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SOBRE O BLOG: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blog, apenas vinculam os respetivos autores.

terça-feira, 11 de junho de 2013

PERDIZ, em Comeres Bragançanos e Transmontanos

“A Serra de Montesinho, para só falar nesta, com os seus 1596 metros de altura de onde brotam sete rios e centenas de regatos, povoada de espessas matas coníferas, de corças, javalis, perdizes entre quais a cinzenta...”
[Padre Francisco Manuel Alves]


No opúsculo Trás-os-Montes, o Senhor Abade tem o cuidado de salientar que entre as perdizes existentes na Serra de Montesinho, também se achava a cinzenta. Porquê este cuidado?
Os tratadistas da arte venatória enumeram as diversas espécies de perdizes, David Montenegro afirma que a mais bela é a perdiz vermelha conhecida e caçada em diversas regiões do País, dá indicações sobre a perdiz rubra mais afoita em Espanha, menos no Sul de França, ainda em Portugal, mas não fala na cinzenta.
O doutor Águedo de Oliveira, na obra D. Carlos Atirador de Caça, fornece-nos fundadas informações relativamente à milenar actividade – a cinegética – técnicas e modos de caçar, lembra um notável ensaio de Ortega y Gasset acerca dos predicados que o caçador deve possuir e na descrição de uma batida em França enuncia: “As charrelas, essas vêm juntas, em enorme bandada”.
Na revista Diana, número 207, Junho de 1966, João Maria Bravo apaixonado caçador e erudito na matéria, não fala na perdiz cinzenta, mas conta-nos a estranha aparição do visitante Maldito que começa por lembrar numa incursão nas terras de Bragança:” Tinha ido a Trás-os-Montes mais para conhecer um terreno de perdizes, novo para mim, do que à procura de grandes caçadas. O tempo estava de vento e chuva.
Viera de Bragança em cata daquele sítio de que me tinham falado e que, afinal, era mais de lobos de que de perdizes.
Começara a caçar tarde, já depois de almoço, com uma linha de mais quatro companheiros, arranjados ao acaso e sem possibilidade de escolha, pois eram todos os que na aldeia tinham espingarda, duas delas de um cano só.
Tudo isto e uns aguaceiros de vez em quando, à mistura com um vento forte a espalhar o pouco que aparecia, ajudaram bastante à miséria da caçada: quatro perdizes e uma molha de que nem os cartuchos, metidos no cinturão, se livraram”.
O conto, fantástico, principia quando o caçador resolve andar e lhe surge pela frente uma estranha criatura...e prossegue num pesadelo invocando a tragédia de Alcácer Quibir causa de muitos sofrimentos, um javali tremendo, mais um lobo demoníaco originador de males ainda mais horrendos. A mulher misteriosa contadora das andanças de Dom Diogo desapareceu, o dia tinha clareado, o caçador beneficiou do aparecimento de uma extraordinária cadela. Noutra caçada perseguiu uma perdiz, “escondida, lá muito no fundo, meio de calhaus”. Não de cor cinzenta, mas sim, a danação da mulher mistério.
No bem-humorado livrinho Barroso, Sal, Ironias e Gabarolice, o extrovertido caçador barrosão Padre Domingos afiança que nos anos quarenta do século XX, apesar de rara,a charrela ainda se via na Serra do Larouco.
No dicionário de Cândido de Figueiredo o termo charrela significa “espécie de perdiz”, e charrela é “perdiz parda da Beira Alta” e da Serra Montesinho, assim o atesta o dicionário de António Morais e Silva.
O Larousse anota a perdiz vermelha, a perdiz cinzenta, a batarvelle parente da perdiz vermelha e colin (perdiz da América) introduzida em França, tendo-se aclimatando facilmente.
O Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa não conhece o termo charrela, o da Academia de Ciências imita-o, mas ao contrário do primeiro, regista a perdiz cinzenta, avisando ser uma raridade. O Grande Dicionário da Língua Portuguesa, de José Pedro Machado dá a charrela como “perdiz parda da Beira e Trás-os-Montes. Também lhe chamam charela”, conclui. O específico Dicionário do Falar de Trás-os-Montes honra lhe seja, concede a paternidade da charrela a Bragança, referindo: “Charrela, s,f. Perdiz parda, cinzenta (Bragança), perdiz esbranquiçada (Barroso).
Estas e outras obras de referência consultadas permitem perceber a perspicácia do Senhor Abade ao salientar a rara perdiz, e a prova provada do agudo grau de oportunidade do grande braganção no contínuo esforço de valorização dos patrimónios locais está no facto de Agostinho Beça na obra A Perdiz, editada em 2005, por João Azevedo Editor, afiançar o seu desaparecimento. Escreve o autor: “Nos nossos dias (1989 e 1999), outros respeitáveis estudiosos das aves consideram-na simplesmente extinta em Portugal. Contudo, embora ninguém o afirme com segurança, a sua ocorrência é naturalmente possível nas regiões confinantes com a parte espanhola da área de distribuição na Cordilheira Cantábrica, na Galiza e Castela-Leão”.
A perdiz que tanto enlevo provoca aos amantes da observação das aves e desejo junto dos caçadores, é na Mitologia personificação do sobrinho de Dédalo, Talo ou Calo que ao provocar a inveja do tio levou-o a atirá-lo do alto de uma torre, acabando transformado em perdiz pelos poderes da deusa Minerva. Os gregos e os romanos conheciam-na por perdix.
A ancestral presença da perdiz em Trás-os-Montes está inscrita na Corografia Portuguesa e Descrição Topográfica do Padre Carvalho da Costa, ao referir a localidade de Vilar de Perdizes, concelho de Montalegre, acrescentando que em Castro Vicente, concelho de Mogadouro, havia muitos coelhos, perdizes, lebres e porcos monteses.
O Cancioneiro Popular Português, coligido por José Leite de Vasconcelos regista quadras que vão nesse sentido e, no referente ao termo de Bragança, além das quadras acrescenta a cantiga intitulada o Perdigão, cuja imagética recorda o universo rural do mundo que nós perdemos.

