sexta-feira, 7 de junho de 2013

PÃO, em Comeres Bragançanos e Transmontanos

– Cala-te lá centeio, centelaço,
Que tu não fazes
As funções que eu faço.

O centeio disse p’ró trigo
– Cala-te lá, trigo espadando,
Que não acodes
Ao que eu acudo
[in Cancioneiro Popular Português, coligido por J. Leite de Vasconcelos]


O caminhante em clima floral ou carregado, calcorreador de ásperos caminhos, de dia ou de noite, antes de iniciar a caminhada tomava a precaução de meter pão no saco, chamando-lhe bocado, carolo, cibo, naco ou outras nomeações. Com pão de centeio, de mistura ou meado, nos dias piores com aveia, pão de milho – broa ou boroa – quase sempre duro, o viajante metia pés a caminho. O rico comia pão trigo e fazia-se transportar.
Das fomes malditas, das carências do quotidiano o rifoneiro diz-nos da importância do pão: “para fome não há pão duro”; “quando se tem fome não há ruim pão”; “pão duro, dente afiado”; “tal é o pão, tal é a sopa”; ”meia vida é a candeia e pão e vinho a outra meia.”
Os historiadores atribuem a invenção do pão levedado aos Egípcios. As virtualidades do pão surgem em todo o tipo de documentos, outros especialistas colheram numerosas referências ao pão e pãezinhos em tábuas de argila em escrita cuneiforme, sendo de destacar nesse conjunto a famosa epopeia de Gilgamesh.
Arqueólogos encontraram grãos de trigo nas tumbas do neolítico, portanto há cinco ou seis mil anos. Os chineses cultivavam trigo em 2700 a.C.
Se os egípcios descobriram a cozedura do pão e inventaram o forno, os Hebreus ao fugirem apressadamente da terra dos Faraós, esqueceram-se, ou não tiveram tempo para levarem a levedura e comeram pão ázimo. No calendário das festas religiosas judaicas, a comemoração da passagem do Mar Vermelho faz-se com esse pão. As espigas de trigo significavam abundância, o Faraó viu em sonhos sete espigas carregadas de grãos de trigo, na interpretação de José revelavam sete anos de prosperidade, as sete espigas vazias de grãos anunciavam sete anos de esterilidade.
Na Bíblia podemos ler: “com o suor do teu rosto, ganharás o pão” e, o homem muito teve de suar para conseguir cereais para: produzir, colher, moer, amassar, fermentar e cozer o alimento apaziguador de contendas e fomes, até porque em casa onde não há pão, todos ralham...
Alimento sacro e primacial na Europa cristã, o pão e o vinho simbolizam a Paixão de Cristo, “sou o pão que desceu do céu.” Além de ser “pão da vida” era essencial na mesa do nababo, na do miserável, no alforge do senhor e no bornal do lavrador, no cestinho da menina, esfarelado nos rasgões da roupa do pedinte. Pela cor do pão conhecia-se o rico e o pobre, como muito bem anotou o medievalista Louis Stouff e, nesses tempos distantes da Idade-Média, o trigo ia à mesa do rei, dos nobres, do alto-clero, dos mercadores, o centeio alimentava a maior parte da população, Viterbo refere a mistura com aveia em anos de péssimas colheitas.
O pobre “quando estava a pão trigo” significava doença grave ou antecâmara da morte para o desgraçado.
No quadro alimentar dos muçulmanos medievais o pão detinha uma importância maior do que o arroz, um anfitrião eleva-se aos olhos dos convidados pela quantidade de variedades de pão que colocasse sobre a mesa. Os califas de Bagdad, naturalmente, venciam o jogo da exibição apresentando nas refeições dezenas de tipos de pão, desde pão sem fermento até pão folha, ainda os biscoitos estaladiços e os grandes pães redondos.
Os generais ao planearem as guerras tinham o cuidado de saberem da qualidade ou não das colheitas de cereais, os soldados necessitavam de pão, vinho e carne, os cavalos de cevada e aveia, sem abundância de cereais as oportunidades de êxito diminuíam enormemente.
Os pobres sempre estiveram habituados a comerem o “pão que o Diabo amassou”, bolorento, rijo a ponto de colocar em risco a dentadura do mastigador. Os desprotegidos para obviar esse risco, engenhosamente, conceberam uma base alimentar recuperadora do pão rijo através de caldos, sopas, açordas, migas, gaspachos, embebido em molhos, leite e vinho. Nos dias nomeados de acordo com a algibeira apareciam os bolos, bolinhos, bolas e folares.
