quarta-feira, 8 de agosto de 2018

Os operários da construção - MEMÓRIAS de Bragança

Por: António Orlando dos Santos 
(colaborador do "Memórias...e outras coisas...")

Ópera? Claro,claro, venha a ópera pois a ópera é boa para os operários! Mais ou menos com estas palavras respondia a personagem interpretada pelo actor António Silva numa passagem cómica de um filme português dos anos de ouro do cinema Nacional. 
Sem querer entrar em análises complexas chamo à colação que o vocábulo ópera, define o espectáculo musical que é a coroa de glória da encenação de uma história que é musicada e se leva à cena como algo que todos gostam e é considerada como a mais conseguida das manifestações artísticas. Define também a obra que é feita por operários que constroem edifícios ou concretizam outras obras que impliquem planeamento e execução manual.
Na primeira os personagens chamam-se artistas e no segundo operários.Quer Isto dizer que artista e operário são apenas duas maneiras diversas de dizer a mesma coisa. O operário é um artista e o artista é um operário. Fui criado numa família de operários da construção civil. Habituei-me desde pequeno a admirar o empenho e competência de operários que construíram o património edificado que se pode apreciar hoje em Bragança. Cingir-me-ei apenas à nossa cidade e Distrito, evitando assim dispersão de imagens e lembranças de cenas que fui apreciando desde tenra idade, sendo algumas banais, outras mais importantes e outras memoráveis pelo que tiveram de faceto ou hilariante.
O meu pai sendo oficial de alvenaria de base sabia fazer mais ou menos tudo o que dissesse respeito à arte. Como era empreiteiro tinha na sua folha de férias alguns operários que ele considerava de grande valia.
Começo por lembrar os que me recordo de trabalharem numa obra que ele fez devia ter eu seis ou sete anos ao seu grande amigo Fernando Lelo no início de Vale de Álvaro logo depois das Obras Públicas. Aí trabalhavam o tio Miguel Chamorro, pedreiro de mil obras que para além da arte sabia um dialeto cantado pelos alvenéus que quando levantavam os blocos de granito e os colocavam no muro ou parede e com os pés de cabra o tentavam colocar na posição horizontal e prumada para a seguir porem outra e assim concluírem as quatro paredes que pelo menos até à altura do primeiro andar era construída em perpianho (granito). Era uma melopeia que dizia : -Oupa pedrinha oupa ,não chores que vais para a obra.... e mantendo o mesmo ritmo e dolência até que outra lhe sucedia.
Não compreendia eu essas das pedras chorarem, pois dizia-se nos versos de La Paloma: /Mas las piedras jamás paloma que van a saber /de amores/..? Perguntava eu ao tio Miguel porque dizia aquilo, se elas não choravam. Ele respondia-me que choravam, as pedras antigamente como agora choram os calhaus! Era coisa demasiada para a minha cabeça! No meio de tantos homens, cada qual com a sua sabedoria popular sempre na ponta da língua eu era um sortudo pois nunca ficava sem resposta .
Outros havia mais intelectuais tendo o carpinteiro José Augusto, o Carronha, um irmão a quem chamavam o Ciências que eu adorava ouvir falar pois era de uma comicidade absoluta.Querendo parecer um pouco mais sabido do que era efectivamente trocava o v pelo b e os outros riam-se fazendo-o arreliar. Mas eu adorava-o pois a mim tratava-me com um carinho que só mesmo quem é amigo das crianças é capaz de fazer!
Trabalhava nessa obra um Senhor que era trolha e que eu também admirava muito, chamava-se Ribeiro e era homem alto e esbelto e morava Além do Rio. Recordo que todos o estimavam muito.