As quadras:

“O perdigão anda no monte,

Come da erva que quer;
É como o rapaz solteiro
Enquanto não tem mulher
(Recolhida em Paradinha – Bragança)
“A perdiz anda no mato
Depenicando seixinhos
Também eu depenicava
Na tua bocabeijinhos”
(Recolhida em Vale de Nogueira – Bragança)

A cantiga:


“ O Perdigão pela madrugada,

Pousa na flor, que na rama não pousava.
O perdigão pela manhãzinha,
Pousa na flor, que na rama não podia.
O perdigão, que de amores ali anda,
Pousa na flor, que pousa na rama
Variante:
O perdigão, que de amores ali anda,
Pousa na flor, que não pousa na rama.
O perdigão, que de amores ali ia.
Pousa na flor, que na rama não podia.
O perdigão, que de amores andava,
Pousa na flor, que na rama não pousava...”


No que tange às artes culinárias a perdiz sempre recebeu a afeição dos poderosos às escâncaras e dos humildes pela calada, pois os primeiros não levavam a bem terem de partilhar tão esplendorosa delicadeza culinária com os ventres ao sol. Se o exercício da caça distinguia a nobreza das outras duas classes, a requintada degustação também lhe cabia, compartilhada pelo clero.
A bela Infanta D. Maria (1538-1577), casou-se em Bruxelas com Alexandre Farnésio 3.º Duque de Parma, no baú contendo o enxoval também levou um caderno de receitas hoje conhecido como o Livro de Cozinha da Infanta D. Maria, nele constam duas receitas de tigelada de perdiz, a confirmar a dita predilecção pela veloz ave.
No Cancioneiro Geral de Garcia de Resende, podemos ler o modo como o poeta Álvaro de Brito Pestana se dirige ao Luís Fogaça, Vereador da Câmara de Lisboa, dizendo-lhe dos desejos de lisboetas notórios:

“Querem ser almotacéis,
e queriam ser juízes
por encherem
talhadores, e pratéis
de coelhos e perdizes,
e comerem”.(Início do séc. XVI)


O Vocabulário Português e Latino, de Rafael Bluteau, 1638-1734, além de fornecer judiciosas considerações referentes à perdiz e aos seus caçadores, não a esquece no que toca às artes culinárias, fala num caldo que se confecciona cozendo juntamente perdiz e a galinha, no tocante à olha podrida, enumera os ingredientes que a tornam num prato reforçado onde a perdiz é acicate donairoso.
Ao longo dos séculos a perdiz sempre usufruiu de fundado prestígio no cenáculo dos amantes de comeres sumptuosos, na opinião de conceituados críticos, Portugal só possui um prato a receber consagração no círculo da alta cozinha. Trata-se da perdiz à Convento de Alcântara, convento fundado nos primórdios do século XVII pelos Condes de Vimioso, cujas freiras deixaram para a posteridade um manuscrito contendo diversas receitas salvo por um oficial francês, que o ofereceu à mulher de Junot, estando publicado nas memórias da Duquesa de Abrantes. O emérito chefe Auguste Escoffier, (1846-1935), cozinheiro dos maiores desde sempre, incluiu a aplaudida receita no seu Guide Culinaire, trazendo-lhe projecção internacional.
Artistas e escritores de todos os quadrantes entenderam por bem gastar tempo e talento em louvor da perdiz, alguns ousaram até conceber receitas que pela sápida qualidade gerada estão nos anais das artes culinárias, caso do arroz de perdizes à Fialho de Almeida, das perdizes à castelhana criação de Bulhão Pato, existindo até uma receita das mesmas à Mário Soares.
Mais modestas nos ingredientes as receitas de perdiz originárias da cozinha oral também nos concedem folgados prazeres gustativos, os nossos avós manducavam-nas sempre que vinham a jeito, formulando elucidativos provérbios sobre a melhor maneira de serem cozinhadas, a fim de não perderem nenhuma suculência.

Eis alguns deles:


“A perdiz e o frade, de manhã ou à tarde.
A perdiz com a mão no nariz.
Do peixe a pescada, da carne a perdiz.
Do peixe a pescada, da ave a perdiz, da carne a vitela.
Não há carne perdida, a não ser lebre assada e perdiz cozida.
Perdiz é perdida, se quente não é comida.
Quem a truta come assada e cozida a perdiz, não sabe o que faz nem o que diz.
Quem aos trinta come lebre assada e cozida a perdiz, não sabe o que faz nem o que diz.”
Perdigão gordo, passara magra.”


O bragançano Artur Mirandela, democrata de quatro costados em época pouco propícia à defesa da democracia, devotava uma enorme paixão à caça, no livro Trás-os-Montes – Pessoas e Bichos rende homenagens a dois cães perdigueiros, o Dique e o Pólo, pela perícia e sagacidade no desempenho de levantar e apanharem perdizes, coelhos e lebres.

Comeres Bragançanos e Transmontanos
Publicação da C.M.B.

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