quarta-feira, 15 de agosto de 2018

"Acederem ao meu Gmail é acederem à minha vida."

Fomos ver quem (e em que situações) pode aceder aos seus dados pessoais em emails, redes sociais e apps de mensagens, durante a vida e depois da morte.
A dúvida instalou-se quando o Supremo Tribunal Alemão decidiu, em julho deste ano, que os pais da adolescente de 15 anos que morreu em 2012 podiam aceder à conta que esta tinha no Facebook. Objetivo: verificar se a sua morte terá resultado de um acidente ou de suicídio. A empresa foi obrigada a dar acesso aos pais, apesar de ter contestado que isso violava o direito à privacidade. À Reuters, Ulf Buermeyer, ativista de direitos sociais alemão, contra-argumentou: “Enquanto os pais tiveram de perder anos no tribunal para poderem ler as mensagens da filha, a NSA e os Serviços Federais de Inteligência [alemães] conseguiam-no fazer com apenas uns cliques do rato”. Afinal, quem pode aceder aos dados pessoais de um utilizador enquanto este está vivo e depois de estar morto?

Os emails e escutas telefónicas são cenários para os quais a Polícia Judiciária e os tribunais estão preparados, mas intercetar chamadas de WhatsApp e ter um quadro legal que estabelece quem pode aceder a dados pessoais (e como) depois da morte são áreas que em Portugal ainda não têm regulamentação. Mesmo assim, há empresas que conseguem aceder a estes dados sem enfrentarem muitos problemas, graças a aplicações que desenvolvem para esse efeito. Uma coisa é certa, explica o advogado David Silva Ramalho: “Acederem ao meu Gmail é acederem à minha vida, não é comparável a uma busca à minha casa”.

Em que situações podem ler o meu email e aceder ao meu WhatsApp?
A palavra-chave para se poderem ler emails e mensagens de plataformas como o Gmail, Hotmail, Facebook, Messenger ou WhatsApp é “consentimento”. Para aceder a cada programa, o procedimento técnico final é diferente e, mesmo sem consentimento, as autoridades podem ver os seus dados pessoais, se considerarem que há um motivo forte para o fazerem. A questão que fica é: como é que o fazem? Em Portugal, há procedimentos para se fazerem “escutas” a chamadas, intercetar SMS e apreender emails, mas o caso fica mais difícil com aplicações como o Facebook Messenger e o WhatsApp.

“Podem ver o seu email aqueles que tenham acesso à password [palavra-passe] do mesmo”, explicou ao Observador Armando Dias Ramos. É inspetor chefe na Polícia Judiciária, professor adjunto convidado no Instituto Politécnico de Beja e autor do livro “A Prova Digital em Processo Penal: o Correio Eletrónico”.

“Há dois tipos de email: aquele a que se tem acesso apenas a partir do computador, quando as mensagens são descarregadas do servidor da empresa, usando programas como o Outlook por exemplo, e os chamados Webmails, como o Gmail e outros, cujas mensagens não são descarregadas do servidor e às quais podemos aceder em qualquer dispositivo com acesso à Internet”, explicou o inspetor da PJ.

Quem determina que se pode ler o email de alguém? “Apenas um juiz tem a autoridade para apreender o correio eletrónico”, esclarece David Silva Ramalho, advogado na Morais Leitão e especialista em Cibersegurança e Proteção de Dados. “Frequentemente, o Ministério Público faz uma comparação com o regime das cartas físicas”, refere o jurista, advertindo que esta situação tem criado diversos problemas, porque são “realidades diferentes”. Um dos casos é o tal acesso a Webmails. Quem acede a uma conta de email através de um browser está a receber dados alojados em servidores que estão fora do país. “Afeta a soberania de outro Estado”, argumenta o advogado.


“A polícia pode aceder à informação que está no computador, mas o que é desejável é copiar literalmente o computador para evitar contaminar a prova. Outra alternativa são os live forensics [aceder diretamente ao computador para encontrar a informação] (como permite o artigo 15, número 5 da Lei do Cibercrime)”. É nesta última situação que se cria o problema, porque alguém que tem um mandado para aceder a um email num computador, com palavra passe, acede a informação que está alojada noutros estados e, mesmo sendo permitido pela lei do Cibercrime, vai contra a norma internacional, a Convenção sobre o Cibercrime.

Contudo, mesmo obtendo uma ordem judicial, a verdade é que sem password não se consegue fazer muito, explicam. No caso dos emails que são pirateados, como disse Armando Dias Ramos, o que acontece é “o acesso aos webmails ser realizado em pontos wi-fi que não são fidedignos e, a partir daí, podem ‘snifar’ os dados de acesso e ter acesso ao mesmo”. Ou seja, o princípio passa por conseguir a chave para depois poder entrar na casa e não arrombar a porta (porque é mais fácil roubar a chave).

