terça-feira, 16 de abril de 2024

Uma Paixão Pela Música - Albino Carneiro

Era no Loreto que Albino Carneiro, músico por paixão e sapateiro por profissão, mais gostava de ir tocar clarinete, em bailes em que a música era muito diferente da de hoje e a alegria da juventude talvez maior.


Albino Carneiro nasceu em 1914. Desde criança foi encaminhado, pelo pai, para a arte de sapateiro. Contudo, a sua grande paixão sempre foi a música. Aprendeu a tocar com um mestre. Esteve na fundação de várias bandas. A última foi a mini-banda, que ainda está no activo. Há cerca de seis anos, por morte da sua mulher, arrumou o clarinete e nunca mais tocou. A paixão pela música ainda a mantém e fala com entusiasmo dos seus mais brilhante pupilos, que aprenderam a arte com ele.

“Tenho aí artistas ensinados por mim. Tenho um gosto neles!”, conta-nos. Entre eles incluem-se dois netos, o Paulo e o Ricardo, mas não só. “Qualquer garoto que quisesse aprender a tocar, era só chegar ao pé de mim e lá íamos os dois. Ensinei raparigas, rapazes, 20 e tal pessoas”. Nunca cobrou pelas aulas. Apenas, nos últimos tempos, cobrava alguma coisa para pagar a luz que gastava no “estúdio”, o rés-do-chão da sua casa, mas “num passou de um conto de reis”.

Tudo começou muito tempo antes. Era ainda criança. Havia um coreto, na Praça da Sé. Albino ficava deliciado a ouvir a Banda Militar a tocar. Talvez por isso, a sua ambição era ser músico militar, assentar praça e seguir essa vida. “Podia ficar até de soldado”, desde que, claro, pudesse tocar a “pífaro”.

A vida deu, no entanto, outras voltas. O seu pai tinha uma oficina de sapateiro, ao fundo da Rua Direita. “Naquele tempo não havia possibilidades de estudar. Eu pedi-lhe para fazer estudos, ou então queria ir para alfaiate. O meu pai disse: em vez de ires para alfaiate mais depressa vens para o pé de mim. Tive que ir para sapateiro”. E assim foi, desde praticamente toda a vida, embora, depois de deixar a sapataria ainda tenha trabalhado no quiosque da Rosa Douro, antes de, por fim, ter deixado de trabalhar. A música, no entanto, nunca o abandonou e, já com 90 anos, juntamente com “o professor Eduardo”, no órgão, e mais o seu neto Ricardo, no saxofone, tenha dado um concerto de quatro horas, sem parar, numa festa de Natal da Santa Casa da Misericórdia de Bragança, onde vive actualmente.

O pai, apesar de o ter encaminhado para a sapataria, não lhe cortou, totalmente, a vocação para a música. Arranjou-lhe um mestre que custava “15 mil reis por mês” e para os arranjar, “custava”. Começou por aprender a tocar flautim. Mas, esse era um instrumento muito pequeno e os colegas da escola gozavam-no. Por causa disso, disse ao mestre que não queria mais saber da música. O que aconteceu é que o mestre resolveu ensiná-lo a tocar clarinete, um instrumento suficientemente grande para ninguém gozar com o assunto. “E assim foi, aprendi aquele instrumento e é a minha saudade. Ainda o tenho hoje. Tenho-o no lar. Desde que a minha mulher morreu nunca mais toquei. As estagiárias vão lá ao quarto, vêem o clarinete e pedem, mas desde que ela morreu nunca mais toquei”. Do mestre lembra-se bem, era Alfredo Pereira, “primeiro sargento, músico reformado, militar, natural de Mirandela, casou em Santa Maria, na vila”.

Com nove anos apenas, Albino, começou a fazer festas com a banda que existiu na Associação de Socorros Mútuos dos Artistas de Bragança.

Essa banda acabou porque muitos dos seus elementos foram para os Bombeiros, onde fundaram a Banda dos Bombeiros. Albino Carneiro, que estava onde estivesse a música, também foi para os bombeiros.

