hortaliças cortadas muito finas, ou a sopa seca de carnes, legumes embebidos num caldo e tostado no forno. O provérbio avisa: “Boas sopas se farão com bom vinho e bom pão.”
O Tomé da Eira ceava caldo verde, o querido jerico o Sultão nos dias de azáfama, recolha dos cereais e malhas deliciava-se sorvendo sopas de cavalo cansado, porque uma boa colheita representava cair a sopa no mel.
Os doentes tratavam-se com sopas de leite, a esquelética Paula Fernanda respondeu: “Depois tomo um copo de leite...ou umas sopas de leite”, lê-se em A Gata e a Fábula, de Fernanda Botelho. Os pobres voltam a recorrer aos serviços de assistência social que no antecedente serviam a chamada sopa económica, de negra memória, no consulado sidonista, conhecida pela sopa do Sidónio.
Muitos escritores recordam vivências e bons momentos escrevendo sobre sopas que os reconfortaram, estão nesse grupo Camilo, Eça, Albino Forjaz Sampaio, o Conde de Monsaraz, e o transmontano Sousa Costa que em Miss Século XX, coloca a delambida Gina em êxtase ao tomar odorosa rescendência da chamada sopa à portuguesa”.
A sopa no Nordeste é uma tradição não só pelas circunstâncias da aspereza do território, do mesmo modo porque desde as modestas sopas de pão, de alho, de unto, de verduras, ou grávidas de suculências carnais, sempre assumiram papel primacial no quotidiano alimentar das gentes.

Comeres Bragançanos e Transmontanos
Publicação da C.M.B.

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