Em Portugal, só quando está em causa um processo criminal é que podemos aceder a estes dados de forma coerciva, mas não vale tudo e o tema cria debate entre juristas, como diz David Silva Ramalho: “Há divisão na doutrina. Posso ser compelido a facultar a minha palavra passe?”. É que para o advogado, quando se faculta a palavra-passe viola-se o “direito à não incriminação”. Por isso, não se pode acusar de obstrução à Justiça quem não quiser fornecer a sua password. “A polícia normalmente pede, mas não obriga. Se o arguido não der, não tem consequências”, conta o advogado.


Depois de as autoridades conseguirem a palavra-passe, o processo para ler emails tem pouco de cinematográfico, como explica David Silva Ramalho: “Normalmente, [a busca] é feita por um perito da Polícia Judiciária. Senta-se à frente do computador e faz a busca com base em termos de pesquisa que, normalmente, são aprovados previamente. Depois, a polícia transfere para um disco externo”. Mas Dias Ramos deixa o aviso para as situações em que é preciso aceder a emails: “No fim, se o processo for público, qualquer pessoa com interesse legítimo pode ter acesso a todos os dados recolhidos”.

Como é que isto funciona em aplicações como as do WhatsApp ou do Messenger, que permitem fazer chamadas e trocar mensagens? “Por um lado, existe a criptografia [tecnologia que permite comunicação segura, para que não seja lida por terceiros] e, por outro, não estamos a falar de chamadas normais mas sim VoIP, ou seja voz sobre IP, isto é, não utilizam uma operadora mas dados de tráfego da Internet”, explica Armando Dias Ramos. Numa escuta, um juiz pode permitir o acesso às chamadas e, depois, as operadoras gerem com a Polícia Judiciária a recolha das provas. Mas como estas aplicações funcionam por dados móveis ou Internet, a informação não passa pelas operadoras.

Não é por isso que é mais “seguro” utilizar estas aplicações. Como em Portugal apenas o Juiz de Instrução Criminal pode permitir o acesso a estes dados, depois o pedido tem de ser gerido entre a Polícia Judiciária e empresas como o Facebook e ou a Google (e não com as operadoras), que funcionam com ordenamentos jurídicos diferentes. Nestes casos, o malware ou “software espião”, como conta o inspetor, “revelar-se-ia muito útil para a investigação criminal”. Ou seja, os programas que permitem gravar à distância estas novas formas de comunicação em smartphones. “Em países como Espanha e Itália já se encontra legislada esta forma de atuação”, explica Armando Dias Ramos. Mas em Portugal “não há previsão legislativa e, se alguém o utiliza, está a cometer uma ilegalidade, ou seja, a obter prova proibida.”


Ao Observador, a Google esclareceu que tem um “relatório de transparência” relativo aos pedidos de informações provenientes de entidades sobre dados pessoais de utilizadores para todos os países. De Portugal, na última metade de 2017 (os dados são semestrais), houve 610 “solicitações de divulgação de dados de utilizadores” de 721 contas. No fim, 64% destes pedidos tiveram “alguns dados produzidos”.

Preparar o meu testamento digital
Isto quer dizer que, desde que não existam suspeitas criminais sobre um utilizador, se este tiver cuidado e não tiver partilhado as suas passwords, o acesso às mensagens e fotografias está a salvo de olho alheio? No mundo digital, nunca nada é 100% certo, como comprovou o recente caso que envolveu a empresa de análise de dados britânica Cambridge Analytica e o Facebook.


E depois da morte? Mesmo “além da morte” há “reserva da intimidade da vida privada”, adverte David Silva Ramalho. Já referimos o caso do Supremo Tribunal Federal Alemão, no qual uma mãe “herdou” a conta de Facebook da filha de 15 anos. O objetivo da família era descobrir se a rapariga se tinha suicidado, mas criou um precedente que provocou bastantes divergências. “Na Alemanha, comparam a entrega do Facebook à entrega de um diário, mas isso cria um problema: estamos a permitir o acesso à reserva da intimidade da vida privada de terceiros”, argumenta o advogado. Podem existir casos em que haja “interesses preponderantes”, mas o respeito pela vida privada costuma prevalecer.

Ou a situação “está contratualizada” ou, depois de morrermos, não há muito a fazer, porque em Portugal não há uma resposta para estas situações digitais, explicou o jurista ao Observador. Por isso, “o problema não se tem colocado muito além das seguradoras [que querem ter acesso à informação de pessoas mortas para justificar poderem não estar obrigadas a pagar montantes devidos]”, explica David Silva Ramalho. Contudo, as principais empresas com acesso a grande volume de dados pessoais, como o Facebook e a Google, têm protocolos para estas situações que podem ser preparados durante a vida do utilizador.

O Facebook e o Memorial que fica para os amigos
No Facebook, há um memorial online. Desde fevereiro de 2015 que a empresa que detém as maiores redes sociais do mundo (Facebook, Instagram e também o WhatsApp) tem protocolos para o que acontece depois de o utilizador morrer. Se um utilizador escolher um “contacto legado” da sua rede de amigos do Facebook, após a morte a sua conta pode ser transformada num “Memorial” e o contacto escolhido pode marcar uma publicação no perfil da pessoa, responder a novos pedidos de amizade e atualizar a foto de perfil e a foto de capa.

