quinta-feira, 16 de maio de 2013

BACALHAU, em Comeres Bragançanos e Transmontanos


“Nas mãos brancas, nas mãos finas, nas mãos papudas apareceu o pernil de cabrito, a asa de galo, o
bolinho de bacalhau”
[In Andam Faunos no Bosque, de Aquilino Ribeiro]

O ilustre mestre da língua portuguesa na descrição das pitanças contidas num farnel de festa associa o bolinho de bacalhau aos pitéus de carne mais emblemáticos da região beirã. Esta referência ao bacalhau é uma entre muitas que podemos encontrar nas obras de Aquilino Ribeiro, caso fizéssemos uma investigação aprofundada relativamente a autores que por esta ou aqueloutra razão o lembram nas suas obras, um grosso volume não chegava para anotar as citações encontradas. Porquê? Porque o bacalhau conseguiu trespassar resistências de classe, agradar aos ricos enquanto suavizador de jejuns, fundamental na dieta alimentar dos pobres, entrar em toda a espécie de cometimentos culinários, não estar sujeito ao calendário sazonal, pelo contrário é benquisto em receitas das quatro estações, por tão evidentes qualidades gastronómicas e dado ter sido o “abono” de família das gentes sem recursos, é qualificado desde há muito como o fiel amigo dos portugueses.
A antropóloga Susan Plant dos Santos, em The Antropologis Cookbook ao abordar a cozinha portuguesa sobre o signo do sal e do açúcar refere o primordial papel do bacalhau na alimentação dos portugueses, o modo de o secar ao sol, e o excelente sal para o salgar. De tão popular o bacalhau é cozinhado de cem formas diferentes anuncia aos leitores a antropóloga e enuncia a composição da receita de bacalhau à Gomes de Sá, levando-a a enquadrá-la no abanico das receitas de cariz universal.
O biógrafo do bacalhau Mark Kurlansky, em O Bacalhau Biografia do Peixe que mudou o Mundo, afirma que a sua pesca principiou na Idade do Ferro, tendo sido os Viquingues os primeiros a curá-lo, devendo-se a Erik o Vermelho ter dado o nome de Terra Verde a uma zona de glaciares, hoje conhecida por Groenlândia.
O biógrafo enaltece o papel dos Bascos dizendo terem sido voluntariosos pescadores de bacalhau, e dado terem sal, aplicavam ao gadídeo as técnicas de salga utilizadas nas baleias, aumentando o tempo da sua conservação e, consequentemente respondiam bem à procura. Em tempos tão recuados, o sal fazia parte dos produtos estratégicos, os Bascos aproveitaram-no para o secar o peixe e por volta do ano Mil dominavam o mercado internacional do bacalhau nos países cristãos, onde os muitos jejuns contavam para a salvação da alma, a obrigarem a cumprir o interdito do consumo de carne. Como é evidente, notícias sobre a pesca do bacalhau chegaram a Portugal e, segundo o Dicionário de História de Portugal, direcção de Joel Serrão, os pescadores portugueses afoitaram-se a procurá-lo no longínquo mar do Norte, após as viagens dos irmãos Corte-Real à Terra Nova. Estávamos nos finais do século XV, no ano de 1505 D. Manuel mandou cobrar dízimo sobre “o produto da pesca realizada nessa área”, evidenciando o não termos perdido tempo na sua captura. Antes, em 1353, pescadores portugueses do Norte de Portugal “contrataram directamente com o rei de Inglaterra, Eduardo III, o Confessor, a pesca do bacalhau no Norte das ilhas Britânicas”, refere a obra ABC dos Sabores Portugueses e Mais Alguns, de José Roby Amorim.
Tínhamos sal excelente, a frota da pesca do bacalhau aumentou, as técnicas de secagem e salga pautavam-se pela qualidade, tudo ficou em águas de bacalhau quando perdemos a independência, o mercado passou para as mãos dos mercadores ingleses.
Apesar das dificuldades o bacalhau continuou a frequentar a mesa dos humildes, bem mais barato que a pescada, às vezes menos caro que a sardinha, cumpria a missão de ajudar a alegrar os almoços e as ceias dessas gentes, até porque tanto se comia nos tempos quentes do Verão, como nos dias friorentos de Inverno. Os viajantes estrangeiros ficavam impressionados ao observarem o minucioso aproveitamento do bacalhau, desde as caras às tripas (semos), passando pelas línguas, nada se deitava fora. Vale a pena ler relatos sobre a nossa alimentação de Link, Thomas Cox, Cox Macro e Ruders, não faltando nos seus relatos alusões ao bacalhau.
