«O país esqueceu-se desta gente?»

Isabel Pessôa-Lopes partiu a 4 de Julho do Padrão dos Descobrimentos para cumprir uma volta a pé pelas fronteiras terrestres e marítimas de Portugal. Ao fim de 80 dias, acabou a descobrir um país abandonado e esquecido que não passa na televisão. «Esta viagem mexeu muito comigo. Este é o meu povo, aqui estão as minhas raízes culturais. Descobri um país com paisagens belíssimas mas com o interior ao abandono».
Consultora de Riscos na Área Aeroespacial, ex-piloto das Asas de Portugal, ex-candidata a astronauta, Isabel Pessôa-Lopes, 44 anos, vive fora de Portugal há 20 anos. «Tenho vivido sempre em grandes cidades de França, Alemanha, Inglaterra, Japão, República Checa». Caminheira há muito, decidiu este Verão cumprir um sonho de criança: Durante 80 dias, entre 4 de Julho e 21 de Setembro, deu a volta a pé ao país passando em todos os pontos fronteiriços terrestres e marítimos (cabos de mar e faróis). 
A viagem de mais de dois mil quilómetros teve de tudo: Um calor infernal na região de Moura - «pensava que morria em Safara»- chuvadas no Minho e trovoadas em Montesinho, onde foi seguida por um lobo. Numa herdade da raia esteve duas horas em cima de uma árvore à espera que os touros saíssem lá de baixo. Nas zonas de prostituição de estrada, foi enxotada pelas mulheres e um pouco por todo o lado enfrentou episódios trágico-cómicos. Um guarda da GNR recusou abrir a porta da esquadra com medo que fosse assaltante e tivesse alguém por perto com ela. 
Além do desgaste físico e psicológico de uma caminhada intensa como esta, teve de lidar com o facto de ser mulher e caminhar em zonas muito despovoadas. Viu-se também obrigada a aliviar o peso da mochila de 15 para cerca de 10 quilos e acabou a fazer menos do que os 40 quilómetros por dia iniciais. 

 No litoral, contou com a autorização da Direcção de Faróis da Autoridade Marítima Nacional da Marinha Portuguesa para ali pernoitar. Nas zonas mais despovoadas da raia, contou com o apoio incansável dos bombeiros e da rede de cinco mil caminheiros do CAOS (Círculo de Actividades Oxigénio e Sol). «Eles contactavam antecipadamente os presidentes das juntas de freguesia a pedir para me ajudarem. Dormi tanto em escolas vazias como casas de família como ainda numa herdade de luxo perto do Rosmaninhal». Por vezes, foi recebida pela banda filarmónica local. Numa ocasião, o presidente da junta foi buscá-la de tractor. A experiência, intensa e extenuante, foi emocionalmente avassaladora. 
«Foi um desgaste emocional e físico muito grande porque me levou a encontrar o país real que não vem retratado na televisão». Esta está longe de ser a sua maior aventura: «Já fui buscar pessoas à morte e já podia ter morrido várias vezes. Mas esta viagem mexeu muito comigo. Este é o meu povo, aqui estão as minhas raízes culturais. Descobri um país com paisagens belíssimas mas com o interior ao abandono». 
A Isabel chocou sobretudo o contraste entre o que viu e ouviu e o que vê todos os dias nas revistas e na televisão: «Não sei onde andam os jornalistas das grandes revistas e das grandes tiragens porque não conhecem o país e deviamconhecer e dar a conhecer. Temos pessoas de altíssimo valor, pessoas idosas que tiveram vidas incríveis, que ainda se levantam às seis da manhã para ir cultivar. Há histórias de vida por esse país fora que são exemplos para a juventude».

Na sua caminhada pela raia, entre Monsaraz e Miranda do Douro não encontrou uma escola aberta. «Não há jovens, não há crianças, as terras não são povoações, são despovoações». Ao fim de uma caminhada e em exaustão chega-se e não há um café, uma mercearia, não há rede de telemóvel, não há multibanco, nada. Tudo o que existe é uma população envelhecida, abandonada e esquecida por muitos, incluindo as próprias famílias. Os velhos mostram fotos dos netos com bebés, alguns têm hoje mais de 20 anos e nunca mais os visitaram. «O país esqueceu-se desta gente?». 
Confessa não ter visto fome: «Vi muita miséria mas ninguém a passar fome».
Em contraste com a pobreza que encontrou em zonas da raia, Isabel confessa ter encontrado uma beleza natural invulgar: «Descobri um país muito mais belo do que estava à espera. Temos uma costa litoral que mete inveja a qualquer país. No campo, temos sítios lindíssimos». 
Isabel chegou ao Padrão dos Descobrimentos, em Lisboa, a 21 de Setembro com mais de 8 mil fotos, muitas histórias por contar e com uma visão mais concreta do que Portugal necessita. «Portugal tem bom clima, bons solos para cultivar, bom peixe, boa carne. Nesse aspecto, este povo está abençoado. É por aí que vamos dar a volta, não é pelos nossos Bancos nem pelos nossos governantes», diz. 

 «Saio desta viagem mais confiante porque encontrei gente com maior fibra para dar a volta do que o tal país virtual e cor-de-rosa que passa na televisão. Essas pessoas que aparecem todos os dias na televisão não têm calibre nenhum para dar a volta. As pessoas que eu acho que vão ter força e garra e vão vencer são as pessoas com que eu conversei no interior porque já estão habituadas a fazer sacrifícios e sabem como se governar».
Nuno Ferreira; fotos - Isabel Pessôa-Lopes
in:cafeportugal.net