(colaborador do "Memórias...e outras coisas...")
Zé Molanchim - Foto: Luís Moreira (filho) |
Revejo-o hoje com o registo feito na minha meninice e que tenho guardado no meu baú das coisas lindas. Junto do marco do correio na saliência dos arcos da galilé da Sé Velha de Bragança, resguardando-se do calor estival que para a sua idade já há muito entrada nas dezenas dos" ENTAS", não seria muito recomendável.
Logo após haver passado o ângulo da parede voltada para o solar do Eng.Matos e Barbearia Ideal, deparava com a figura longa e fina do tio Molanchim com o pé no pedal que servia para fazer movimentar a roda grande que accionada pelo atrito de uma correia longa, não muito larga, punha em movimento o esmeril que afiava toda a sorte de lâminas cortantes que naquele tempo de aproveitamentos eram recorrentemente amoladas até que o desgaste causado pelo esmeril as tornava num fio de aço que ostentava uma curva de arco fino que se fazia imperativo substituir.
Neste ponto de desgaste notava-se uma certa regularidade que era evidentemente obra do amolador Molanchim que pacientemente esperava algum tempo pela vinda ao amolador das lâminas de fregueses menos regulares que apareciam invariavelmente quando a tesoura, navalha, cortador de relva ou gadanha lhe eram entregues pelos que as usavam.
Os clientes mais assíduos do tio Molanchim eram os Magarefes que na nossa terra levam o nome de chicheiros, seguidos dos alfaiates e em último as donas de casa com ,facas e tesouras que no caso das últimas naquele tempo eram usadas frequentemente para cortar os pedaços de pano para remendar calças, saias, aventais e todas as peças de vestuário que se aproveitavam até estarem delidas.
Com a roda de amolar montada num veículo de recorte triangular que possuía uma roda de bicicleta encaixada num eixo que assentava numa peça de madeira separando as duas extremidades do eixo e levantando a parte anterior onde tinha suporte de punhos para se poder levantar com as mãos e empurrando fazer andar a máquina, sim, porque era de uma máquina que se tratava, o Molanchim no seu vagar girava pela cidade apregoando numa voz timbrada e em "Vocce bassa " mas audível - Olha o amolador, afia facas e tesouras e tudo o que seja de afiar. Aguardava sempre um pouco à porta de Alfaiates, tabernas, Restaurantes, que naquele tempo eram poucos e chamava também pelas donas de casa que da janela ou da porta de casa estabeleciam diálogo ameno com o paciente e sempre com os olhos postas na peça a afiar e com as mãos lestas e seguras ia desbastando o metal e concluído o trabalho recolhia uns trocos que o freguês ou freguesa parcimoniosamente lhe passava para as suas mãos longas de cor acastanhada com as veias da parte superior bem visíveis como e normal nas mãos elegantes esculpidas por trabalho frequente mas pouco pesado.
Havia serenidade no seu rosto, doçura no seu olhar e como que uma resignação perante a pobreza assumida com dignidade que Deus lhe houvera destinado e se prolongava no tempo dado que o preço cobrado pela obra era magro como ele.
O garotio não o tinha por alvo das suas crueldades, havia demasiada dignidade naquele rosto longo e bem esculpido que convidava mais a um abaixar da cabeça e olhos em sinal de respeito e veneração.
Terminada a volta à cidade regressava à Praça da Sé e de novo perto do marco do correio e um pouco afastado do cartaz grande do cinema, previamente ali colocado pelo Cantaria, parava de novo o Molanchim como que devolvendo à Praça uma peça de mobiliário urbano que lhe houvessem retirado temporariamente.
No meu tempo de menino nunca me passou pela mente que um dia que até nem estava longe de nascer eu chegasse à Praça da Sé e o tio Molanchim já não estivesse para ocupar o seu lugar que eu sempre entendi como seu por direito próprio e usufruído com a dignidade de um asceta que não havia feito votos mas era ali que se cumpria o seu tempo, perto do lugar sagrado configurado na Igreja, de S.João Batista, antigo templo dos Jesuítas e que servia de Sé na diocese e estava a pia onde me batizaram e me fizeram cristão!
Um dia inesperadamente e com surpresa entrei na Praça da Sé e ele não estava.
Tinha terminado o tempo do seu Calvário e o do meu respeito e veneração por um Homem Com "Letra Grande" e um patriarca que ainda hoje tem um lugar seguro no meu coração que continua a amar o que de mais genuíno a minha terra-mãe me mostrou e guardo com avareza.
Lembro a esposa que ao contrário do marido era fisicamente mais roliça. Senhora trabalhadeira que com o suar do seu rosto ganhava o seu pecúlio que juntava ao do marido para de dois poucos fazerem o bastante. O bastante para alimentarem os filhos que sendo da minha idade eu conhecia muito bem!
Lembro- me do Luís também da irmã de quem não retive o nome. Eram os dois bons companheiros, pertenciam ao rebanho do saudoso Padre Miguel de quem já escrevi um pequeno texto de admiração e sendo do Padre Preto como lhe chamava a minha mãe que também era daquelas hostes(08/10/1911-14/10/1965) e disso tinha ela proa.
O meu contacto com os dois foi sempre de rua, não de escola. O Luís era de S.Sebastião eu da Estação. Em contrapartida éramos os dois do Rebolo e da Carrasqueira, ambos com a "Entourage" da Vila-Além do Rio, ele e da Caleja eu. A irmã recordo-me do seu aspecto nitidamente, e do nome soa-me a (Inda ) Deolinda? Não sei…
Mas foi para falar do tio Molanchim que hoje resolvi escrever esta crónica como preito de respeito e admiração por uma figura das mais genuínas da cidade de Bragança nos meus tempos de menino.
Continuo a dar graças a Deus por me ter dado a fortuna de ter conhecido toda esta gente pobre mas honrada e de saber profundo, digo eu, e de saber de experiência feito como disse o poeta (Luís Vaz de Camões )
Bragança,17/08/2018
A. O dos Santos
(Bombadas)
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