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SOBRE O BLOGUE: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite, Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blogue, apenas vinculam os respetivos autores.

sábado, 13 de outubro de 2018

A Santa e a Leitoa

Por: Antônio Carlos Affonso dos Santos
(colaborador do "Memórias...e outras coisas..")
São Paulo (Brasil)
Prequeté, prequeté, prequeté! A charrete subia a rua principal. Na boleia, mascando um pedaço de bom fumo goiano, ia o Souza, um legítimo africano de quatro costados. Pouco abaixo de seus pés, entre as rodas murchas do pneu careca e à sombra, ia o Viajante; um querido, e legítimo canino puro-sangue tomba latas. Vez ou outra alguém gritava para ele: - dia Souza!, ao que ele apenas murmurava um “dia” de muito mau grado. 
O Souza trazia na parte traseira da charrete, enrolada dentro de um saco de aniagem, a Neguinha; uma leitoa que foi criada dentro de casa, junto com os gatos e os cachorros da casa do Souza. Pois é, a pobre da Neguinha estava indo para o sacrifício, ou seja, estava sendo doada pelo Souza ao Padre Tito, vigário de Passa-Tempo, sendo a pobre uma das prendas que seriam rifadas na quermesse. 
Três quartos de hora depois, e novo prequeté, prequeté, prequeté. Na boleia o Souza, olhos cheios de lágrimas a responder:  “dia”’, entre uma cusparada e outra , e entre um esfregar de olhos e outro. O Souza estava chorando!. Todos em Passa-Tempo gostavam do Souza, e ao vê-lo chorando, perguntavam-se: o que teria acontecido?. Parou a charrete na venda dos Signorini, e depois de meia garrafa da branquinha, contou para a plateia de compadres e o vendeiro, a razão do choro. Foi o seguinte o que contou o Souza: - “...e que ninguém aguentava mais a Neguinha. 
Todo dia ela tombava o balde de leite da Dona Zéfa, mulher do Souza; por três ou quatro vezes pisara com os pés enlameados a roupa branca  no quarador, brigava a dentadas com os gatos e cachorros da casa, que viviam escalavrados. Mas, ontem foi o fim da linha!. A Neguinha deu um verdadeiro “baile” no “Souza e família a quatro”: - não se sabe como, a Neguinha conseguiu subir até o telhado da velha casa!. Da cumeeira, choramingava feito criança nova: - tinha medo de descer! O Souza tentou pegá-la pelo rabo, usando uma escada, mas ela escapara vezes seguidas, e ainda de quebra, dera-lhe uma dolorida dentada na perna!. Imagine só, morder a quem a tinha alimentado desde pequeninha!. A Dona Zéfa, aos gritos, quando viu  a “sangueira”, desmaiou. Um vizinho do Souza, o compadre Titõezinho, quis ir chamar o Dr. Valdomiro para atender a  comadre Zéfa, no que foi impedido pelo Souza: -... ele é um dotô marca barbante, purisso mêmo num achô nem a duença da fia do cumpade Justino!. Mal acabara de dizer estas palavras, o Souza viu o compadre Titõezinho cair da escada, o que resultou na quebra das duas pernas do mesmo. Quando a filha menor, a Magali, tentou chegar perto da Neguinha, uma ripa se partiu e ela caiu com “Neguinha e tudo” sobre o forro de madeira, que também veio abaixo. Por azar, caíram sobre a cristaleira e quebraram todos os pratos e todos os copos; e até uma reprodução da foto de casamento da dona Zéfa com o Souza. A mesa com as doze cadeiras dispostas no meio da sala também não resistiu. Praticamente não sobrou nada da sala. Depois do ocorrido,  resolveram que iriam matar a Neguinha; que ela seria transformada em torresmo e linguiça no dia seguinte. 
Arranjaram um cantinho para a Neguinha dormir num canto da sala, agora sem os entulhos, ao lado do rádio Capelinha de quatro faixas e do quadro em feitio de televisão, com a imagem de Nossa Senhora Aparecida. Este quadro, que a Dona Zéfa trouxe de Aparecida do Norte, era o oráculo da família, portanto centro das orações; e estava em lugar considerado sagrado. 
Tudo pronto para a “matança” do dia seguinte: o Souza já deixou as folhas de zinco lavadas, as palhas no jeito (para sapecar a Neguinha); além das facas, bacias e um balaio para pegar a barrigada. Tudo pronto e decidido. E os Souza foram dormir quando ainda não era nove da noite! 
Duas horas da manhã: um grito horripilante ecoou no ar, acordando e atraindo inclusive a vizinhança. A Magali e o Souza encontraram a Dona Zéfa, olhos arregalados e sem voz; por incrível que pareça tanto ela, que havia dado o grito, quanto todos os demais que chegaram presenciaram a cena chocante: a Neguinha estava de joelhos ao pé da santa!
- Daí a estória do prequeté, prequeté, prequeté, com o qual comecei o “causo”: onde já se ouviu falar que alguém fizesse linguiça e torresmo de uma leitoa tão católica?


Antônio Carlos Affonso dos Santos – ACAS. Nascido em julho de 1946, é natural da zona rural de Cravinhos-SP (Brasil). Nascido e criado numa fazenda de café; vive na cidade de São Paulo (Brasil), desde os 13. Formou-se em Física, trabalhou até recentemente no ramo de engenharia, especialista em equipamentos petroquímicos.  É escritor amador diletante, cronista, poeta, contista e pesquisador do dialeto “Caipirês”. Tem textos publicados em 8 livros, sendo 4 “solos” e quatro em antologias, junto com outros escritores amadores brasileiros. São seus livros: “Pequeno Dicionário de Caipirês (recém reciclado e aguardando interesse de editoras), o livro infantil “A Sementinha”, um livro de contos, poesias e crônicas “Fragmentos” e o romance infanto-juvenil “Y2K: samba lelê”.

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