sexta-feira, 12 de abril de 2024

Mudança da Sé de Miranda do Douro para Bragança. Razões de tal mudança em que avulta o receio de nova invasão de Portugal pelos castelhanos - 1764-1765


 «Em carta firmada por sua Real mão no dia desassete de Novembro 
foy Sua Magestade servido resolver que se fixasse a nossa Cathedral de Miranda nesta sua ducal e real cidade de Bragança. Assim pois o fazemos saber a V. S.ª que promptamente cumprirá com a disposição de Sua Magestade ficando certo que nos tãobem daremos satisfação a tudo o que for de seu gosto. Deus Guarde a V. S.ª muitos annos.
Bragança 9 de Dezembro de 1764. Servo e Orador de V. S.ª Fr. Aleixo bispo de Bragança. Ao Nosso muito Ill.e e R.do cabido» (362).
O cabido respondeu logo em carta do dia seguinte transcrita no fólio 26 declarando-se pronto a obedecer; mas «pera que esta obediencia melhor se conforme com as clausulas da carta Regia, supplicamos humildemente a V. Ex.cia R.ma seja servido de nos participar a copia da mesma».
Em carta do dia 13 do mesmo mês, datada de Bragança, transcrita no mesmo livro, logo a seguir, diz o bispo ao cabido que pelo seu provisor lhe manda a cópia da carta régia referente à mudança da Sé para Bragança, e também o original para o «cazo de querer V. S.ª conferir com elle a copia». Começa a ironia azeda entre bispo e cónegos. Estes, tendo em menos a probidade do bispo desejam ver a cópia da carta régia e ele manda-lhe cópia e original. Na primeira carta o bispo assinava-se bispo de Bragança e nesta diz: «Fr. A. bispo (como V. S.ª diz) desta Diocese».
No fólio 26 v. vem transcrita a carta régia de 17 de Novembro de 1764 que autoriza a mudança da Sé para Bragança, a qual já foi inserta no tomo III, p. 42, destas Memórias, documento n.° 18.
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(362) Copiador de cartas, fl. 25 v.
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No fólio 27 do códice que vamos seguindo vem transcrita uma longa carta do cabido ao mesmo bispo datada de Miranda aos 18 de Dezembro do mesmo ano. Pondera o cabido: as dificuldades que há para em Bragança se erigir igreja que sirva de Sé; as muitas despesas que acarretará a sua construção; a ruína que virá sobre a de Miranda, sem fábrica que proveja à sua reparação; o transtorno financeiro sobrevindo aos cónegos obrigados a deixar suas vivendas de Miranda depreciadas por falta de compradores e a adquirir outras em Bragança muito mais caras. A tais razões respondeu o bispo:
«A substancia desta importante materia, que V. S.ª não declara, respeyta ao estabelecimento na nossa Sé em Bragança he tão somente = obedecer, ou não á disposição do soberano. Eleja V. S.ª a parte que lhe parecer pera a seguir; porquanto, o que respeyta ás mais circumstancias El Rey, o Bispo, e por ultima concluzão o Summo Pontifice o disporão como julgarem ser mais conveniente, e mais justo. Deos Guarde a V. S.ª muitos annos. Bragança dezoyto de Dezembro de mil settecentos sessenta e quatro. Orador de V. S.ª Fr. Aleyxo bispo de Bragança. Ao Muito R.do S.or, cabido da nossa Sé».
No fólio 28 vem transcrita outra do bispo ao cabido datada de Bragança aos 21 de Dezembro do mesmo ano. Entre outras coisas diz: «E pelo que respeita á licença, que V. S.a nos pede pera levarem á prezença de Sua Magestade os expostos assumptos da sua irrezolução contra a expressa Real disposição, que lhe participamos aggradecemos a V. S.ª a sua attenção; porem declaramos a V. S.ª que semelhante faculdade só deve ser pedida a hum desapayxonado juizo, e não a hum bispo, que reconhecida por todo o Reyno hüa graça suspirada por toda a diocese ha mais de duzentos annos, deve sem mais demora, que a do actual tempo chuvoso, fazer se cumpra a vontade, e disposição de El Rey justo e clementissimo author da mesma sobredita graça».
Em todas estas cartas o bispo nunca se intitulou de Miranda, mas sim bispo de Bragança.
Segue uma carta do cabido datada de 28 de Dezembro desse mesmo ano declarando-se mui submisso para obedecer à ordem real da transferência e outra do bispo do dia seguinte, datada de Bragança, agradecendo essa obediência e declarando que os cónegos não terão prejuízos nas prebendas antes procurará aumentar-lhe o rendimento delas.
Vem agora no fólio 29 a transcrição do memorial que o cabido enviou ao rei a 30 de Dezembro de 1764, suplicando-lhe «que a translação seja proporcionada ao estabelecimento interino do lugar sagrado pera o choro emquanto se não fabrica a nova Igreja porque: «(...) Em Bragança actualmente não ha Igreja capaz para este fim do choro, e altar, em cujo exercicio consiste principalmente a nossa obrigação; pois, a que foy dos Jesuitas he pequena e só tem tres altares.
A de São Vicente só tem quatro e não tem porta principal (de que tambem carece a nomeada supra). Ao que acresce a falta de officinas precizas para os diversos fins de hüa communidade capitular.
A de S. João tambem he pequena e ocupada com as funções parochiaes por ser freguezia. A de Santa Maria sobre ser parochia he collegiada e fica em hum monte levantado; e por isso laborioso para tantos Ministros de hum cabido onde regularmente ha pessoas de provecta idade.
A falta do choro capaz e de altares se faz especialmente sensivel para os ministros addidos ao mesmo choro que por assistirem pontualmente ao mesmo não podem sem dispendio de tempo e da sua decencia andar frequentemente buscando altares para celebrarem em outras igrejas. Nesta nossa ha doze; e com tudo apenas bastão pera nelles sacrificarem mais de trinta sacerdotes nas horas livres do choro, pois tantos são os ministros delle, os quaes quotidianamente celebrão, huns por a devoção, e outros por necessidade».