Como explica o Facebook, este contacto pode gerir conteúdos da conta memorial e fazer download das fotografias carregadas para a rede social, mas não vai ter acesso às mensagens privadas que foram trocadas com outros utilizadores (quem as recebeu, contudo, continua a tê-las, neste caso, como uma carta). As mesmas opções são possíveis para o Instagram. Quem não quiser escolher alguém para gerir a conta depois de morrer ou, sequer, para manter o perfil ativo, pode optar por avisar o Facebook que quer que a sua conta seja apagada após a morte (um pedido que também pode ser feito pelos familiares). No entanto, se não houver nenhuma informação, a política é criar automaticamente uma página memorial.

Sobre a morte, a Google tem uma política diferente. “Reconhecemos que muitas pessoas morrem sem deixar instruções claras sobre como gerir as suas contas online”, esclarece a Google na página dedicada a receber pedidos sobre contas de utilizadores falecidos. A empresa articula-se com familiares ou representantes de um falecido para fechar uma conta ou, em certos casos, fornecer o conteúdo de uma conta “após uma cuidadosa análise”. Em qualquer caso, a Google garante que não fornece senhas de acesso dos utilizadores falecidos, para “manter as informações das pessoas seguras, protegidas e particulares.”


Como a empresa também gere plataformas como o YouTube, Gmail ou Blogger, o mecanismo que permite garantir o que acontece após a morte do utilizador, conforme explicado pela empresa ao Observador, é o “Gerenciador de contas inativas”. Aqui, é possível deixar o contacto de “alguém de confiança” e definir que dados se partilham com esta pessoa escolhida (pode ir do acesso ao canal YouTube ao Gmail).

O Observador tentou contactar a Microsoft e a Apple, para saber que políticas pós-morte dos utilizadores têm, mas até à data de publicação deste artigo não obteve resposta. Na Internet, a Apple informa que é necessário contactar diretamente a empresa para aceder aos dados da iCloud ou de um MacBook de alguém que já morreu. No caso da Microsoft, também é preciso pedir acesso à empresa (já no LinkedIn, detido pela mesma empresa, há uma página para comunicar a morte de usuários e apagar a conta). As duas empresas referem nos websites oficiais que, na maioria dos casos, apenas permitem o acesso a informação através de ordens judiciais.


Além disso, é possível deixar informações sobre como aceder e como devem ser tratados os dados digitais por familiares ou pessoas próximas, de outras formas seguras. Armando Dias Ramos admite que os “herdeiros legais possam aceder a dados digitais do defunto”, caso este lhes deixe, por exemplo, a password do Facebook. Neste caso, a empresa “nem iria perceber”.

Há apps a verem o que faço online
Se depois da morte, as respostas são ambíguas, durante a vida, os limites sobre aquilo a que podemos ou não aceder também não são claros. A lei pode ser clara quanto à obrigatoriedade do consentimento para aceder a dados pessoais de terceiros, mas como mostrou recentemente o caso que envolveu a aplicação da La Liga, há apps que utilizam o microfone do smartphone para gravarem o som que os utilizadores estão a ouvir. E não estamos a falar de “software espião” utilizado para encontrar criminosos, como já referimos. No caso da app da La Liga, os responsáveis da liga de futebol espanhola alegaram que acediam ao microfone para  tentarem descobrir emissões ilegais de jogos em bares.


Não são os únicos a recorrer a este tipo de mecanismo. Há programadores que estão a conseguir aceder a emails do Gmail, que os utilizadores julgavam ser confidenciais, como mostrou o Wall Street Journal em julho. No final, a resposta da Google a esta polémica foi: “Mas deram consentimento” para que este acesso fosse permitido.

Não há dúvidas: “Tem de haver consentimento”,  explica David Silva Ramalho. O problema nestas situações, nas quais as aplicações e programas acabam por ter acesso a informação pessoal, é que muitas vezes não é claro quem deu autorização. Este cenário leva a que, como contou o El País em agosto, milhões de utilizadores estejam vulneráveis só por instalarem uma app que julgavam ser inofensiva. Tal como aconteceu no caso que envolveu a Cambridge Analytica — os utilizadores achavam que estavam a fazer um teste de personalidade para fins académicos e os seus dados foram utilizados posteriormente para ajudar a eleger Donald Trump.


No início de agosto, o aviso veio da própria polícia espanhola: “Se descarregou alguma destas aplicações, elimine do seu dispositivo”. O apelo foi feito com base num estudo da Adguard (que disponibiliza uma extensão para browser como o Adblocker, para bloquear anúncios) divulgado em julho, e que levou as autoridades a darem vários exemplos de aplicações e extensões para browsers que vêem o que o utilizador faz — todas as apps que foram divulgadas (Block Site, Adblock Prime, Speed Booster, Battery Saver, AppLock, Clean Droid, Poper Blocker y CrxMouse) pertencem à mesma empresa, que está registada nos Estados Unidos da América, a Big Star Labs. Trata-se de aplicações para limpar espaço no smartphone, poupar bateria ou impedir anúncios nos browsers. Problema: além de fazerem o que dizem, vão um pouco mais longe e gravam todo o histórico de navegação dos utilizadores.

Observador.pt

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