sábado, 25 de julho de 2020

Figuras Típicas de Bragança

Por: António Orlando dos Santos (Bombadas)
(colaborador do "Memórias...e outras coisas...")



Há no Facebook uma sugestão, feita pelo Hermínio Gama, incentivando a que alguém escreva qualquer historieta relatando passagens ocorridas nos tempos idos da nossa juventude, com a participação de algumas das figuras típicas que conhecemos em quantidade até ao tempo em que as Instituições Sociais, a Escola e a Medicina retiraram estes indivíduos da circulação, para darem lugar a uma catrefa de outros mendigos e gente insana que veio aqui parar e que são inconvenientes como não eram os outros que estes substituíram.
Há para mim uma ideia que os que já faleceram ou estão nos Hospícios adequados e fizeram parte da sociedade em que crescemos eram sem exceção gente simples mas boa com quem falávamos quase sempre em tom de chalaça esperando respostas mais ou menos engraçadas e irreverentes.
Tomemos como primeiro exemplo um diálogo rápido com o Carlinhos da Sé: -Então Carlinhos porque não foste à tropa? -Não fui apurado, com muita pena minha, pois a minha ideia era poder ser polícia ou guarda-fiscal.
Ou então um diálogo com as mulheres da Caleja que numa tarde de calor ao fundo das escadas da Tia Violante perguntaram ao Delfininha porque estivera tanto tempo sem aparecer e ele respondeu como a maior sinceridade de que foi capaz: -Estive doente. E alguém insistiu: -De quê? E a resposta foi imediata Creio que dos ovários, que nós as mulheres sofremos muito com isto.
O Zé Manuel “Troula” era uma figura que impressionava pela incapacidade de raciocínio lógico e da incapacidade de cuidar dele próprio, mas, possuía um instinto apuradíssimo de tempo e uma força física incomum pois durante décadas veio a pé para a cidade e regressou a Vila Nova sempre que o dia declinava e ele houvesse feito a recolha dos seus Mata-Ratos, cigarros fortes, que era o único objectivo que tinha em mente. Não era mal educado e se às vezes se excedia era sempre porque os mais brincalhões ou a garotada o levavam ao extremo, tirando-lhe as gravatas ou os cigarros.
O Sanfarriã era um caso diferente de todos os outros. Homem escuro e atarracado sempre que vinha à cidade era para se embebedar. Mas não era o vinho que o fazia perder a razão. Ele já não a possuía. Amante de uma festinha, cantava umas modas rústicas e metendo a mão direita debaixo do sovaco esquerdo produzia um ruído como produz o gás ao sair do intestino quando se defeca. Era um espectáculo caricato e a cantiga era simples e brejeira: Ó aí ó linda/rebatida na calçada/e o Toninho Sanfarriã/ ... ao camarada/. Cantava mais dois ou três versos do mesmo jaez e não lhe conheci outro talento. Era também um homem pacífico. Há na sua sepultura no Cemitério de Bragança, uma lápide que alguém consciente dos maus tratos que ele sofreu e a sua condição o obrigou, mandou colocar para memória futura. É um texto belíssimo que nos transporta para uma dimensão que não foi a que ele conheceu em vida.
Do Boneca recordo-me de o ver sempre preocupado em apanhar pontas de cigarro do chão e da sua disponibilidade para dar uma risada. Alguém lhe sugeria: -Ó Boneca, bota lá uma risada. E o Boneca abria a boca desdentada e numa atitude de desfastio, ria, ria. Era companheiro do Carlinhos da Sé no Albergue onde sofria o mau feitio do polícia Senhor Zé, que era de quem o Carlinhos fugia, subindo a correr a ladeira do Sapato e respondendo a quem o interpelava: -Porque foges Carlinhos? E o Carlinhos respondia: -Fujo do "ALGUERBE" que só há lá malucos!
Depois havia o Laribau.
Era um caso mais complexo que todos os outros. O Gustavo como era chamado a diálogo com quem não desejava confronto possuía uma inteligência e uma força física a ter em conta. Andava quase sempre a pé, usava samarra de pele de raposa, um guarda-Sol/Chuva que invariavelmente dependurava na parte traseira da gola da samarra se estava bom tempo ou no antebraço esquerdo se houvesse sinais de chuva. Sabia ler e escrever, penso haver concluído a Escola Primária e tinha fama de jogador de cartas sendo especialista na Lerpa e Batota.