Outra do bispo sobre o assunto.
Razões especiais da mudança da Sé
[29 de Janeiro de 1765]

«Foy Deos por sua immensa piedade servido que finalizasse a tempestuosa estação que no decurso de sincoenta e seis dias padecemos.
Dizer-se que no assumpto de mudar-se a Se para Bragança, a carta Regia he meramente facultativa, he ignorancia da ley — quod placet Regi vigorem legis habet. (...).
Sendo (o que alguns D. D. negão) a mudança da Sé de reservatis ad Papam he, sem controversia, certissimo (e muyto mais nas presentes circunstancias) que o bispo, ou como bispo, ou como delegado do Papa, não só pode, mas deve efectuar, ou dar intelligencia sólida á sua pia, justa, e rectamente.
Procurar que a Sé em Miranda subsista he querer que intentado pelos inimigos novo ingresso no Reyno, achem á mão os castelhanos, na prata, moveis e haveres da mesma Sé hum prompto, e avultado subsidio para a sua invazão: o que alem de manifesta cegueyra tem até labios ou sabor de impiedade.
Pelo ponderado, pois, junto aos militares movimentos, que sabemos vão na opposta esp. ordenamos que V. S.ª passe logo para Bragança a estabelecer nella a Sé formal e cumprir com a obrigação dos Officios Divinos na igreja de São Vicente, emquanto Sua Magestade para satisfação da mesma lhe não faculta a do Collegio e isto de sorte que a solemne função da cinza ha-de V. S.ª celebra-la em Bragança para onde deve mandar sem demora toda a prata, paramentos e movil da Sé afim, não só de servir nesta cidade com ella, mas tambem de acautelar do receado novo ingresso dos castelhanos, sob pena de ser V. S.ª o que pague tão inconsideravel perda.
Para notificar esta e entregar a V. S.ª a nossa carta mandamos o nosso Ministro com auctoridade para conhecer da obediencia ou resolução, assim em commum, como em particular, que V. S.ª toma em tão critica dependencia e prover essa igreja de parocho e do mais que necessita. Estimamos que V. S.ª pondere sem paixão« o que resolve e que sempre queyra dar-nos occaziões de servi-lo. Deos guarde a V. S.ª muitos annos.

Bragança, 29 de Janeyro de 1765. Orador de V. S.ª Fr. A. bispo de Miranda. Ao muito R.do Snr. Chantre, Mestre Escola, dignidades, e mais cabido da nossa Sé» (363).

Segue no fólio 31 v. uma longa carta do cabido datada de Miranda a 2 de Fevereiro de 1765. Diz que obedecendo aos mandados dele prelado, estará em Bragança dia 20 deste mês, na« igreja de S. Vicente para celebrar a função correspondente ao dito dia; no entanto, apesar de batido pela lógica cerrada da argumentação do bispo, faz ainda nessa carta quatro protestos motivados pela transferência todos baseados mais ou menos claramente em razões de conveniência particular dos cónegos, se bem que mascaradas, em considerandos de aparente solicitude pelo bem religioso da Igreja.
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(363) Copiador de Cartas, fl. 31.
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Resposta do bispo
[4 de Fevereiro de 1765]