Juntamente com outros músicos esteve na fundação dos Zíngaros. As datas certas já não as recorda, mas tudo isto aconteceu ainda antes da segunda metade do século passado. Naquele tempo, os bailes eram bem diferentes dos de hoje e toda a música era outra, bem como a alegria de uma juventude que Albino recorda com “saudade”. “Um baile, naquele tempo era só feito por música. Não havia gira-discos, grafonolas. Tocavam-se balsas, foxtrotes, tangos. As músicas que se tocavam mais eram aqueles músicas populares das marchas do Santo António de Lisboa. Quando começaram a vir os tangos argentinos foram um grande sucesso. E a valsa da meia-noite....”, recorda, lembrando bailes que se faziam no Clube de Bragança, por exemplo.

“Na dos Zíngaros tocávamos o repertório que tocava a Banda de Infantaria 10, que eram artistas, faziam exames para chegar a cabo, sargento, e tocavam peças importantes. Nós chegámos a tocar as zarzuelas, umas meias operas, tocávamos tudo”.

Quando era a pagar, o “cliente é que mandava”, mas um músico também toca por gosto, ou para agradar à namorada. “Eu era novo... As raparigas, ao Domingo, queriam divertir-se e chegavam ao pé de mim e diziam: vais para ao pé de nós a tocar um bocadinho ao baile, depois de almoçar”. Arranjavam-se mais alguns músicos e lá ia a banda, improvisada, tocar nos Batocos, ou em outro bairro, conforme o “interesse” dos artistas. “Íamos um Domingo para os Batocos, outro Domingo fazer a vontade à namorada do de Além do Rio, depois eu gostava de ir para o Loreto”. Esse era o bairro onde morava aquela que foi depois a sua mulher. Mas, naquele tempo, não ia ao baile, porque, órfã de pai e de mãe, os tios, rigorosos, não a deixavam descer de casa. “Ela morava ali e eu estava tocando. A mim quem me quisesse ver contente era convidar-me para tocar. Dançar não. Ela não dançava. O tio não a deixava sair de casa, deixava-me falar com ela, mas ir ao baile não”. Era para ela que, contudo, Albino tocava com mais gosto. O baile, se era Verão, fazia-se na rua. Se era Inverno fazia-se em alguma casa, determinada já para o efeito.

Tocava não só em Bragança, como em muitas outras terras, incluindo em terras de outros concelhos, que tinham bandas e, por vezes, lhe pediam para as acompanhar. Foi a Sambade, ao Brinço, fez as Festas da Senhora do Amparo, em Mirandela, da Senhora da Assunção, em Vila Boas e muitas outras.

Também se recorda de muitas vezes ir a pé, fazer festas a aldeias como Babe, ou Vilarinho de Cova de Lua, onde tinham que tocar na missa, na procissão e depois no arraial que durava até às quatro ou cinco da manhã.

Lembra-se também de uma altura em que, quando tocava com a banda dos bombeiros, era ainda um miúdo, quase o prenderam por usar o traje militar. “Primeiro andávamos à paisana. Não tínhamos farda”. Depois, os responsáveis dos bombeiros resolveram fardar a banda. No entanto, fizeram-no com o uniforme dos soldados. Certa altura, “veio para cá como comandante da Polícia, um senhor que era muito mau, mas era de cá. Íamos um dia a fazer a festa da Santa Cruz, a 13 de Maio, a Cabeça Boa, fardadinhos, vai a Polícia, e apanhou os pode apanhar, porque andávamos com traje militar. Prenderam alguns. Eu era pequenito, e mais dois ou três, e disseram-nos vai a despir-te se não vais preso”. Prenderam o tio daquela que foi depois a sua mulher, “que era um grande mestre. Tiraram-lhe a farda, prenderam-no e tiveram-no um dia lá”.

Outras vidas:

Enquanto isto, houve uma altura da sua vida, enquanto criou os filhos, que teve que se dedicar mais à arte de sapataria. Deixou de trabalhar com o pai e estabeleceu-se por conta própria, na Rua Camões, ao pé da antiga Praça do mercado. Lembra-se que isso foi em 1953. Chegou a ter sete empregados e muito trabalho mas, na década de 60, “veio a emigração para a França e Alemanha, os meus empregados foram todos e deixaram-me a mim e a um garoto”.