Os ecos da fome, da desmesurada fome de pão inspirou inúmeros escritores, dou testemunho de alguns.
O emérito prosador Padre Manuel Bernardes, legou-nos Pão partido em pequeninos, o poeta Afonso Ribeiro deixou-nos Pão da Vida, Assis Esperança de vivência sofredora escreveu Pão Incerto, o alegre contador de histórias Manuel da Fonseca refere a luta pelo pão em Seara de Vento, a ribatejana Natércia Freire canta a imensidão das terras de pão no livro Solidão sobre as searas, os trabalhos relacionados com a sua cultura são lembrados por Mário Beirão em o Pão da Ceia, o telúrico Miguel Torga no ano de 1931, publicou Pão Ázimo, o igualmente transmontano Guerra Junqueiro vincou o carácter simbólico de tão qualificado alimento em Oração ao Pão, talvez lembrado do aviso de Mateus: “Não só de pão viverá o homem, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus”. Levando em linha a advertência de Mateus, o romancista russo Vladimir Dudintsen conseguiu trazer à luz do dia Nem só de pão vive o homem, por outras razões, as da utopia socialista, Jorge Amado concebeu o incisivo Seara Vermelha.
Os ventres ao sol ou patas ao léu não implicavam por o pão não possuir como deve uma côdea estaladiça, dourada, com espessura em consonância e miolo macio, para eles todos os carolos eram bem recebidos. Uma rainha perdeu a cabeça porque terá dito (não é verdade) que na falta de pão os famintos podiam comer brioches, o dito ficou, sugerindo criações de pastelaria.
Em matéria de pães quase se pode afirmar que existem pães de todos os modos e para todos os gostos, os Gregos atribuíam a paternidade do pão ao deus Pan, empregando no seu fabrico azeite, especiarias, gordura, leite, mel, queijo e vinho doce, os Romanos aromatizavam o pão com sementes de papoila, funcho, cominhos e salsa, os Gauleses empregavam cerveja no seu fabrico, os cónegos de Notre-Dame comiam pão de cónego, os criados contentavam-se com o pão de farelo, aos convidados davam-lhe pão de sala. Sem esgotar a arca enumero outros tipos de pão: pão de cozinha, pão com chocolate, pão com toucinho, pão em tranças, pão de tâmaras, pão de especiarias, pão de peixe, papo-seco ou molete, pão de crustáceo, pão-de-leite para dentes sensíveis, pão com passas, pão doce, pão dourado, pão flamengo, pão de rala, pão singelo, pão primaz, pão de mel, pão da madrugada, pão de gulodice, pão oriental, pão negro de Nova Orleães, pão de festa, pão integral, pão de côdea, pão de Santo Honorato, pão de nozes, pão de laranja e pão de rosas que deve ter inspirado o poeta António Lopes Vieira, porque escreveu um livro crismado dessa forma.
O pão serviu de escudela e prato durante largo tempo, as rainhas comiam o seu pão de rainha concebido à base de leite e gemas de ovo, a evolução levou ao aparecimento de pão matizado, ora uma camada de pão branco, ora uma camada de pão escuro.
O adágio “cada terra com seu uso, cada roca com seu fuso”, quase pode ser acrescentado de: cada terra com o seu pão. No ano de 2011, a UNESCO decidiu elevar à condição de património imaterial da Humanidade um pão de especiarias da Croácia, vendido nas feiras desde tempos imemoriais.
O consumo do pão estendeu-se ao Mundo inteiro, a par do vinho é o único alimento a acompanhar a refeição desde o princípio ao fim, acrescente-se o seu emprego nas artes culinárias e pasteleiras. Além das sopas, açordas e migas já referidas, engrossa recheios, é indispensável na confecção de sanduíches e canapés, sem ele não existem torradas, na categoria de pão ralado aparece na composição de numerosos pratos, em pastelaria é usado na confecção de pudins e bolos.
No que tange à região de Bragança o valor do pão é inquestionável ao exemplo de outras, no entanto, por particularismos locais (qualidade dos terrenos, revestimento vegetal, clima) ainda mais indispensável se tornou no sistema alimentar da generalidade das comunidades.
