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SOBRE O BLOGUE: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

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COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blogue, apenas vinculam os respetivos autores.

domingo, 5 de agosto de 2018

Os sapateiros de Bragança e a localização dos seus "Sotos"

Por: António Orlando dos Santos (Bombadas)
(colaborador do "Memórias...e outras coisas...")

Há uma palavra antiquíssima que usamos frequentemente para designar o rés do chão ocupado por estabelecimentos e oficinas das mais variadas artes e ofícios. A palavra soto deve ter origem na palavra Sotto que é o vocábulo italiano para definir debaixo de. ( Canteró una Bella canzonne, oggi sera, sotto la tua finestra. e.g.).
Como todos tinham o seu local de trabalho debaixo de residências espalhadas pela cidade o Soto do Senhor Albino Carneiro foi para mim ponto de partida para o fascínio que toda a vida tive pela arte de fazer calçado como do motivo que me afastou de jamais me achar com tendência para exercer tal mester.
Como a minha mãe tinha um medo terrível do rio no Verão,pois cada ano que passava trazia sempre um má notícia de acontecimento funesto em que um rapaz morria afogado nas águas do Sabor ou do Fervença, falou então com o Senhor Albino e pediu-lhe para me meter lá no seu soto para me conseguir segurar na zona neutra dentro de portas evitando assim que eu fosse para o rio Sabor que exercia uma atracção ímpar na minha imaginação. Era algo de que eu gostava, o rio ,os mergulhos e aquela catrefa de garotos da minha idade com quem eu falava, nadava e repartia todo o entusiasmo que dava para movimentar uma turba que ia às malápias do Gambôa e às cerejas à borda da estrada que comíamos engolindo o caroço e nos punha a jeito de uma diarreia que parecia rajada de metralhadora e em que os caroços se transformavam em projécteis disparados contra o pedregal da beira do rio.
Entrei no soto da Rua dos Cabanais às 09:00 um pouco receoso e porque não dizê-io envergonhado. O senhor Albino sorriu e disse-me: - Ora aqui está a encomendinha numa alusão ao conto de Trindade Coelho que narra a sua apresentação na escola por Helena, a sua ama.
Só que não era de Escola que se tratava mas sim do Soto de sapateiro ao cimo do jardim. Vais ser muito feliz connosco disse-me o senhor Albino que era um homem jovial e comunicativo. Franzi o sobrolho e esperei pelo que se seguiria. Sentado num banco de três pés do lado de fora à sombra, estava o meu homónimo Toninho Carneiro que sorriu para mim, levantando os olhos de um caderno onde fazia as palavras cruzadas.
Vi pela primeira vez alguém preparar o quadro de dez casas como o da tabuada de Pitágoras e aí conseguir introduzir letras que formavam outras e que se cruzavam numa sequência que no final tal como a tabuada batia certinho para meu encanto. Era pouco mais velho do que eu mas tinha um jeito para aquilo que eu admirei desde aquele dia até hoje. Mas não era para aprender palavras cruzadas que eu ali estava e o que tem que ser tem muita força e havia que seguir a praxe que fazia parte da iniciação tradicional.
Após o regresso de uma ida ao Cazão das solas e cabedais o senhor Albino manda-me deitar meias solas à gamela.
Eu não era propriamente um inocente dado que eu era da Caleja e já havia escutado muita estória de pedras de afiar agulhas e quejandas. Perguntei-lhe: onde está a gamela ? O patrão apontou para o fundo do Soto onde estava uma celha com água de cor indescritível e mal cheirosa. Sem outras ordens peguei num rolo de sola completo que estava perto e que o senhor Albino nunca pensou que eu fosse capaz de levantar e meti-o assim mesmo na gamela.
O homem ficou parado balbuciando , que fizeste rapaz? Não era essa sola para por de molho! Respondi : O senhor falou em meias solas mas eu prefiro solas inteiras e esta ainda estava por encertar. O senhor Albino virou-se para o Fernando da tia Teresa,que já era oficial e disse: - É da Caleja o lafrau, porque os dali já sabem a pauta e a música de cor mal acabam de nascer.
O Fernando rindo foi dizendo ,eu também sou de lá mas a mim o senhor enganou-me.
Ao meio-dia fui almoçar e escusado será dizer que não regressei para a segunda parte! Caladinho,almocei e escapei-me sorrateiramente sem dar alarme e tomei o caminho da Avenida do Sabor que andava nesse tempo a ser calcetada e já tinha construídas algumas casas que sendo diferentes das que até ali tinham servido de moradia ao povo anunciavam que o progresso estava a chegar a Bragança, que finalmente tinha casas como as que se viam nas revistas estrangeiras e uma Avenida larga onde os carros passavam garbosos diante dos meus olhos deslumbrados.
