A epígrafe deste texto é proveniente de um outro da autoria de João Araújo Correia, incluído no livro Sem Método.
O autor dos mais ilustres, nasceu no concelho do Peso da Régua, além de abnegado médico ao estilo de João Semana, deixou obra vultuosa onde retrata vagabundos, pobres e pedintes, gente desvalorizada e sofredora, trabalhadores explorados no salário e maltratados através da palavra, quando não pela violência física.
As sardinhas sempre foram um peixe popular devido ao seu baixo custo e pouco exigentes no tratamento culinário. No Norte, o Douro constituía a principal estrada que as levava pelo rio acima deixando-as nos portos ribeirinhos, existentes nas duas margens. O Douro possibilitava fazer-se a ligação aos confins do interior e às terras castelhanas. Segundo os registos das chancelarias o comércio de peixe incluía como espécies mais importantes o congro, a lampreia, a pescada, o arenque, o sável e a sardinha que chegavam aos portos secos de Freixo de Espada à Cinta e Torre de Moncorvo, passando a partir daí a serem transportados pelos almocreves ou recoveiros.
Na obra Mercadores entre Portugal e Castela na Idade-Média, Isabel Vaz de Freitas elucida-nos: “Cabe ao Porto, a Torre de Moncorvo e a Freixo de Espada à Cinta a exportação de peixe de rio e do mar. Os valores mais elevados são conseguidos pelas lampreias e sáveis em Freixo de Espada à Cinta. Em Torre de Moncorvo e em Freixo regista-se peixe do mar (congro, pescadas e sardinhas) que é exportado para Castela.”
Os congros encontram-se entre os peixes de maior custo na Idade-Média, as sardinhas entre os mais baratos. De tão requestada, não admira no ano de 1456, ter sido autorizado pescar-se nos domingos e dias santos, excluindo-se apenas os dias das festas principais em honra de Jesus Cristo e da Virgem Maria.
O serem baratas, boas e rendáveis concederam às sardinhas estatuto de ser o peixe de maior popularidade em todas as regiões do País, fazendo parte da herança colectiva de funestas privações a célebre menção à sardinha cabeçuda dividida por três de modo as mães enganarem a fome aos filhos.
“Mas é bem que se celebre
quem mais de todos sustenta
e por ser mais saborosa
é a fartura da pobresa
A saborosa sardinha
que a divina providência
na abundância e qualidade
no sabor e em ser pequena”
O viajante Link muito viu e observou nas suas andanças por Portugal, aferiu os maus comeres da generalidade da população no século XVIII, percebeu o valor da sardinha no quadro alimentar dos portugueses e: “vi muitas vezes os mendigos esfregarem o pão dos filhos com uma sardinha, para lhe ganhar o gosto”. Realmente, os denominados ventres ao sol, viviam pessimamente tendo na sardinha o petisco emblemático das festas populares.
Pelas suas características e pelas razões acima referidas, a sardinha assumia fulcral papel sendo o produto alimentar marítimo de maior acolhimento na região. A elevada procura e o facto de a Galiza ser grande centro piscatório, (os portos galegos ficavam relativamente perto de Trás-os-Montes), levaram à importação de enormes quantidades de sardinha galega na época em que Link visitou Portugal. Segundo documentação tratada e estudada por Maria da Piedade Braga Santos e Teresa M. Ferreira Rodrigues, relativa às Alfândegas de Trás-os-Montes: anos de 1791 e 1801, em 1791 as alfândegas dos portos secos de Montalegre, Chaves, Vinhais, Bragança, Outeiro, Vimioso, Miranda, Bemposta e Freixo registaram a importação de 2.843 milheiros de sardinhas. Número impressionante. Em 1801, a importação de sardinha galega cai para 119 milheiros.
A consulta das tarifas e pautas dos impostos municipais indirectos desde 1884 até 1960, revela que a sardinha, dos peixes marítimos e fluviais sempre foi a menos onerada no referente ao pagamento de taxas.
Até às transformações ocorridas nos últimos quarenta anos em matéria de refrigeração e transporte de produtos, as sardinhas chegavam às localidades do interior em barricas e caixas de madeira, normalmente a exibirem riscantes indícios de “velhice” nas cabeças amareladas incorporando veios sanguinolentos que o sal não encobria. Este aspecto levou-as a ganharem o apelido de sarnentas, o que pelos motivos acima aduzidos não impedia a entusiástica escolha por parte das donas de casa, e serem vorazmente consumidas nas festividades populares no decurso da época estival, e não só.
As sardinhas não podem ser analisadas apenas devido à popularidade junto da generalidade da população portuguesa, também justificam apreço porque contêm ácidos gordos de ómega 3, peixe azul, é recomendado enquanto elemento de precaução contra muitas maleitas, ajuda a combater o risco de enfarto, além de diminuir os níveis de colesterol. Segundo os nutricionistas o consumo de cinco sardinhas equivale à absorção de duas gramas desses ácidos, quantidade diária recomendada pelos especialistas.
Comer de temporada enquanto frescas, manjar das classes humildes e trabalhadoras, referência cultural de antanho na qualidade de alívio de privações, também causadoras de irritações quando não cozinhadas ao ar livre devido aos eflúvios que largam, as sardinhas estão na moda, já não são apenas comida de pobres capazes de as comerem à mão, na maioria das vezes implantadas sobre um pedaço de pão.
As sardinhas ascenderam ao patamar da cozinha de autor, largaram a veste de comer de segunda ou terceira categoria, passaram à condição de produto gourmet. Os chefes inventivos apresentam-nas marinadas e recheadas com ovas de arenque, pão e tomate,
num molho com verduras e azeite, em arroz caldoso, os exemplos podem-se multiplicar, não o julgo necessário para comprovar as anteriores afirmações.
E, no entanto, apesar da subida de posto, as sardinhas continuam a ser o peixe predilecto do povo – da arraia-miúda – descrita por Fernão Lopes, nas Crónicas, tão pouco lidas.
Comeres Bragançanos e Transmontanos
Publicição da C.M.B.
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