Além dos forais, os documentos citados na obra O Mosteiro de S. Salvador de Castro de Avelãs – Um património monástico no dealbar da Idade-Moderna (1500-1538), de Ana Maria Afonso, referem que os cereais eram semeados em boa parte das propriedades do Mosteiro, e as rendas geradas pelo trigo, o centeio e o pão meado davam alento às finanças do Mosteiro.
Nas actas da Vereação da Câmara Municipal de Bragança e respectivas tabelas e pautas de impostos indirectos dos produtos vendidos no mercado de Bragança, há dados a confirmarem o valor dos cereais na economia local e respectivas espécies.
No ano de 1863, o preço médio do alqueire de centeio foi de 405 réis, o de serôdio 645, e o de trigo 560.
Em 1884, o preço médio do litro do trigo foi de 28 réis, o de serôdio 37, e o centeio 25. No de 1894, o litro do trigo tremês custou 40 réis, o galego 35 e centeio 25. Em 1899, o litro de trigo tremês vendeu-se a 50 réis, o galego a 47, e o centeio 30.
No ano de 1910, efectuaram-se transacções de trigo tremês, galego, centeio e cevada, custando cada litro 54, 44, 27 e 27 réis respectivamente. No ano de 1911, implantada a República, a variação para mais verifica-se no custo de cada litro de centeio e da cevada, 35 e 31 réis respectivamente, o trigo tremês desceu para 52 réis e o galego subiu para 47. Em Janeiro de 1915, o preço médio do litro de trigo tremês foi de $06 centavos, o galego $05,7, o centeio $53, e a cevada $50. No mês de Janeiro ano de 1920, o preço médio do litro de trigo tremês foi de $34 centavos, o galego 32, o centeio e a cevada $26. No ano de 1924, cada litro de trigo “ceródio” é vendido a 1$30, o trigo a 1$20, e o centeio a 1$10.
Não é propósito deste trabalho analisar tecnicamente preços e fazer comparações entre produtos até porque tinham de ser sopesados outros indicadores, regista-se apenas o preço mais alto do serôdio por surgir tardiamente e conceder melhor finura ao pão, e em diversos anos o custo do centeio ser maior relativamente ao trigo, a indiciar dificuldades para a maioria da população.
O ciclo do pão nestas terras mereceu estudo aturado ao investigador Dr. Belarmino Afonso, sobre o qual escreveu obra de consulta obrigatória para todos quantos o querem conhecer e estudar, e ajudou à feitura de uma tese de doutoramento sobre os cantos do pão em Trás-os-Montes. O seu zelo na decifração das fontes orais e materiais fornece valiosa informação relativa às poesias e provérbios, jogos e adivinhas, invocações de Santos, orações e canções, moinhos e moleiros, o cozer do pão, a construção dos fornos, a farinha, a culinária e derivados do pão. No que tange a superstições lembra o hábito de quando o pão cai no chão, apanhar-se e depois de benzido comer-se. Similar veneração pelo pão é praticada nas cozinhas judaica e muçulmana.
No referente à farinha e à culinária – derivados do pão – enuncia as receitas de: bolas de azeite, bolas de carne, bolas respigonas, bolas da sertã, chamuscadas, cuscos, económicos, folar, fritas, mimosas, miolos ensopados, papas, roscas, roscos e sopas de cavalo cansado. Algumas dessas receitas estão incluídas nos receituários objecto deste estudo, outras não, caso da de cuscos. O infatigável Dr. Belarmino Afonso recolheu a receita de cuscos em Santalha, Vinhais, tendo sido informante a Sra. D. Maria Maldonado
Pires. No introito diz ser “um alimento de gente pobre, substituto do arroz e da massa.” Permito-me discordar da afirmação em causa, tendo como base a respectiva receita e outros dados inseridos neste trabalho, sem deixar de levar em linha de conta o custo do arroz e o das massas.