«Agradecemos a V. S.ª a sua prompta resposta e tambem obediencia promptissima com que respeyta a disposição do soberano que se daria por mais bem servido se esta sua carta de memoria que será sempre conservada na nossa lembrança, não fora hüa collecção de protestos que tanto se oppõem ou desliza a mesma protestada obediencia. Mas posto que todos os protestos de V. S.ª respeytamos, somente por agora a dous respondemos: 1.°: protesta V. S.ª ficar salvo o requerimento que diz haver feyto ao Soberano. Respondemos a este protesto, estar na mão de V. S.ª ou esperar em Miranda a pedida resolução de Sua Magestade; ou esperala em Bragança. 2.°: protesta V. S.ª pelos paramentos, prata, e mays moveis da Sé no transporte dos mesmos para Bragança. A este respondemos que ao Rey, que assim o manda, deve ser feyto o protesto e que a V. S.ª toca fazer que se conduzão e guardem com a possivel vigilancia.
Valha-nos Deos, senhor cabido, com tanto protesto contra o bem commum de hüa diocese que desde a sua erecção suspira por este bem; e que agora pela summa advertencia de seu grande Ministro foy servido conceder Sua Magestade.
Em comparação de V. S.ª quanto mais perde o bispo na mudança da Sé para Bragança! Mas o bispo attende ao bem commum, V. S.ª ao bem particular (...).

Bragança, 4 de Fevereiro de 1765. Fr. A bispo de Miranda» (364).

No fólio 37 v. acha-se transcrita a procuração que o cabido fez aos cónegos doutorais António Rodrigues de Araújo e Simão dos Santos Gracês para irem a Lisboa requerer a El Rei o que fosse necessário em ordem a favorecer a igreja de Miranda, isto é, a impedirem a transferência para Bragança, onde já se encontrava o cabido a funcionar, mas interinamente, segundo dizia a procuração. As razões de tal passo, a julgar da procuração, são apenas fundadas em considerandos de interesses materiais. É datada de Bragança a 11 de Abril de 1764.
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(364) Copiador de Cartas, fl. 36 v.
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A tantas chicanas e protestos respondeu o bispo pela carta que vem no fólio 38 do códice que vamos seguindo e no furor do laconismo contundente nem data traz. Diz ela simplesmente:
«Abyssus, abyssum invocat in voce caractuarum tuarum. Fr. A. bispo de Bragança. R.do Snr. cabido».
No fólio 33 há transcrito o protesto que a Câmara Municipal de Miranda dirigiu ao cabido a 4 de Fevereiro de 1765 contra a transferência das alfaias e mobiliário da Sé representando-lhe, ao mesmo tempo, os inconvenientes espirituais de tal mudança. Em carta do mesmo dia, exarada no verso desse fólio, disse o cabido à câmara que tudo isso já ele havia representado ao prelado e a El Rei e que nada conseguira. O protesto da câmara municipal é assinado pelo juiz vereador Jerónimo de Morais Pinto, pelo vereador José de Almeida e pelo procurador Luís de Morais Pereira.
Em carta do dia 5 do mesmo mês e ano, deu conta o cabido ao bispo do protesto da câmara municipal, como se vê dos fólios 34 v. e 35 onde vem transcrita. O bispo nada quis responder e ironicamente disse apenas ao presidente do cabido:
«Vossa S.ª que ditou a carta que nos remete, á Camera, para ultima prova da obediencia que protesta á Magestade, lhe pode dar resposta; e rogamos a V. S.ª nos escuze de outra a este mesmo assumpto, qual he a mudança da Sé para Bragança. Deos Guarde a V. S.ª muitos annos. Bragança, 6 de Fevereyro de 1765. Servo e Orador de V. S.ª Fr. A. bispo de Miranda. Ao Muito Reverendo Sr. cabido de Miranda» (365).
Na sessão de 5 de Fevereiro de 1765 voltou novamente a câmara à carga com outro protesto ao cabido que vem transcrito no fólio 35 v. decalcado mutatis mutandis nas razões expendidas no primeiro, de que obteve idênticos resultados. Ainda no fólio 36 se acha transcrita a conta que o cabido deu ao secretário de estado, marquês de Pombal, da mudança da Sé, representando-lhe os inconvenientes que dela se seguiam.
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(365) Copiador de Cartas, fl. 35.
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Já D. Aleixo era bispo do Porto e ainda os cónegos de Miranda o importunavam por dinheiros que ficara a dever ao seminário, segundo eles entendiam, ao que o bom humor do prelado respondia pela seguinte forma:
«Muito Ill.mo e R. Sr. Cabbido de Miranda e Bragança. Lemos huma e mais vezes a Carta que V. S.ª se dignou firmar-nos, ditada pelo seu espirito, que o Ceo permitta seja sancto.
A esta meditou a resposta o nosso Camõens dizendo — Nas prayas da Cochinchina — onde o reo se fez autor —. Deos Guarde a V. S.ª muitos annos.
Porto, 26 de Janeiro de 1771. Servo e orador de V. S.ª Fr. A. bispo do Porto».
Sobre a transferência da Sé para Bragança ver estas Memórias Arqueológico- Históricas, tomo I, p. 389, e tomo II, p. 66, devendo advertir que a transferência não seria a 7 de Março de 1764, como naquele escrevemos, a julgar dos documentos agora apresentados, se bem que no fólio 69 v. deste mesmo Copiador de Cartas num documento de 1797 se diz que a transferência teve lugar em quarta-feira de cinzas de 1764; é porém muito posterior para invalidar tantos testemunhos coevos.
De mais longe vinha germinando a ideia da transferência da Sé para Bragança, pois, além dos adiantos que lhe deu o bispo D. Francisco Pereira (366), na sessão capitular de 22 de Agosto de 1556 «acordarão que porquanto estava asentado de enviarem a requerer a El Rey noso senhor a mudança e trasladação desta See pera a cidade de Bragança por causas muy notorias que então se praticarão» para esse fim «fosse a corte requerer este assumpto o mestre escola Affonso Luiz, dando-lhe para despezas de viagem 5:000 reis e o mais que gastar o paga o bispo D. Rodrigo de Carvalho» (367). Assinam esta memorável sessão, e digo memorável por se mostrar que em Miranda não podia estar a Sé, os seguintes cónegos:

Gil de Prado, deão.
Afonso Luís, mestre-escola.
Brás da Mota.
Mateus Gonçalves.
George Ferreira.
Simão Moniz.
João Cão.

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(366) Tomo III, p. 37, destas Memórias Arqueológico-Históricas.
(367) Acórdãos de 1547 a 1598, fl. 47 v.
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O bispo D. Rodrigo de Carvalho cooperava ajudando a pagar as despesas que houvesse no tratamento deste assunto.
Ainda sobre a transferência achamos mais:
Na sessão do cabido de 5 de Fevereiro de 1765, apareceu o doutor Luís de Morais Pereira, procurador da Câmara Municipal de Miranda e em nome dela protestou dizendo: que «a noticia de todos os moradores desta cidade tinha chegado que S. Senhoria se queria transmudar para a cidade de Bragança» com os paramentos e alfaias desta Sé comprados pelos dízimos e rendas e que pertenciam ou tinham adquirido direito a eles os moradores; que não se podia fazer tal mudança pelo menos enquanto não viesse resolução régia «a quem a mesma materia se acha affecta» por representação de todo o povo de Miranda; que já requereram ao bispo que não desviasse as alfaias de Miranda mas que este se achava ausente; que constava que a mudança se faria muito breve e repentinamente; que protestava e lançava embargos em todos os prejuízos, ainda os mais mínimos que podesse haver nas alfaias; que protestava que se esperasse até à resposta de Sua Majestade.
O cabido limitou-se a consignar na acta o protesto e a dizer que ao bispo é que devia ser dirigido, acrescentando outrossim: que protestava por quaisquer acções violentas que o senado e povo cometessem nas alfaias (368).
Na sessão de 11 de Abril de 1765, já celebrada em Bragança no coro da igreja do colégio que foi dos jesuítas «onde interinamente se acha o cabido», foi acordado que se mandassem dois cónegos à corte tratar da questão da mudança, expondo os inconvenientes de tal facto resultantes, como eram: a «deserção de Miranda»; a «falta de igreja capaz» em Bragança e, consequentemente, o grave detrimento do culto e peso na consciência dos capitulares «rezando em Bragança não estando ainda a Sé de Miranda totalmente extincta»; a diminuição nas rendas dos cónegos e fábrica da igreja; e que, finalmente, enquanto não houvesse comodidade para celebrar os ofícios divinos podessem voltar interinamente para Miranda. Para esta comissão foram escolhidos os cónegos doutorais, Dr. António Rodrigues de Araújo e Dr. Simão dos Santos Gracês a quem deram para ajudas de custo sessenta moedas de 4.800 réis cada uma (369).
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(368) Acórdãos de 1736 a 1812, fl. 130.
(369) Idem, ibidem.
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Daqui mesmo se vêem os intuitos de subornar, porque de muitíssimas comissões à corte de Portugal e à de Espanha constantes destes livros dos Acórdãos nunca antes, nem depois, se deu tão avultada quantia, antes a média pode calcular-se pela quinta parte. O bispo perseguiu por tal forma estes cónegos que os obrigou a recolher a Bragança sem nada conseguirem (370).
Nos fólios 132 a 146 v. do códice que vamos seguindo, há várias alegações dos cónegos que não estavam pela mudança e dos que concordavam com ela.
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(370) Acórdãos de 1736 a 1812, fls. 187 v.
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MEMÓRIAS ARQUEOLÓGICAS-HISTÓRICAS DO DISTRITO DE BRAGANÇA

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