Só no século XIX foi retomada a pesca de bacalhau na Terra Nova e Islândia, com os insucessos e sucessos plenamente conhecidos de todos até agora, a frota sofreu enormes alterações, a captura de tão peculiar amigo dos portugueses também não é tão fácil como no antecedente por causa das normas comunitárias e da política de defesa levadas a cabo em especial pelo Canadá.
Dado o crucial desempenho do bacalhau na alimentação dos carecidos, tendo em conta as qualidades no respeitante à conservação e polivalência culinária, o porto seco de Bragança recebia bacalhau que exportava para Castela, pelo menos até aos finais do século XVIII.
A simpatia granjeada pelo bacalhau junto das populações nordestinas verifica-se analisando documentos relacionados com o comércio e consequente consumo, na província de Trás-os-Montes. Relativamente ao concelho de Bragança define-se numa palavra: significativa. A pauta alfandegária do porto seco de Bragança nos finais de oitocentos regista o comércio de bacalhau, e as actas da Vereação da Câmara Municipal de Bragança, e respectivas tabelas e pautas de preços dos géneros e artigos sujeitos a impostos indirectos demonstram não ser empolada a qualificação de significativa, no respeitante ao seu desempenho na alimentação das gentes do concelho. Não me parece exagerada a afirmação, e como exemplo veja-se o ano de 1953, em que a cobrança da taxa sobre o comércio de bacalhau gerou uma receita de 12.739$00, já o peixe fresco ficou-se pelos 3.127$80, a sardinha, a cavala e o carapau renderam 6.003$10. Dado que a taxa em vigor sobre cada quilo de bacalhau era de dez centavos, foram vendidos 127.739 quilos.
O estatuto de fiel amigo concedeu ao bacalhau uma grandeza afectiva na sociedade portuguesa a torná-lo fautor de fados e cantigas, arma política pensemos na promessa eleitoral do bacalhau a pataco, actor galhofeiro no teatro de revista, flagelo dos meninos obrigados a tomarem o óleo do seu fígado, elemento principal de chistes, anedotas e bandas desenhadas até ao 25 de Abril de 1974. Dos séculos anteriores vinham testemunhos das facécias do Enterro do bacalhau e do O Círio dos Bacalhoeiros, tão bem anotados na Etnografia Portuguesa, de Leite de Vasconcelos.
No que tange às preparações culinárias importa salientar que também se consome fresco, os chefes franceses preferem-no nesse estado, originando receitas de assado e estufado, sendo o rabo excelente para estas duas cozeduras, não devendo ser grelhado porque se desfaz de imediato. Ainda fresco entra na confecção de croquetes, gratins e mousses, em delicadas composições de estufados em vinho branco, filetes e postas, devendo a fritura ser objecto de grande vigilância.
Por cá, o cozinheiro real Domingos Rodrigues ignorou o bacalhau, o que não constitui surpresa, Lucas Rigaud concede-lhe três receitas de inspiração francesa, também não surpreende, no referente aos receituários burgueses do século XIX a situação é outra a confirmar alterações de perspectiva do gosto e hábitos. O A Arte de Cozinha de João da Mata contém onze receitas de bacalhau, O Manual Completo do Cozinheiro estampa treze, o Cozinheiro dos Cozinheiros de Plantier outras treze, o Arte do Cosinheiro e do Copeiro insere cinco.
A cozinha popular, do Litoral ao Interior, do Norte, do Centro e do Sul, é robusta no referente a receitas de bacalhau, também nos Açores encontramos algumas, menos na ilha de Madeira.
Existe uma querela surda em torno do sulista pastel e do nortenho bolinho de bacalhau, Mário Cláudio em Tocata para Dois Clarins, dá o toque: “nas tardes Verão, acarretando seus farnéis de arroz de cabidela e de bolinhos de bacalhau...”. Mestre Aquilino gostaria de ter lido esta menção.

Comeres Bragançanos e Transmontanos
Publicação da CMB

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