sábado, 18 de agosto de 2018

O Sacho

Por: António Orlando dos Santos 
(colaborador do "Memórias...e outras coisas...")

Da minha rua amputada tenho recordações intactas. Da rua, das gentes e do tempo cronológico.


Às vezes faço um exercício de memória que me mostra toda a gente que lá vivia no meu tempo de menino. Há o fundo do baú que contém as memórias compiladas numa vivência frenética e vivida em plena partilha de ideais e desidérios. Lá no fundo profundo do meu cofre de recordações tenho uma imagem nítida e incorruptível do personagem mais estranho de todos os que compunham o quadro social da minha tribo.
Não poderei afirmar que o conhecia bem! Essa era uma verdade reservada à parte física da pessoa. Não conheço os seus familiares embora quase tenha certeza de ele ser natural da cidade. 
Chamavam-lhe o Sacho e trabalhava no Matadouro Municipal. Morava nos baixos da casa da Tia Áurea, mãe do Lito, do Duarte e da Antónia mulher do meu grande amigo António Micho. Via-o entrar, via-o sair,  mas nunca tive a ousadia de espreitar para dentro do tugúrio que era escuro como breu e que me causava um arrepio ao fundo da cervical quando o via sair, encostar a porta e dar volta à fechadura velha e relha que devia ser do tempo dos afonsinhos. Era homem grande, espadaúdo e moreno.
Como quase todos os celibatários empedernidos era taciturno e metido em si! A sua vida era para mim um mistério! Continua a sê-lo pois nunca consegui saber onde passava o tempo quando não estava na toca. Apetece-me frequentemente tentar compreender o que nunca fui capaz no tempo próprio. Como era possível viver num sítio com centenas de pessoas, que se cruzam, se cumprimentam e socializam e passar por elas anos a fio e não ter uma frase, uma única palavra para dirigir- lhes? Seguia absorto nos seus pensamentos, bons ou maus, quem sabe,  e não fazer o mínimo esforço para que os outros se sentissem confortáveis sempre que aquele personagem de ópera bufa passava como uma sombra ou fantasma de conto das coisas ocultas.
 O Sacho, diga-se em abono da verdade, também não incomodava ninguém. Entrava quando queria, saía quando entendia! 
Tive sempre a ideia de que ele não vivia ali, dormia ali! 
A limpeza da casa não sei como se fazia, jamais vi vassoura ou cântaro de água entrar aquela porta. Não sei quem despejava o balde. Não retive a data, dia, mês ou ano do seu passamento.
Eu era muito miúdo e como ele era pouco sociável eu tendia em não lhe dar muita atenção. Tinha sim, um grande temor, pela sua figura grande, calada e escura.
Não sei se foi casado e feliz, se em contrário teria tido algum desgosto de amor que o houvesse ferido marcando-o para o futuro. Era sabido haver mulheres na rua que viviam da venda do amor. Nunca o vi transpor a soleira da porta que não fosse a do tugúrio onde dormia. Este homem foi para mim um enigma indecifrável e sempre que o recordo é pelo seu não estar ao invés de outros ditos normais que intervinham activamente na vida social da rua.
A recordação mais nítida do Sacho é a imagem que retenho de um homem grande, espadaúdo e escuro,  um escuro de marnoto ou sarraceno que não de negro africano abaixo do Níger. Subia a rua lentamente até chegar à casa onde morava (dormia) que era o 62 R/C, metia a chave na fechadura grossa e desaparecia para o mundo. Não tinha horário para entrar ou sair, mas também não variava muito.
Desconheço quem lhe cuidava da roupa e da higiene que diga-se, em si mesmo não era detestável nem andrajosa. Penso que nem eu nem ninguém tinha outra informação além da atrás mencionada. Também nunca soube do mínimo desacato ou briga com ele ou por ele. Intriga-me que ninguém se incomodasse com o seu estado tanto físico como mental. Mentalmente não tinha desequilíbrios aparentes, não falava com ninguém e era esse um seu direito, já mazelas do corpo ao longo da vida deve ter tido algumas.
Havia em Bragança nove meses de Inverno e três de inferno, bastando isso para as ocasionar.
Resumindo, ninguém passava informação e era como se um fantasma habitasse no meio da gente. Estou convicto que ele era da cidade, que tinha até família e alguns parentes serão até pessoas minhas amigas, só que eu desconheço essa ligação a um homem que ainda hoje me intriga pelo seu modo de estar e ser.
A minha vida apartou-se da minha rua e é verdade que me foi sonegada alguma da curiosidade que me fazia interessar-me por este meu tipo inesquecível. Hoje lembrei-me dele e mencionei-o nas minhas crónicas de recordação daqueles que fizeram parte integrante da minha infância e juventude.
Com o máximo respeito mas também com a mesma curiosidade que lhe dispensava quando o via subir a rua e eu parava suficientemente afastado dele para ver um homem, meu irmão no Senhor, que nunca consegui compreender! Era um solitário que me faz lembrar os versos de uma linda canção espanhola que reza: Latino, Tiengo el calor de una copa de vino / mitá senor mitá correr caminhos como una estrela sigo my destino /boémio con la mirada de un loco risueno /algo poeta y portador de suenos /un vagabundo solitário al Sol. ( festival de O T I 1981 /Francisco Latino.
O meu vizinho Sacho descansa hoje na paz que o Senhor reserva aos solitários amargurados e a todos os destituídos que também são filhos d 'Ele Paz à sua alma que passou pelo mundo solitária, pelo menos no tempo que me deu o Senhor de o poder ver com os meus olhos passar. Un vagabundo solitário al Sol.

 Paris 28/06/2018 





A. O. dos Santos 
(Bombadas)

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