terça-feira, 16 de abril de 2024

"EXISTO... LOGO, PENSO!"

Por: Paula Freire
(colaboradora do Memórias...e outras coisas...)

Nunca me pareceu tão conturbado como agora, este mundo em que vivemos. Nunca, como hoje, me deparei com pessoas tão ávidas de encontrar um milagroso GPS que lhes indique o caminho para o equilíbrio emocional que anseiam recuperar. Desorientadas pelas estradas da vida onde, como nómadas, foram montando tenda aqui e ali num processo de sobrevivência, muito mais interior do que exterior. Perdidas como náufragos, à espera que uma qualquer luz ao fundo do túnel lhes venha sussurrar ao ouvido que são tudo menos a escuridão que reside dentro delas.
E creio que essa aventura começa a ter consequências desastrosas. A um náufrago, qualquer tosco pedaço de madeira lhe parece tábua de salvação. E por aí andam à deriva muitos toscos pedaços de madeira com fétido cheiro e sentido de oportunismo, a luzir esperanças falsas e descabidas.
A consciência e conceção do todo que nos rodeia e afeta, é o resultado de uma aprendizagem tanto intelectual como emocional. O desejável seria que qualquer alteração fosse sempre no sentido da expansão e não da limitação. Na história evolutiva do ser humano, razão e emoção têm vindo a caminhar de mãos juntas e seria benéfico, inclusive essencial para todos, que assim continuasse a ser.
Mas em anos recentes tem vindo a instalar-se um estranho modelo de transformação e reforma da psique, que parece deixar uma elevada quantidade de gente em alucinado estado de embriaguez mental. Dele a derivar uma sui generis fuga à realidade e exacerbada empolação do ego. Tornou-se moda deixar de pensar. A entrada apetecível que consta no cardápio miraculoso do dia a dia, dá-se pelo nome de “Sentires”.
Assim me respondeu com ligeira prontidão certa pessoa, há uns tempos atrás, quando a indaguei sobre o que pensava em relação a determinada questão, que ela não pensava nada, ela sentia… Eu, por minha vez, senti que começava a pensar que a dita pessoa ou considerava possuir certo défice cognitivo (o que não acreditei muito ser o caso) ou padecia de proeminente nível de ignorância. E neste campo, é preciso ter algum cuidado porque a ignorância (não a que é fruto da falta de conhecimento porque não se teve oportunidade de ir mais além, mas sim aquela que é exibida orgulhosamente alto e bom som por aqueles que, ignorantemente, a confundem com caridosa humildade), essa ignorância, como dizia, é como o bocejo. Contagia.
O pensamento revela-se como uma das competências mais importantes para o ser humano avançar. Uma indispensável ferramenta de evolução. Importa reconhecer que nos movemos através do nosso pensamento e com ele aprendemos a contemplar, questionar, buscar respostas e a tomar decisões na busca de uma direção.
Descartes tinha a certeza de que a única certeza absoluta que temos é a da nossa existência, quando nos legou o seu “penso, logo existo”. Pois diria eu que se existimos, temos a obrigação de pensar. Ainda que pensar exija esforço, disponibilidade, tempo e até algum sacrifício. Afinal, obriga-nos a sermos responsáveis por quem somos e pelo que andamos por aí a fazer, escondidos dos outros e de nós mesmos, por baixo de ilusórios sentires que queremos acreditar nos tornam iluminados e iluminam os nossos trôpegos caminhos.
Procuremos estar atentos: num espaço repleto de corações sequiosos de alimento para a alma, qualquer parca e desnutrida comida enlatada e pronta a servir, toma o gosto de iguaria.
É, portanto, urgente pensar.
A capacidade de pensar, de questionar, refletir e concluir, é fundamental para a formação de opiniões próprias válidas. E é o pensamento que nos permite ajuizar sobre os nossos sentimentos e emoções. Não o contrário. Como tal, pensar permite-nos construir o caminho para o desenvolvimento da necessária inteligência emocional, da qual os homens e a nossa sociedade parecem andar cada vez mais vazios. Principalmente aqueles que vivem na certeza absoluta e inquestionável de possuir certificado na matéria.
Não me julgue, pois, o leitor uma negacionista das emoções. Muito pelo contrário. Admiro e aplaudo essa nobre capacidade de ser capaz de sentir. Essa sensibilidade para desabrochar como flor de lótus no meio do lodo, que tanta falta sempre tem feito à humanidade.
Mas procuremos não colocar a carroça à frente dos bois. Sentimos porque existimos, mas percebemos que existimos porque (nos) pensamos e com essa capacidade de pensar nos descobrimos como seres únicos, com características, competências e limitações próprias. Só dessa forma, disponíveis para refletir sobre a compreensão de nós mesmos e do mundo à nossa volta, efetivamente crescemos e evoluímos.
Antes de conseguir voar, tem que se aprender a caminhar sobre terra firme e é o pensamento que nos permite consegui-lo. Só depois estaremos à altura de alçar voo por mares mais profundos.
Em jeito de conclusão, e salvaguardando o pequeno animal que de nada tem culpa, não sejamos como galinhas, com as nossas despropositadas ânsias de mostrar ao mundo grandiosos diplomas de vida. Saibamos (re)aprender a pensar para  sentir e viver com sabedoria.

