Miranda do Douro, concelho de fronteira, recebe a partir deste sábado, na aldeia de Constantim, uma romaria de igual devoção para portugueses e espanhóis.
Terra Fria e Terra Quente. Eis Trás-os-Montes na sua divisão clássica. Terra Quente é o Nordeste, com as suas altitudes baixas e clima seco; Terra Fria é o outro Nordeste, mais montanhoso, chuvoso e húmido.
Divide-os não só o perfil meteorológico, mas também a agricultura, o estilo de vida e a economia. Mas o que une estas duas terras é a pertença a uma zona prenhe em mitologia e histórias sussurradas que, partilhada entre dois países, assistiu a sangue, mistérios, celebrações e, por fim, a convergência de uma identidade cultural que as linhas políticas não separam. Falamos da Raia, a fronteira ancestral que divide Portugal e Espanha. A nossa Aldeia do Mês de Abril leva-nos à sua versão transmontana, mais concretamente ao concelho de Miranda do Douro, na Terra Fria. Celebramos aí, na aldeia de Constantim, a Romaria Internacional Nossa Senhora da Luz, que se realiza no último fim-de-semana de Abril.
A Raia: um imaginário comum
Constantim é uma aldeia que já foi sede de freguesia única. Partilha, hoje, esse estatuto com Cicouro. A sua localização em pleno Parque do Douro Internacional confere-lhe não só uma beleza extraordinária, mas um elo primordial à terra que se manifesta na prática de várias e antigas actividades agrícolas. Aqui passeando, encontrará ainda bem conservados antigos pombais, chafarizes e fontanários, marcas da relação e dependência do meio natural. Terá sido esse o motivo da escolha para se povoar a região, já de tempos antigos: existe um castro pré-romano a nordeste da aldeia como prova.
Há algo deste passado longínquo, destas tradições de antanho, que ainda hoje sobrevive no imaginário da Constantim. No seu brasão, destacadas, estão duas máscaras de caretos, sobreviventes de tradições pagãs muito anteriores ao cristianismo, e também uma gaita de foles, que não só nos leva a músicas antigas, hinos espirituais à natureza e aos deuses, mas também sintetiza bem a característica que esta aldeia celebra todos os finais de Abril: a internacionalidade.
No mapa, a aldeia parece chegar a um beco sem saída, uma linha muito escura onde, de um lado, estamos perfeitamente à-vontade e, no outro, lemos nomes que, apesar da familiaridade, nos são alheios: Moveros, Alacañices... A nossa memória escolar recorda-se então que esta última localidade tem o exacto nome do tratado que, assinado em 1297, fixou as fronteiras entre Portugal, na altura, e Castela (hoje Espanha), até hoje praticamente inalteradas.
É simbólico, então, que Constantim celebre, com uma romaria em honra dea Nossa Senhora da Luz, esta ligação: Portugal e Espanha, separados num mapa, unidos no terreno. É a sina da Raia, tão longe dos nossos centros políticos, mas afectando dez distritos portugueses. Existem povoações que atravessam ambos os países (como Rio de Onor, Castro Laboreiro ou Caia); existem instâncias de linguajar português que se instalam em território espanhol criando dialectos actuais como o mirandês ou o barranquenho, mas também antigos como o galego-asturiano; zonas espanholas onde uma variante do português dialetal ainda hoje se fala, pelo menos entre os mais velhos: o vale de Xálima, na província de Cáceres, e na mesma região Ferreira de Alcântara. Algumas comarcas de Zamora mantêm ainda também estas vertentes linguísticas. Sem grande interferência ou cuidado oficial dos estados português e espanhol.
A celebração de uma cultura PARTILHADA
Quando assim acontece, restam aqueles que vivem essa realidade e a mantêm por gosto, paixão ou simplesmente uma obrigação histórica. Na Romaria Internacional de Nossa Senhora da Luz, o símbolo maior é a própria capela dedicada à divindade mariana. Metade situa-se em Portugal; a outra metade, em Espanha; e no final de Abril de todos os anos, é o palco da romaria que inicia estas celebrações.