A abrir o texto da receita diz-se: “Este prato, feito de farinha triga ou de serôdio.” Ora, o serôdio na tabela de preços médios dos cereais vendidos no mercado de Bragança alcança os mais altos, seguido do trigo tremês e o centeio em último lugar. Para ser mais preciso: no ano de 1863, o litro de serôdio vendeu-se a 645 réis, o trigo tremês a 560, e o centeio a 405. Muito mais tarde, em 1924, o litro do serôdio vendeu-se a 1$30, o trigo tremês a 1$20 e o centeio a 1$10. Nos anos intermédios sempre o serôdio atingiu preços mais elevados que o trigo tremês, o galego e o centeio. Sabemos quão raro era o consumo de trigo nos lares dos pobres, apenas nas festas e dias nomeados, em face do seu custo permito-me considerar os cuscos alimento de gente remediada, pelo menos. Os cuscos cuja origem está no interior da África do Norte (prato nacional da Argélia e Marrocos), deixaram de ser feitos não só pelo abaixamento do preço do arroz e das massas, as taxas cobradas sobre estes produtos são inferiores às cobradas sobre o trigo,
também porque a confecção deles é demorada exigindo mais esforço relativamente às outras referências.
O estudo de Belarmino Afonso elenca os fornos de pão, existentes na cidade e os que deixaram de laborar, e à data da sua publicação (1982) existiam onze, a saber: António da Conceição Dias (Ant. Ricarda), Camila Correia, Catarina (Catrina), Conceição Ferreira, Glória, Henrique Conceição, Maria Alice Barreira (Rata), Rosa Taboada (Rosa Cristo), Sofia Barata, Maria Ester Pinto e Maria Angélica Costa (Necha). Tinham desaparecido sete, os de: Ana Quintela, Benedita, Carolino Valente, Cerdeira, José Morais, Maria Dias (Maria Chabasca) e Preciosa Costa. Deixaram de trabalhar os de: Adelaide Gomes, Ana Quintela, António Dias, Camila Correia, Cerdeira, Henrique Conceição, Rosa Tabuada (Rosa Cristo), Maria da Graça Piretas e Maria Angélica Costa (Necha).
Em 1912, revela-se num anúncio a padaria de Henrique Conceição, em 1930 surgem dois anúncios: padaria Bijou de Joaquim Barbosa e Antiga Brigantina de Manuel Augusto Crespo, em 1935, regressa o anúncio da padaria de Henrique Conceição e aparece o da Padaria Militar, no ano de 1940 são cinco os anúncios: padarias de: Camila Correia, Claudina Cândida Correia, Conceição Rudia, Manuel Augusto Crespo e Preciosa das Graças Fernandes. Em 1942, o número desce para três: padaria de Afonso Lopes e C.ª Lda., de Ana da Purificação Costa e Maria da Conceição Ferreira, no ano de 1945, voltam a ser cinco: padarias pertencentes a Alexandre Augusto Afonso, Ana da Purificação Costa, Claudina Cândida Correia, Manuel António Freire e Maria da Conceição Ferreira. No ano de 1952 mantêm-se os cinco anúncios, muda um anunciante: sai a padaria de Claudina Cândida Correia, entra a padaria de Manuel Pereira dos Santos.
Cotejados os documentos verifica-se que fornos da listagem publicada pelo Dr. Belarmino Afonso dão-se a conhecer na qualidade de padarias nos anúncios comerciais, outras mostram-se na condição de locais de venda de pão.
A usura do tempo e as profundas transformações ocorridas na sociedade bragançana determinaram, naturalmente, o desaparecimento da quase totalidade dos fornos e padarias anotadas. As padeiras e doceiras do passado faziam rigoroso exame à qualidade da farinha, diziam: esta é uma farinha redonda, aquela é uma farinha lisa, cheiravam-na e levavam-na à boca a fim de detectarem imperfeições, se cheirava a mofo, se era ácida, amarga ou doce. O registo de Belarmino Afonso permite-nos uma fundamentada visão no tocante ao modelo de abastecimento de pão à cidade: macio, duro, amolecido, esboroado ou em migalhas alimentava os pobres e mendicantes, e regozijava os detentores de posses.
O pão, nas suas diversas expressões e representações culturais, fazer pão é um acto cultural, bem justifundamentada ancestralidade da região transmontana.

Fiama escreveu: A branca flor do pão lêvedo/ todas as manhãs se abria sobre a mesa...”


As padeiras desenhavam uma cruz na massa antes de ir a levedar, e num murmúrio rezavam:

São Vicente
te acrescente,
São Mamede
te levede
e a Virgem Santa Maria
te faça pão de algum dia.

Comeres Bragançanos e Transmontanos
Publicação da C.M.B.

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