Paula Freire
- Natural de Lourenço Marques, Moçambique, reside atualmente em Vila Nova de Gaia, Portugal.
Com formação académica em Psicologia e especialização em Psicoterapia, dedicou vários anos do seu percurso profissional à formação de adultos, nas áreas do Desenvolvimento Pessoal e do Autoconhecimento, bem como à prática de clínica privada.
Filha de gentes e terras alentejanas por parte materna e com o coração em Trás-os-Montes pelo elo matrimonial, desde muito cedo desenvolveu o gosto pela leitura e pela escrita, onde se descobre nas vivências sugeridas pelos olhares daqueles com quem se cruza nos caminhos da vida, e onde se arrisca a descobrir mistérios escondidos e silenciosas confissões. Um manancial de emoções e sentimentos tão humanos, que lhe foram permitindo colaborar em meios de comunicação da imprensa local com publicações de textos, crónicas e poesias.
O desenho foi sempre outra das suas paixões, sendo autora das imagens de capa de duas obras lançadas pela Editora Imagem e Publicações em 2021, “Cultura Sem Fronteiras” (coletânea de literatura e artes) e “Nunca é Tarde” (poesia), e da obra solidária “Anima Verbi” (coletânea de prosa e poesia) editada pela Comendadoria Templária D. João IV de Vila Viçosa, em 2023. Prefaciadora dos romances “Amor Pecador”, de Tchiza (Mar Morto Editora, Angola, 2021), “As Lágrimas da Poesia”, de Tchiza (Katongonoxi HQ, Angola, 2023), “Amar Perdidamente”, de Mary Foles (Punto Rojo Libros, 2023) e das obras poéticas “Pedaços de Mim”, de Reis Silva (Editora Imagem e Publicações, 2021) e “Grito de Mulher”, de Maria Fernanda Moreira (Editora Imagem e Publicações, 2023). .Autora do livro de poesia Lírio: Flor-de-Lis (Editora Imagem e Publicações, 2022).
Em setembro de 2022, a convite da Casa da Beira Alta, realizou, na cidade do Porto, uma exposição de fotografia sob o título: "Um Outono no Feminino: de Amor e de Ser Mulher".
Atualmente, é colaboradora regular do blogue "Memórias... e outras coisas..."- Bragança e da Revista Vicejar (Brasil).
Há alguns anos, descobriu-se no seu amor pela arte da fotografia onde, de forma autodidata, aprecia retratar, em particular, a beleza feminina e a dimensão artística dos elementos da natureza, sendo administradora da página de poesia e fotografia, Flor De Lyz.

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