É necessário haver conhecido o Laribau de perto para se poder aquilatar da complexidade física e intelectual deste personagem. Descendente de gente de bem da Edrosa (Vinhais) tinha portanto ligações com gente que possuía bens e prestígio. Ele próprio retirando o, digamos, mau-feitio, era capaz de manter uma conversa com qualquer pessoa de qualquer condição bastando para tal que o interlocutor não fosse dos que o queriam atazanar. Não era andrajoso como os antes mencionados, esses sim, autênticos indigentes. O Gustavo vestia sobriamente, como qualquer aldeão que por esta ou aquela razão se deslocasse à cidade para tratar dos seus afazeres. Era no entanto notório que possuía falhas pois o rosto embora de boa estampa era portador de qualquer defeito que o fazia ter a língua quase sempre fora da boca.Os seus olhos eram mansos, mas sempre alerta e o seu andar algo pesado refletia o poder que o hábito das longas caminhadas conferem aos que sendo andarilhos de sempre não têm pressa de chegar.
O problema era apenas um! A garotada não o deixava sossegar e ele utilizava toda a sua energia em vingar-se das afrontas e insinuações do garotio. Eu próprio e sem estar no grupo que o infernizava um dia, era eu garoto de 7 ou 8 anos fui apanhado por ele, tendo-me valido a presença próxima da Senhora Branca e do Senhor Amador país do Duarte e do Domingos. Eu conto.
A cena passava-se junto ao Correio, a trupe da Caleja alupou o Laribau e vai de o atazanar: - Laribau, mataste Cristo! E o Laribau corria atrás deles. Estrategicamente era mais conveniente fazer o assédio na rua larga, dava mais margem de manobra aos garotos e cansava o Laribau e resfolegava esperando a oportunidade de deitar a fateixa a um que fosse. A garotada foi descendo a 5 de Outubro e o Gustavo no seu encalço. Eu estava em casa e a minha mãe decidiu mandar-me ao Snr Raul Azeiteiro comprar um abano. Meteu-me três c'roas na mão e eu devia trazer o abano e comprar um rebuçado. O preço do abano eram 14 tostões. O troco dava direito a um rebuçado de fruta.
Não suspeitando dos acontecimentos que ocorriam no Tombeirinho, desci a Caleja e segui em frente direto às grades. A razão da minha escolha em não fletir para a Rua do Norte foi de que por ali havia mais que ver.
Tinha ali soto o Garrido Alfaiate, o Zé Ravel, Barbearia e o tio Feijão Sapateiro fazia costas com o tio Adolfo Rabichoilo pai do Jaime, que devia estar a fazer a sesta sentado na cadeira de Barbeiro. Do outro lado havia a Taberna da Tia Branca e do Senhor Amador. Estes assistiam ao rebuliço à porta da Taberna. 
Eu, qual João Sem Cuidados entretido como estava a apreciar o tio Adolfo a ressonar, já só dei conta quando me vi dentro do capote do Laribau. Vindo atrás do garotio e eu ter surgido ali inesperadamente, fê-lo pensar que eu era do grupo. Ah ladrão que te apanhei disse o Gustavo e eu pensei: -Estou f....o !!! Caíram as três coroas e o meu cabelo que era pelo de rato ficou espetado como um feijoal com as varas bem secas. Valeu-me o casal, país do Duarte, que vendo-me desaparecer dentro do capote lhe gritaram: -Larga o garoto que ele não está com os outros.
Bem, ajudaram-me a recolher as três coroas e a Senhora Branca foi comigo ao Senhor Raul porque eu mal falava. Com a idade e a presença constante do Laribau na cidade acabou-se o medo ao Gustavo que continuou atrás do rapazio e fui encontrá-lo um dia de Dezembro de 1970 no Campo de Instrução do Regimento de Caçadores Paraquedistas em Tancos andava eu no Curso de Pára-quedismo.
Tinha ido a pé a Tancos para ver um primo chamado Daniel que era da minha patrulha. Foi a partir desse dia que me propus tentar compreender a complexidade deste ser que não se realizou como homem dado que qualquer desígnio o fez ser quem foi. É de facto um exercício de escrita relaxante este de recordar estas figuras típicas do meu tempo de rapaz, de quem se contam histórias facetas, algumas verdadeiras outras nem tanto. Continuam presentes na nossa memória e a mim pessoalmente emociona-me quando penso na vida de alguns ou se calhar de todos. Triste! 
Bem-haja quem escreveu e mandou colocar na campa do Sanfarriã aquele texto realista carregado de honra e dignidade que devemos a todos os homens e mulheres a quem o destino maltratou.





Bragança, 24/07/2020
A. O. dos Santos
(Bombadas) 

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