Sendo miúdo e sempre que não estava na escola, ia levar o café ao meu pai, que quando eu chegava parava um pouco e bebia o café que a minha mãe me entregava numa cafeteira com uma tampa que tinha capacidade para meio litro. Ainda hoje recordo a admiração que eu sentia por ver o meu pai beber o café assim com um ar tão dócil que eu pasmava .Ele era um tipo viril com pudor q.b.e nesses momentos de repouso parecia-me um guerreiro após a refrega da luta tentando retemperar o ânimo e as forças para depois retemperado voltar à luta que era uma constante da sua personalidade! As verdadeiras memórias que tenho da minha meninice, as mais vividas de todas são do grupo de operários que faziam companhia ao meu pai no dia a dia do tempo em que não chovia nem nevava e se podia trabalhar e consequentemente ganhar a féria que tanta falta fazia para dar de comer à prole que frequentemente era numerosa.
Depois da primeira casa construída ao Lelo fez uma segunda logo a seguir que é a azul que ainda tem a cor de origem, um azul bebé que contrasta com as cores mais sóbrias das outras que a flanqueiam, Nessa, a azul trabalhou o meu irmão Armando e o Zé Santana que creio, puseram o primeiro azulejo daquele tipo em Bragança.
No tempo em que se mudou para Izeda construindo a casa do professor Lúcio, trabalhava com ele um carpinteiro que vivia no Bairro S.João de Brito chamado Carvalho, outra espécie, rara para mim,de homem. Comia sempre a sopa quando tomava as refeições,e para espanto meu punha-lhe sempre um copo de vinho para a condimentar. Eu sentado à sua frente assistia ao ritual da tomada por assalto de um prato de caldo verde ou sopa de legumes pelo carpinteiro Carvalho, qual Roble castelhano, que depois de uma trovoada tivesse ainda a copa seca para absorver mais um copo de palhete e depois dar um estalido com a língua para demonstrar a satisfação. Perdi-o de vista e o que me resta dele é uma recordação curiosa de saber o que se passou a seguir.
Deixo a equipa do meu pai para falar de outras obras de vulto a que fui assistindo mais curioso das relações humanas do que da obra de arte propriamente dita. Não me recordo da construção do Tribunal de Justiça, mas lembro vagamente a sua inauguração. Havia uma espécie de plataforma onde hoje se encontra o Shoping Center, que serviu de tribuna de honra para as Entidades que discursaram nesse dia .É muito vaga a imagem que guardo e sinceramente não juro que a haja visto ou a tenha construído dos relatos da garotada, mais velha. Já da casa dos Magistrados recordo-me da sua construção e já no final o meu tio António, irmão da minha mãe andar a pintar as salas da frente e estar preso não sei porquê. Eu quando soube que o meu tio seguia dali para a cadeia Comarcã e não ia ver a minha mãe a casa perguntei à minha mãe, claro, a razão porque o meu tio estava preso. A resposta da minha mãe como sempre foi lapidar! Evitava assim repetição da minha parte. - Foi por ir à missa duas vezes ! Remédio Santo, até hoje só vou uma vez à missa não vá o diabo tecê- las. Construíram depois as Corporações e Previdência e seguidamente a Taça que ainda continua lá, bela e elegante qual Fontana admirável das Praça Italianas. Aqui começaram por montar um estaleiro igual ao narrado no Memorial do Convento, pois quando da leitura desta obra de Saramago foi essa imagem que apareceu em mim para me orientar. Aproveitaram os operários vindos de "Ó por aí abaixo" muito particularmente do Minho e com cinzel e marreta esculpiram uma das peças mais lindas das colocadas nas Praças de Portugal!
Devo referir aqui três canteiros que foram os meus heróis nessa miríade de tardes que eu passei sentado ou girando de umas para as outras tendas de lona sob as quais trabalhavam de manhã aos pregos da noite, o Coelho, o Silva e o Minhoto. O Minhoto era o mais velho e morava no cortiço que era a casa do Marcolino no BairroS.João de Deus. Usava umas chancas de madeira com uma tira de sola por cima do peito do pé, à minhota que dizia ele não haver no mundo calçado mais confortável. Era de uma destreza com o cinzel que só posso descrever com os versos de Gedeão, que dizem: - Álvaro Góis, Rui Mamede/Filhos de Acácio Brandão/Naturais de Cantanhede/Pedreiros de profissão/... (lindo este poema).