Segundo uma lenda do distrito de Bragança, esta é uma das Sete Senhoras – ou Irmãs – de Trás-os-Montes. Variações de madonna que se espalharam pela região e que desde tempos remotos são veneradas pela maioria do povo. Cada uma num concelho diferente, cada uma com a sua celebração particular, com os seus pontos altos: a da Assunção, na aldeia de Vilas Boas (no município de Vila Flor), é famosa pelo seu enorme andor, levado por muitos homens e que exibe figuras vivas, encarnadas por pessoas; a do Amparo, em Mirandela, que merece da população um enorme fogo-de-artifício que é projectado das águas do rio Tua, que atravessa a vila; e a da Luz, que aqui se celebra, é tão famosa que mesmo antes da abertura de fronteiras dentro da União Europeia, em 1992, já havia licenças especiais que prescindiam das habituais burocracias para que os habitantes de ambos os países pudessem vender e comprar produtos no “estrangeiro” que ficava a pouco metros de suas casas.
A cerca de 900 metros de altitude, Constantim olha para ambos os países com benevolência e é o ponto de encontro entre os povos de duas nações. A seguir à missa campal, segue-se uma pequena procissão, com o andor da Divina Senhora a circundar várias vezes a capela.
A preparação da festa é da iniciativa do lado português, com quatro casais de Constantim encarregados de organizar as festividades e tratar da ermida para que esteja tudo pronto a tempo. Nos dias imediatamente anteriores, quando o trabalho é maior, muitos voluntários da aldeia chegam-se à frente e ajudam também.
Divertimentos e passeios
A par das cerimónias religiosas... o comércio tem um peso importante neste evento: uma grande feira atrai ambiciosos mercadores portugueses e espanhóis, que trazem os produtos tradicionais das grandes serranias transmontanas e dos planaltos de Leão.
Centenas de pessoas visitam o espaço, e a maioria nem vem propositadamente pelas compras: quer reencontrar velhos amigos, sem nacionalidade definida, conviver, celebrar uma união dividida por linhas imaginárias. Olhando as bancas de venda e petiscando nas várias barracas que disponibilizam comida e bebida, os ociosos fazem tempo até à noite, quando todos descem à aldeia para o tradicional e muito remexido bailarico.
A cooperação e amizade são exemplificadas por este relato recolhido por Manuel da Costa no seu livro Portuguese folktales in North America – Canada:
“Porque há onz'horas (?) ou assim não dão o passo livre. 'Tão os carabineiros na raia, e a guarda portuguesa e a espanhola, não é? Não dão o passo livre. Mal apenas dão o paso livre, olhe, fica tudo trocado: os portugueses todos em Espanha, e os espanhóis todos em Portugal. É romarias assim, lindas, que eu gosto até bastante de... Gostava muito d'ir, porque a gente ia prà Espanha. Comprávamos escabeche, laranjas, fruta, bananas, e assim, muita coisa. Mas os espanhóis, polvo. E os espanhóis vinham pra Portugal era a comer vitela assada, vinho...”
SE VAI A CONSTANTIM, EXPLORE MIRANDA DO DOURO
Vá pela curiosidade e colorido e ecumenismo da festa, mas fique pelo muito que há para ver no concelho de Miranda do Douro. Além das tremendas paisagens do Parque do Douro Internacional e da Raia Transmontana, visite a Miranda. O castelo medieval é o principal ponto de interesse, rodeando todo o espaço urbano do centro. Outros espaços a pedir uma olhada são o Aqueduto do Vilarinho; a cativante casa dos Cachorros Eróticos, devendo o seu nome algumas esculturas moralistas no exterior do edifício; as duas portas que sobram da muralha original de Mirandela; o Museu da Terra de Miranda, com exposições sobre arqueologia e a cultura mirandesa.







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