A mulher também o ajudava, fazendo o trabalho de costura das peças, não só para Albino, como para outros sapateiros de Bragança e outras terras. “Ela é que era uma artista! Não se diferenciava a obra preparada por ela de uma da alta costura da sapataria do Porto. No dia de feira estava proibida de ir à Praça. Vinham com obras para preparar. Não havia transportes, era só o misto. Começava logo de manhã cedo e até à hora do misto tinha que acabar o trabalho”. Ficámos a saber que “o misto” era o que se chamava ao comboio (de passageiros e mercadorias), que saía de Bragança às 16h30.

A sapataria guardava também uma outra história, feita de convívio com os estudantes, no tempo em que o Liceu funcionava onde hoje é o Centro Cultural de Bragança.

Muitos desse estudantes frequentavam a sua sapataria. Alguns chegavam até a ajudar a colocar as solas e a aprendera arte, por auto-recriação. “Era a sucursal dos estudantes. Fui cobrador dos bombeiros. Davam-me uma percentagem, mas boa, e eu tinha que trabalhar e fazer a cobrança. Tinha um estudante, que hoje é médico, lá para o Minho, o Toninho Veloso, que ficava dentro da oficina a tomar conta. O Teles, esse quando eu estava à rasca, com o trabalho de tacos, ajudava-me”.

Faltar às aulas, para estar na conversa com o músico e sapateiro, também não era algo fora de questão. “Uma ocasião resolveram não ir à aula. O Dr. Carvalho, que era meu primo e muito meu amigo, foi lá buscá-los. Cada um que ia saindo levava com um chuto na bola”.

Muito católico, privou com D. Abílio:

“Eu era muito amigo do D. Abílio, e o D. Abílio meu”, conta-nos, falando acerca do antigo Bispo de Bragança-Miranda e fundador deste jornal, com quem privou, durante muitos serões, “com o César barbeiro”, “até que se foi embora para Chacim”.

Conta-nos também que quando o Con. Jerónimo era Reitor do Seminário, queria que trabalhasse, como sapateiro, para aquela instituição. “Ainda era o Dr. Sobrinho estudante”. Como tinha muita freguesia, e eram 200 e tal estudantes, na altura, no Seminário, custou-lhe a aceitar o trabalho, que era feito por dois sapateiros.

Regresso à Música, na década de 80:

Depois de muitos anos de trabalho, um grupo de amigos foi desafiá-lo para fazer parte de uma nova banda, a “Mini-banda”, que ainda hoje está no activo. Um dos elementos desta formação é, inclusive, o saxofonista Ricardo, neto de Abílio.

No início ainda ficou relutante, mas depois de ir ao primeiro ensaio, o gosto renasceu e voltou a percorrer muitas das localidades do distrito. Durante este período, além dos netos, ensinou também muitos jovens a tocar. A Daniela, a neta, “também aprendia bem, mas disseram-lhe que era para ir para a banda deixou. Não havia meninas e não queria a farda”. Recorda, com orgulho, que pôs o neto Ricardo a acompanhar a banda com oito anos, contrariando a mulher. O neto, depois de fazer a primeira festa, apanhou o gosto e hoje ainda toca na banda. O outro neto, o Paulo, formou-se em música, e está colocado como professor nos Açores, “já vão alguns anos”, diz-nos, afirmando, de seguida, que de toda esta conversa “não se tira nada”. Tira ou não é o que resta saber de uma história em que música desempenhou um papel fundamental e ainda desempenha, mau grado o clarinete ter cessado de tocar.

Foto: Antiga Banda onde, ao centro, se pode ver Albino Carneiro, e também o irmão, outro dos músicos da cidade Era no Loreto que Albino Carneiro, músico por paixão e sapateiro por profissão, mais gostava de ir tocar clarinete, em bailes em que a música era muito diferente da de hoje e a alegria da juventude talvez maior.

Por: Ana Preto

Sem comentários:

Enviar um comentário