Por: Manuel Eduardo Pires
(colaborador do Memórias...e outras coisas...)
Nunca li uma única linha de rousseau. Há muita coisa para ler e o tempo não dá para tudo. No entanto já tropecei nele vezes sem conta e parto do princípio que tenha mesmo dito que as pessoas nascem boazinhas, algo que contradizia o conceito de pecado original até então aceite, e depois se estragam no convívio com a sociedade (quer dizer, com as outras pessoas). Não se podendo avaliar ninguém sem saber o contexto em que afirmou o que afirmou, arrisco ainda assim um pequeno comentário a essa ideia, à primeira vista inocente, mas que quanto a mim tem feito estragos no mundo de há duzentos e cinquenta anos a esta parte.
É certo que do seu ponto de vista, adotado depois pelas esquerdas, o indivíduo é considerado corrompido. Mas não tem que se preocupar, pois a culpa cabe inteirinha aos outros indivíduos. Alguém sugeriu que não existe coisa tão idiota que não possa ser dita por um filósofo, o que me parece ter sido o caso. Se fôssemos paridos em estado de natural bondade e depois nos metessem à força no meio de seres alienígenas que, tendo em vista uma experiência científica qualquer, nos arrastassem aos caminhos do mal para ver o efeito, até se poderia aceitar essa teoria a que poderíamos chamar “das más companhias”. Que também se justificaria no caso de haver duas humanidades, uma malévola que formasse os grupos e as instituições e outra que se limitasse a deambular passivamente dentro deles.
Ora nem uma nem outra destas suposições é verdadeira. O suíço não reparou que a sociedade (os grupos) não existe como coisa concreta. O que existe são pessoas singulares que, embora de algum modo ligadas a outras, não deixam de ser as mesmíssimas pessoas, únicas entidades que possuem consciência, razão, vontade e capacidade de ação pela qual respondem. É inegável que aqueles a quem nos juntamos nos podem influenciar, e de que maneira. Basta pensar que muitas vezes a imbecilidade dos ajuntamentos é muito superior à soma das imbecilidades individuais, o mesmo se podendo dizer da sua capacidade de praticar o bem. Mas nós também os influenciamos a eles: se é certo que uma víbora que caia numa família ou numa repartição pode ter o mesmo efeito que uma maçã podre numa cesta, também se sabe que há no mundo almas que têm o condão de o mudar para melhor, não só agindo sozinhas como fazendo-o até muitas vezes contra tudo e contra todos.
Como membro de um grupo e companhia dos restantes membros, influencio e sou influenciado, beneficio e sou beneficiado, corrompo e sou corrompido. Para os outros, o outro sou eu. Tenho um papel em tudo o que acontece. Ajudo a fazer a sociedade que me faz. A história da pescadinha de rabo na boca, o dilema do ovo e da galinha. De forma que dividir a humanidade em duas categorias, uma constituída pelas pessoas singulares, inocentes, e outra pelos grupos, a origem do mal que se instalaria nelas, é um absurdo que me faz lembrar os filmes do faroeste – índios maus e cobóis bons; a desculpa dos miúdos que fazem traquinices – não fui eu, foi aquele; os pais dos miúdos justificando as ditas traquinices – as más companhias; ou, acrescentaria eu, a síndrome da vista cansada – ver bem ao longe e mal ao perto.
Esta distorção infantil que consiste em vermo-nos sistematicamente como vítimas dos outros foi assentando na mente coletiva pelas décadas afora antes de triunfar nos tempos que correm, acarinhada pelas esquerdas e pelo estado, explorada até à náusea pelos meios de comunicação. Basta dizer que quase não há hoje quem não derrame abundantes lamúrias por dá cá aquela palha e não entoe a canção do desgraçadinho quando se depara com câmaras de tv, um tique já quase tão natural como respirar.
Enorme obstáculo ao autoconhecimento (e ao conhecimento em geral), a vitimização é também por isso inversamente proporcional à responsabilidade, e também por isso muito nociva. Desde que começou a proliferar, há de haver meio século mais coisa menos coisa, vamos já com duas gerações avessas a regras e deveres, ética e civicamente deficitárias, mas que se choram. O mal está disseminado, pelo que me limito a exemplificar com algo que me toca de perto e incomoda imenso: nas escolas públicas há cada vez mais meninos que se conduzem como selvagenzinhos; do ponto de vista deles e dos papás a culpa é dos professores (cá está, da sociedade…), uns incompetentes que “não os conseguem controlar”.
