sexta-feira, 12 de outubro de 2018

Crónicas da minha cidade

Por: António Orlando dos Santos 
(colaborador do "Memórias...e outras coisas...")

No meu tempo de rapaz havia como que uma instituição popular que era escola sem método mas, por isso mesmo, atrativa e competente. Chamava-se Barbearia, vulgo Barbeiro.
Paravam aí todos os personagens dignos de menção honrosa ou pitoresca. O oficial barbeiro era como que um oráculo! Do alto da sua sapiência, conseguida com a paciência de qualquer bonzo que da china tivesse vindo e nas idas ao Barbeiro lhe tivesse transmitido o saber ouvir e calar, era o Barbeiro capaz de guardar segredo e botar faladura quando conveniente ao bom exercício da atividade desbastadora de barbas e cabelos. Ouvindo a gregos e troianos, falava de cátedra para amanuenses e mecânicos. 
Eu vivia fascinado pela magia que sentia pairar e acreditava que havia ali, à mão de semear, uma ocasião de aprender os segredos que só os iniciados conheciam, quer fosse no decorrer de um diálogo ou na enunciação de um caso, vindo a talhe de foice, permitia que fôssemos esclarecidos por um dos sábios de serviço.
Ficava eu a saber de coisas que os menos atentos a estas, para mim preciosidades, nunca teriam a chance de saber. Era eu, nesse tempo, um apreciador de discurso que fosse proferido, de preferência, na lusitana língua. Eram assíduos frequentadores, alguns cavalheiros de bom nome e também outros mais rústicos mas também espirituosos, a par com uma assembleia de populares que não davam nem tomavam e que entravam calados e saíam mudos. Digo mudos e não surdos porque as discussões e argumentos soavam alto e tornavam a Barbearia em tertúlia onde apenas o oficial Barbeiro tinha autoridade suficiente para serenar os ânimos e dizer de sua justiça, mesmo que a sua capacidade de influenciar as mentes mais brilhantes ou as mais obtusas não fosse assim tão linear como alguns pensavam. 
Eram habituais, os Padres Miguel e Carneiro, os doutores Flores e Gonçalves, o primeiro médico e o segundo advogado, ambos famosos pelos ditos espirituosos que se lhes conheciam ou inventavam do que pela excelência nos seus mesteres. Havia para além dos doutores e licenciados, que eram muito mais que os mencionados, um senhor que eu escutava sempre com atenção e reverência. Comerciante com nome estabelecido, homem de boas falas e muito saber que dava pelo nome de Senhor Lopes, do Lopes & Pires. Homem bem apessoado, sereno e lúcido, falava comedidamente e era um admirador da capacidade que a diplomacia brasileira possuía de produzir embaixadores de alto gabarito. Havia um que admirava sobremaneira e do qual não retenho o nome mas que não será difícil sabê-lo numa investigação minimamente cuidada. 
Contava o Senhor Lopes que num dia em que, discursando na Assembleia Geral das Nações Unidas, o efeito da sua eloquência e gestualização produziu ovação no final do discurso! Não tardou a formar-se fila para lhe darem parabéns, estando entre os mais ilustres o Embaixador da antiga União Soviética, vulgo Rússia, homem corpulento e de grande influência nos meios diplomáticos. Ter-lhe-á dito que estava impressionadíssimo com o discurso, mas mais ainda com o facto de, sendo o brasileiro homem pequeno e de trajar sem exuberância, ter conseguido arrebatar toda a Assembleia e arrancar uma ovação que o honrava a ele e ao povo que ali representava! Resposta pronta do Embaixador brasileiro que em português com açúcar, vogais bem abertas ripostou: Vou dizê pa você meu segredo: no meu país cachaça se mete em garrafão mas essência rara metêmo em frasquinho píquinino. O senhor Lopes sorria com a estupefação dos ouvintes e acrescentava: “Eles é que sabem como falar bem em português!”
Resta-me acrescentar que, naquele tempo, no Brasil se cultivava o bom uso da Língua de Camões e que no Gabinete Português de Leitura se exibia, num escaparate à entrada, uma primeira edição dos Lusíadas impressa em Lisboa e levada para o rio por portugueses emigrantes que amavam Portugal! Quem o dizia era um irmão do Nuno da Rosa d´Ouro, o Adão, que quando vinha de férias e se sentava no Chave D´Ouro ou na Barbearia, salvando as devidas distâncias, conseguia o efeito do Embaixador, tal era musicalidade das suas palavras e o impacto das suas estórias contadas aos patrícios por quem já só sabia falar bem português com sotaque brasileiro. 
Resta dizer que a tertúlia da Barbearia me fascinou sempre um pouco mais do que a do Café. As recordações que estão impressas no meu “ disco duro” são o património que para mim é mais precioso.
São recordações de lugares, pessoas e acontecimentos que moldaram o meu carácter e me ensinaram a amar esta terra que é minha e de todos aqueles que a sabem amar.





A. O. dos Santos
(Bombadas)

1 comentário:

  1. Impressionante texto.
    Gostaria que o autor lesse (e comentasse) os textos que este escriba brasuca publica (e já publicou) no MOC.
    Sinto saudades das coisas e fatos que vi e vivi.
    Assim como esse autor .......

    ACAS

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