O senhor Silva era um homem falador e sempre pronto a responder-me às questões mais insólitas por mim formuladas. Era ele também um artista. Mas detenho-me agora no Senhor Coelho que era o mais completo porque foi ele quem finalmente conseguiu esculpir o peixe que encima a coluna da Fontana que outros tentaram fazer mas invariavelmente partiam ao tentarem fazer o furo que levaria a água à boca do peixe para fazer o esguicho.
Prontificou-se o Coelho em resolver o assunto. Céptico o encarregado autorizou. O Coelho colocou o bloco de granito sobre a banca de trabalho e começou por onde os outros terminavam, o furo para a água.! Assim a pedra tinha espessura suficiente para aguentar o atrito que a broca fazia e seguidamente começou a esculpir o peixe de pedra que olhos infantis mas observadores tomaram como o mais bem feito e lindo do mundo!
Antes deste tempo, na década de quarenta tinham construído o Banco de Portugal. Obra digna do vocábulo italiano OPERA. Só pude apreciar esta já tarde quando alguns anos depois entrei no rés do chão e pude olhar a grade de ferro da tesouraria e os tectos e lambris ali colocados.
Não falarei ou antes escreverei nada acerca do destino destas coisas, vou apenas dizer que o pintor mestre se chamava Eduardo Passos Ramos, natural de Viana do Castelo e que foi discípulo de Almada Negreiros. Casou em Bragança com uma tia minha, Maria do Céu, com quem viveu até à sua passagem para o além. Dele durante a minha meninice havia duas pinturas que eu conhecia e que hoje me pergunto onde teriam ido parar?Encimavam as duas montras da Ourivesaria Ferreira e eram dois Escudos heráldicos com as armas de Portugal, com castelos e quinas sobre esfera armilar e que eram já símbolos da República. Eram dois desenhos pintados com perfeição e que cumpriam o dever de garantir que ali se vendia ouro de lei.
Quando eu andava na escola primária começou a construir-se a Escola Industrial e Comercial de Bragança. Obra de vulto trouxe para Bragança muitos operários, sendo o encarregado pai de um rapaz que chegado foi colocado na minha classe e se chamava Almansor, nome estranho e que não vi aposto a ninguém mais! Foram estes homens que aqui aplicaram o seu saber e transmitiram aos aprendizes brigantinos saberes técnicos que não havia antigamente alguém qualificado para o fazer.
Sem pretender saber exactamente quando chegaram a Bragança alguns operários que se fixaram por cá casando com mulheres brigantinas que lhes deram filhos que hoje são gente da nossa e que são fruto da boa relação que sempre os brigantinos tiveram com os forasteiros.Nomeio alguns meus conhecidos e que é ou foi gente por nós benquista. O pai do Telmo Furão,O pai do Micá, o Cassiano pai da São, minha comadre e sobrinha do Romeu, o Joffre que morava na Boavista, os dois irmãos Leal, Serafim e Alfredo e um número impossível de descrever de gente capaz de fazer obra fina e que vieram em missão de paz e civilização.
Regresso um pouco mais atrás no tempo e lembremos uma pléiade de pintores de estatura completa; O tio Miguel Ripolan, O Xixelá que faleceu num acidente na Igreja de Vila Nova perdendo-se para a família um pai extremoso e para a cidade um pintor completo. O Catalão pai e também o filho, que é da minha idade e que quando lhe perguntaram quem era, respondeu: -Catalan, pintor de tela e filho de pais italianos. O Orlando filho da Túlia segunda mulher do meu pai, o Dinis Salazar, que esteve em Moçambique e que depois do meu amigo Ligacão era quem mais gente conhecia em Bragança.O Senhor Carlos Alves que veio com o Ernesto Pires e trouxe com ele ideias de esquerda sindicalista da Escola de José Fontana. Nos 1ºs de Maio antes do 25 de Abril era sempre encarcerado por segurança para que não desse vivas ao Socialismo.