É certo que do seu ponto de vista, adotado depois pelas esquerdas, o indivíduo é considerado corrompido. Mas não tem que se preocupar, pois a culpa cabe inteirinha aos outros indivíduos. Alguém sugeriu que não existe coisa tão idiota que não possa ser dita por um filósofo, o que me parece ter sido o caso. Se fôssemos paridos em estado de natural bondade e depois nos metessem à força no meio de seres alienígenas que, tendo em vista uma experiência científica qualquer, nos arrastassem aos caminhos do mal para ver o efeito, até se poderia aceitar essa teoria a que poderíamos chamar “das más companhias”. Que também se justificaria no caso de haver duas humanidades, uma malévola que formasse os grupos e as instituições e outra que se limitasse a deambular passivamente dentro deles.
Ora nem uma nem outra destas suposições é verdadeira. O suíço não reparou que a sociedade (os grupos) não existe como coisa concreta. O que existe são pessoas singulares que, embora de algum modo ligadas a outras, não deixam de ser as mesmíssimas pessoas, únicas entidades que possuem consciência, razão, vontade e capacidade de ação pela qual respondem. É inegável que aqueles a quem nos juntamos nos podem influenciar, e de que maneira. Basta pensar que muitas vezes a imbecilidade dos ajuntamentos é muito superior à soma das imbecilidades individuais, o mesmo se podendo dizer da sua capacidade de praticar o bem. Mas nós também os influenciamos a eles: se é certo que uma víbora que caia numa família ou numa repartição pode ter o mesmo efeito que uma maçã podre numa cesta, também se sabe que há no mundo almas que têm o condão de o mudar para melhor, não só agindo sozinhas como fazendo-o até muitas vezes contra tudo e contra todos.
Como membro de um grupo e companhia dos restantes membros, influencio e sou influenciado, beneficio e sou beneficiado, corrompo e sou corrompido. Para os outros, o outro sou eu. Tenho um papel em tudo o que acontece. Ajudo a fazer a sociedade que me faz. A história da pescadinha de rabo na boca, o dilema do ovo e da galinha. De forma que dividir a humanidade em duas categorias, uma constituída pelas pessoas singulares, inocentes, e outra pelos grupos, a origem do mal que se instalaria nelas, é um absurdo que me faz lembrar os filmes do faroeste – índios maus e cobóis bons; a desculpa dos miúdos que fazem traquinices – não fui eu, foi aquele; os pais dos miúdos justificando as ditas traquinices – as más companhias; ou, acrescentaria eu, a síndrome da vista cansada – ver bem ao longe e mal ao perto.
Esta distorção infantil que consiste em vermo-nos sistematicamente como vítimas dos outros foi assentando na mente coletiva pelas décadas afora antes de triunfar nos tempos que correm, acarinhada pelas esquerdas e pelo estado, explorada até à náusea pelos meios de comunicação. Basta dizer que quase não há hoje quem não derrame abundantes lamúrias por dá cá aquela palha e não entoe a canção do desgraçadinho quando se depara com câmaras de tv, um tique já quase tão natural como respirar.
Enorme obstáculo ao autoconhecimento (e ao conhecimento em geral), a vitimização é também por isso inversamente proporcional à responsabilidade, e também por isso muito nociva. Desde que começou a proliferar, há de haver meio século mais coisa menos coisa, vamos já com duas gerações avessas a regras e deveres, ética e civicamente deficitárias, mas que se choram. O mal está disseminado, pelo que me limito a exemplificar com algo que me toca de perto e incomoda imenso: nas escolas públicas há cada vez mais meninos que se conduzem como selvagenzinhos; do ponto de vista deles e dos papás a culpa é dos professores (cá está, da sociedade…), uns incompetentes que “não os conseguem controlar”.
(Nordeste - jul. 2019)
Manuel Eduardo Pires. Estes montes e esta cultura sempre foram o meu alimento espiritual, por onde quer que andasse. Os primeiros para já estão menos mal, enquanto a onda avassaladora do chamado progresso não decidir arrasá-los para construir sabe-se lá o quê, mas que nunca será tão bom. A cultura, essa está moribunda, e eu com ela. Daí talvez a nostalgia e o azedume naquilo que às vezes digo. De modo que peço paciência a quem tiver a paciência de me ir lendo.
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