Dali ao rio era um ápice. Cumprida parte possível da aventura do dia, às 05:00 estava em casa. A minha mãe perguntou-me como havia corrido o dia e eu respondi: - assim,assim, mas não volto porque não gosto daquilo, o senhor Albino é simpático mas eu não quero aquela arte.
Não reclamou a minha mãe , também ela não era muito de eu seguir tal arte e depois eu tinha apenas oito anos e a coisa ficou por ali.
O senhor Albino é que quando me encontrava me dizia: - contava contigo para deitar meias solas à gamela e despediste-te em latim que não te pus mais a vista em cima.
No ano seguinte, férias da terceira para a quarta classe fui para a Pastelaria Ribeiro,onde fiz as férias completas e o senhor Albino dando conta mudou o discurso e passou a dizer-me: - Agora já sei porque não quiseste ser sapateiro, é que ali sempre tens uns canelões para adoçares a boca!
Fomos amigos do peito até ao dia em que com grande mágoa o acompanhei à última morada ,depois de uma vida cheia e já com noventa e tantos anos. 
Mas eu abri esta narrativa com sotos de sapateiros.
Era um número elevado o de sotos de sapateiros dos quais se destacavam dois onde a indústria era mais dinâmica.
O Malã onde o meu pai mandava fazer o calçado para todos nós e que era um homem bom e muito engraçado. Uma outra crónica falará dele pois este homem tem historial para escrever um livro. Aí trabalhavam o Luciano, o Bernardino, pai do Paulino, o Mário do tio João, avô do Paulo Bento, o João Santana e outros que não recordo agora mas que com tempo tenho a certeza seriam mais de vinte, o outro soto equiparado era o João Correia na rua Direita, aí para além do dono e filho, pai do meu amigo Dr.Horácio trabalhava o meu vizinho e amigo Snr Joaquim Chamorro, o irmão deste José, o Nuno do tio Miguel, o Fraga e uma outra vintena de homens que, como o Malã, faziam sapatos e Boots, vulgo butes que vendiam pelas feiras do distrito.
Num levantamento só na rua Direita tínhamos junto ao chapeleiro, o Chamorro, sogro do Verónico, o tio Dioniso, avô da minha mulher, o meu sogro Acácio Cacinho, o de Chico Bigodes e o Manuel todos filhos do tio Dionísio a quem chamavam os Nairecos e também Judeus, o Elias Furão e os irmãos, o João na rua Direita, o Elias na rua de Trás ao fundo era o tio Bernardino pai do Toninho Grande que está hoje no soto do meu sogro e que foi do Gil pai da mulher do Isaac, que era tio do Fernando Quitolas. Era sapateiro afamado o tio Feijão que esteve na Caleja e acabou na Mãe d'Água e também o Teófilo da Caleja das Pedras, na 5 de Outubro o Daniel Toríbio e no Picadeiro o Truta,Pimprel, pai do Prof.Luis Pimparel e do meu praça Valdemar a quem o pai um dia perguntou: - Viste a tábua de afiar? O Valdemar que era um pouco vesgo olhava para um lado e dizia, estou a vê-la. Ora o pai seguia-lhe o olhar e não encontrava a tábua! Finalmente achou-a a pegando nela a geito deu-lhe uma demúria inesquecível, pois no nosso tempo de tropa mais de uma vez nos contou a história que os de "ó por aí abaixo "que estavam connosco riam até fartar.
Estes são apenas alguns dos que eu conheci e que são somente uma fracção do número extraordinário de oficiais de manipuladores de calçado como eufemisticamente hoje lhe chamam. 
Destes todos ,alguns foram gente com quem aprendi a ser homem, não por ter seguido o mesmo caminho mas por condição e lealdade a todos os operários em todas as artes e ofícios que no meu tempo de rapaz se chamavam artistas.E alguns eram-no de facto.
A Associação de Socorros Mútuos dos Artistas de Bragança e o Sindicato Nacional dos Artistas da Construção Civil e Ofícios Correlativos do Distrito de Bragança eram disso prova evidente.
Sou dum tempo em que um bom oficial do seu ofício tinha a consideração de todos, ricos ou pobres e já no Antigo testamento, Provérbios 23-29 está escrito: - Vês um homem hábil no seu trabalho? Ele se manterá diante dos Reis e não permanecerá entre gente ignóbil! -E a Arca da Aliança e o Tabernáculo foram os operários que foi premiado com o Espírito do Senhor para executarem a beleza indizível que saiu de mãos calejadas pelo trabalho que dá o pão e a educação.
Hoje prestei homenagem aos Sapateiros da minha terra, cujos oficiais do lado da minha mulher, foram competentes e diligentes para que o provérbio ( e não permanecerá entre gente ignóbil) se lhes aplique e as minhas filhas e netos tenham honra e orgulho da sua proveniência, noutra ocasião falarei de pedreiros e operários da construção civil que são os do meu lado e dos quais estarei mais à vontade para pormenorizar pois eram operários capazes de obra limpa das fundações ao telhado.
Preencher-se-á a outra parte da ascendência dos meus descendentes. 

Nota: As pessoas omissas deste relato não foram propositadamente postas de fora. Apenas ao correr da pena é- me impossível lembrar-me de todos.

Gaia 05/08/2018





A. O. dos Santos 
(Bombadas)

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