quinta-feira, 6 de junho de 2013

MILHO, em Comeres Bragançanos e Transmontanos

“Na cozinha, reconheceu de pronto a comprida mesa das ceias da família, à qual se apoiava à parede, por baixo dos armários de louça. Noutro tempo, corriam, empinados por dentro das prateleiras, grandes pães de milho”.
[in Gente Feliz com Lágrimas, de João de Melo]

O autor, açoriano, rememora a cozinha antiga e não esquece os grandes pães de milho a confirmar o impacto do cereal originário do México, descoberto por Cristóvão Colombo e que Cortez introduziu em Espanha, dali rapidamente se propagou à zona atlântica portuguesa num primeiro momento, num segundo estendeu-se a Trás-os-Montes, e outras províncias portuguesas. Nos já conhecíamos o milho painço (milho-miúdo, zaburro ou sorgo, ainda usado na confecção de alguns doces), o vindo do Novo Mundo passou a ser conhecido por milho grosso, milhão, milho graúdo ou de maçaroca evitando-se desta a forma a confusão com o antecedente.
O milho painço durante séculos teve larga preponderância na Europa, perdeu-a com a chegada do milho grosso, mas ainda continua a fazer parte da dieta de populações africanas e asiáticas. Por cá, enquanto o milhão não se impôs em termos gerais, as comunidades a norte do Tejo utilizavam na confecção do pão meiado ou meado (mistura de grãos de milho e centeio), significando a palavra boroa o pão de painço comido pelos pobres.
O rijo e notável escritor transmontano Miguel Torga, em Contos da Montanha, no conto Solidão fala no modo como o pertinaz almocreve Duro comprava milhão após longo regateio. Nas profundezas do reino maravilhoso torguiano comprar sem regatear só os novos-ricos.
No século XVII, os habitantes de Entre Douro e Minho faziam, «pão de milho ou painço misturado com centeio, o qual diziam ser melhor que o de rala, de Lisboa», informa José Leite de Vasconcelos. Acrescenta ainda que o painço em Paredes de Coura era “exclusivamente alimento de aves”, não seria só nesta localidade, pois os minhotos nos alvores do século XX ainda recebiam o pejorativo epíteto de «pica milhos».
O sábio, no entanto, anota que em Paredes de Coura se faziam papas com milho-miúdo a que davam o nome de estirada. Estas papas de milho-miúdo levavam leite e açúcar, fazendo-se também só com água, gordura de porco e sangue. O milho-miúdo estava associado ao milho grosso e trigo na confecção de filhoses.
O professor Orlando Ribeiro destaca o desempenho do milho grosso no combate às carências alimentares, afirmando que a par da batata, este cereal é responsável por uma profunda alteração nos hábitos alimentares das populações mormente no Minho e Douro onde, justamente, atinge a condição de marca identificadora da dieta nessas províncias e na Beira Litoral.
Actualmente, o milho tem significativo lugar no sistema dietético do continente americano, de um modo geral a indústria agro-alimentar apresenta-o em pães, caldos, crepes, sonhos, corn-flakes (flocos de milho), bolos e doces de colher, ainda na fabricação de uísque (bourbon) e algumas cervejas. O milho pop-corn, em grão, dá azo à fabricação de pipocas avidamente consumidas pela juventude, aquecidos em óleo os grãos dilatam e rebentam formando suaves massas brancas.
Antes da massificação alimentar, o milho grosso aliviava o afiado apetite dos pobres, ainda nas espigas comia-se assado, fora das espigas metiam-se os grãos tenros no forno passando à condição de petisco, à massa branca que deles emanada chamavam-lhe freirinhas por lembrarem os hábitos freiráticos, além disso, da farinha faz-se o pão nosso de cada dia, boroa ou broa, caldos, papas, bolos, e os não tão conhecidos assim: milhos. No que concerne às papas existem inúmeras receitas localistas, milharas em Melgaço, mexudas na Sertã, Mação e Sardoal, mixudas, em Ourém, de carolo em muitos localidades, papas moiras em Odeceixe, xérem no Algarve, e...milhos.
Festas consagradas às papas ocorrem em muitas aldeias e freguesias, e percebe-se a razão: as guerras, as catástrofes, as más colheitas reduziam à miséria as populações, obrigando os camponeses a viverem sob a ameaça permanente da doença e da morte. Nas Memórias do Abade Baçal, Tomo XI, vem publicado um documento de 1639, de vigorosa reacção da Câmara ao lançamento de novas contribuições, impugnando-as, pois nessa época grassava na cidade violenta falta de alimentos. O impressivo relato da fome resultante da má alimentação da comunidade bragançana obriga-nos a perceber os fundamentos das festas em honra de produtos e artes culinárias, neste caso das papas. Entre outros argumentos para a contestação da Câmara, o documento em causa refere: “E alem desta sisa com que já se aquietam por lhe ficar como em herança de seus passados, tem dado esta Camara a sua magestade de seis annos a esta parte pera a restauração do Brazil e armadas a saber no ano de seis centos e vinte e nove mil res e no seguinte de seis centos e trinta e quatro centos mil res, que com particular provisão sua se pedirão prestados aos mesmos moradores de que ainda se está devendo muita parte, e outro si se pagarão alguns pedidos como foi o imprestimo geral e a esmola voluntária que pouco tempo he se tirou por todos com róis feitos das pessoas que davam e não davam e outro lançamento que fes pellas pessoas de trato e meneio nos coais todos contriboirão os moradores desta cidade e sua terra como bois vassalos a troco de o tirarem da boca de seus filhos e ficarem postos no ultimo da miseria tudo por acudir as necessidades que sua magestade lhe representava por quanto ouve pessoas a que foi necessario venderem parte dos vestidos de seu uso por escusarem as prisois com que estão ameaçados das justiças.
Nisto se junta a carestia de pão que nos persegue desde ano de seiscentos e trinta e tres porque nese ano lhegou a valer a quinhentos res o alqueire...”
Este excerto do enérgico relato sustenta as teses de Fernand Braudel quando alude às “culturas miraculosas”, o milho e a batata, que só “tardiamente se instalaram” amortecendo as faltas de comida que aumentavam quando os cereais falhavam. O pão duro, bafiento, não se podia perder de forma nenhuma a solução residia na confecção de papas e sopas, com a chegada do milho grosso o pão de mistura recebeu um poderoso componente, as papas também. As papas possibilitavam (possibilitam) o aproveitamento do rolão (farelo ou parte mais grossa da farinha de trigo) e no caso do milho moído (mas não em farinha), os populares milhos, que podem ser acompanhados por carnes, enchidos, peixes, moluscos e bivalves.

Comeres Bragançanos e Transmontanos
Publicação da C.M.B.

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