Mas maiores na arte eram o tio Adriano Miguelzinho e seu filho. Ao tentar lembrar-me de outros mais que lembrem à maioria dos ainda sobrevivos recordo o grande Guedes que acabou em servente, por incapacidade física e até mental ocasionadas pelas sevícias sofridas nas prisões da PIDE depois do levantamento do BC3 sendo ele sargento de Infantaria. Era irmão do África e tio do meu amigo Gunter Ajax Peres. O outro era o Doblo, corruptela de Doble que tinha uma hérnia grande e que quando não trazia a funda se lhe notava e a garotada aproveitava para o atazanar.
Por hoje contarei apenas mais uma história de um Senhor Artur que era carpinteiro do meu pai e eu adorava ouvir. Havia sido combatente na Flandres. Ficou-se pela França depois da Guerra e dizia-me com frequência: -Abençoado pão que comi na França. Era homem agradecido. Quando trabalhava usava frequentemente a fita métrica. Ás vezes enganava-se e então zangado consigo mesmo, fechava o punho e batia com ele na testa dizendo: --Artur, burro, Artur, burro! Escusado será dizer que todos lhe chamavam o tio Artur Burro. Mas não era, bem pelo contrário!
Havia também nas hostes do meu pai um homem fantástico a quem o meu progenitor devotava um respeito que era mais veneração, chamava-se Mário Arreguila.Senho de certa idade era assim chamado por ter um olho que sofrera qualquer acidente e que mostrava a órbita com um misto de branco e cinzento e com a particularidade de estar sempre choroso pois não conseguia conter as lágrimas que ele frequentemente limpava com um lenço. Estava o meu pai para Lisboa quando ele faleceu.Vi o meu pai chorar por esse seu grande amigo.
Não tenho notícias de um outro rapaz que naqueles anos da década de sessenta trabalhava na equipa, era o António Gandariço. Jovial ,bom artista e muito trabalhador era um pouco o meu herói! Creio ter emigrado e não mais o vi. Era de Além do Rio, Bairro da procedência da maioria dos operários que faziam parte da equipa que com ele trabalhavam.
Seria obra não realizável, querer, a tantos anos de distância nomeá-los a todos. Não é também imperativo que o faça. Quem ler esta crónica tratará de adicionar os que eles relembram e eu omiti por incapacidade de registo na parte conferível do meu baú de recordações.
O último que mencionarei não era da equipa que ao sábado à tarde se juntavam à porta de minha casa para receberem o seu salário num cerimonial que ainda recordo com saudade. O meu pai punha uma mesa no pátio da casa e fazia uns montes de moedas. Numa caixa de lata tinha umas notas de banco também separadas no seu valor facial e tinha uma folha de papel que para além do nome do operário tinha muitas quadrículas em fileira e o dia da semana com indicação de Manhã e Tarde. Fazia a chamada e entregava o salário ao titular. Havia sempre um sorriso nos rostos de todos quando alguém pegava na féria e o meu pai dizia: -Bom domingo na paz do Senhor. O ritual de sábado era algo de místico e transcendente, pagava-se o suor dos homens com o  dinheiro que não tinha o valor sagrado do esforço e suor da humanidade.
Vamos então ao último pois como diz o Evangelho os últimos são os primeiros.
O Citote era de Viseu e sendo jovem e não tendo trabalho meteu-se no comboio e foi parando nas várias terras onde foi passando sempre à procura de trabalho! Não conseguiu até que chegou ao fim da linha e leu na parede da Estação a palavra Bragança. Desembarcou e ao sair viu um homem sentado à porta que dava pedaços de pão a um cão rafeiro que se ia chegando. Pensou . -se dão pão ao cão também mo darão a mim. Saudou o homem e contou-lhe a sua história. O homem disse, venha comigo. Levou-o à taberna do Humberto e pagou-lhe o que lhe ofereceu para matar a fome, uma posta de congro frito, um molete e uma caneca de vinho. Disse-lhe onde podia dormir e mandou-o estar no dia seguinte num lugar onde lhe daria trabalho.
Desde esse dia o Citote fez uma jura: -Não saio mais daqui. E cumpriu, cá morreu rodeado dos filhos que ele gerou na terra em que até aos cães dão de comer. Bragança 

08/08/2018





A. O. dos Santos 
(Bombadas)

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