Foto: Paulo Pimenta |
1. Todos os anos, há dois momentos circenses no ciclo da vinha e do vinho no Douro: um acontece na Primavera, quando a Advid - Associação para o Desenvolvimento da Viticultura Duriense anuncia as suas previsões de produção. São sempre estratosféricas e os jornais reproduzem-nas em grandes parangonas. Toda a gente esfrega as mãos de contente. Este ano é que vai ser! Alguns meses depois, a realidade coloca tudo no seu devido lugar e vem o mea culpa: “Afinal, a produção vai ser inferior, o nosso método baseia-se na quantidade de pólen existente na altura da floração e não contávamos com a geada, o granizo, o míldio, o oídio…”. Resumindo: para que servem tais previsões? Não fazia sentido introduzir outras variáveis?
O segundo momento cómico surge no final do ano, quando o Instituto dos Vinhos do Douro e do Porto (IVDP) publica a produção declarada pelos viticultores da região. Pode não atingir as previsões da Advid, mas também nunca reflecte as perdas ocorridas. Há sempre mais vinho declarado do que aquele que saiu realmente das uvas colhidas. Como é possível? Pois, é caso para se investigar, porque esta disparidade só pode ter uma explicação: houve gente que aproveitou o quantitativo máximo de produção autorizado por hectare (que é superior à produção média da região) para legalizar vinhos não declarados, reforçar contas-correntes e até fazer entrar no circuito dos DOC Douro vinhos comprados noutras regiões e fora do país. Quem perde com isto? A região toda, que continua presa aos preços baixos. Nem em anos objectivamente maus os preços dos vinhos, e, sobretudo, das uvas, sobem para valores aceitáveis (valores que paguem, no mínimo, os custos de produção).
Se a lei do mercado funcionasse, este ano as uvas do Douro deveriam ser bem pagas, porque há uma elevada quebra de produção, devido sobretudo ao granizo e ao míldio. Quem vive e produz na região sabe que as perdas são grandes. Mas é pouco provável que a lei do mercado funcione. No Douro, a lei do mercado só funciona para alguns — para o grosso dos viticultores vigora a lei do “recebes o que eu quiser pagar”. Na maioria dos casos, os preços são decididos apenas pelo comprador e apenas após a vindima. Já imaginaram o que seria entrar numa loja de uma grande empresa de vinhos, pegar em várias garrafas de Porto Vintage ou de DOC Douro e dizer ao funcionário “ Vou levar o vinho e depois de o beber venho cá pagar-lhe aquilo que eu acho que o vinho vale”? É exactamente isto que faz a maioria dos compradores de uvas no Douro. Trata-se de um sistema meio medieval cuja raiz está nas grandes desigualdades sociais que ainda subsistem no Douro, no tradicional servilismo dos mais humildes perante os mais poderosos e no irresponsável conformismo do IVDP e dos representantes do comércio e dos viticultores.
Quem faz previsões de colheita não tem culpa nenhuma, mas as previsões exageradas também não ajudam nada — só beneficiam os compradores. Ora, como se já não bastassem as previsões da Advid e a falta de controlo sobre a produção do IVDP, esta semana o Instituto da Vinha e do Vinho (IVV) veio dar mais uma ajudinha, ao anunciar uma delirante previsão de zero perdas para o Douro. Zero perdas? Não é nenhuma piada? É mesmo para levar a sério? Querem ver que os viticultores ainda vão ter que vender as uvas mais baratas!...
2. Começa a ser difícil escrever sobre os vinhos e as vinhas dos Açores, mesmo com tantos elogios. Depois da saga do Pico (“Os vinhos do Pico e os perigos do glifosato”), estimulada pela manipulação e o interesse de apenas uns quantos, houve quem descobrisse mais erros e maldade no inocente texto da semana passada sobre as vinhas de Santa Maria. Hernâni H.Jorge, com e-mail do Governo dos Açores, escreveu-me isto: “Nas últimas semanas, tem andado a escrever sobre as vinhas dos Açores e, lamentavelmente, tem acertado pouco. Será que custa muito conferir a informação antes de escrever, para não deturpar a realidade e enganar os leitores? Este texto sobre as vinhas de Santa Maria é mais um exemplo disso. Os apoios públicos à reabilitação e à manutenção das paisagens de vinha são exactamente os mesmos para todas as ilhas dos Açores.”
Desta vez, o meu “pecado” foi ter escrito esta frase: “Como não há apoios para estes vinhos (de castas americanas, só há para castas europeias) e falta mão-de-obra, a vinha tem vindo a ser abandonada.” Escrevi, como mera constatação, uma verdade cristalina: não há apoios para vinhos de castas americanas. Nem podia haver, porque a comercialização de vinhos de castas americanas ainda é proibida na União Europeia. Só há apoios para a plantação de vinha com castas europeias. No Pico, estes apoios rondam os 29 mil euros o hectare — daí terem surgido tantos projectos de reestruturação nos últimos anos. O que existe em Santa Maria e em todas as ilhas são apoios para a manutenção dos currais de pedra, guardem eles videiras, figueiras ou outras árvores de fruto. Coisa totalmente diferente e com valores muito mais baixos.
Em Santa Maria o grosso da vinha ainda existente está plantada com castas americanas, cujo vinho (o popular morangueiro) se destina ao autoconsumo. Como este vinho não gera qualquer rendimento, e como há cada vez menos gente para trabalhar nas vinhas, a maior parte dos currais de vinha já foi comida pela vegetação. Hernâni H. Jorge e o Governo para quem trabalha deviam interrogar-se por que razão ainda não foi apresentada em Santa Maria nenhuma candidatura ao programa de apoio à manutenção dos socalcos. E por que razão não há ninguém a investir na vinha, como no Pico, e a substituir as castas americanas pelas castas europeias. Deviam interrogar-se e, já agora, fazer alguma coisa, para tentarem salvar, enquanto é tempo, esta extraordinária paisagem vinhateira, sob pena de serem de algum modo coniventes de um crime contra o património.
Pedro Garcias
Jornal Público
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