segunda-feira, 12 de maio de 2014

Trás-os-Montes – Em terra de milagres

Uma peregrinação por Trás-os-Montes, no norte de Portugal, deambulando entre altares, lendas e o mundo onírico de Graça Morais, que nos conduz pelos universos da sua obra pintada.
Aqui moram as Marias e a Delminas de carne e osso, as fragas e os pastores. Na paisagem, escorrem serranias abaixo lendas antigas e estórias de milagres que, tal como o vinho, aquecem o povo nos Invernos frios.
Encontramo-nos com Graça Morais na Quinta da Pereira, um acolhedor agro-turismo em Vila Flor cujas traseiras dão para o verde da vinha a perder de vista. A pintora traz consigo o irmão Cristiano Morais, autor da monografia Por Terra de Ansiães, a quem caberá a tarefa de nos contextualizar nas épocas históricas. Já ela, mastiga a paisagem e conta estórias de tempos menos recuados.
A primeira surge à beira da estrada no caminho que liga Vila Flor a Carrazeda de Ansiães, na imponente Fraga do Ovo. Antigamente as solteiras atiravam pedras para cima da fraga e as que ficassem em cima da rocha indicavam os anos de espera para casar. Graça Morais graceja que é uma questão de pontaria e que ficariam mais descansadas aquelas que errassem o alvo. Lembra que antigamente “vivia-se em função do matrimónio” e que na meninice chegou a “perguntar” ao cuco quando iria casar – dependia de quantas vezes ele piava. Lá de fora sobra-nos o verde dos castanheiros e dos pinheiros alternando com as prateadas copas das oliveiras.
Chegados a Selores estacionamos em frente à igreja de São Gregório. Alzira, a guardiã do templo, confidencia-nos que já lhe ofereceram “dez contos” (50 euros na moeda de hoje) pela maciça chave de ferro que traz nas mãos, mas que ela não a venderia nem por mil. Aberta a porta da igreja românica do século XVI, Graça parece flutuar, entretida a fotografar o altar-mor de um rococó levado ao extremo e ornamentado com gladíolos laranjas e agapantos lilases.
Associada à imagem do Ecce Homo que se encontra nesta igreja, conhecido pelo povo como o Senhor da Cana Verde, desfia mais uma estória. Cabe a Alzira narrar a lenda à volta do Santo. Em épocas remotas apareceu ali um homem com um pau de amoreira bom para esculpir que pediu um lugar para passar a noite. No dia seguinte, a porta estava aberta e o dito homem desaparecera, deixando feita esta imagem tão querida dos paroquianos. Alzira garante que o palco do milagre foi o seu quarto. A escultura de arte sacra está ligada ao culto das curas e na parede que a envolve multiplicam-se ex-votos: quadros dedicados ao santo como forma de agradecimento. Alzira jura que conheceu André Nunes de Sequeira nascido em 1734, bacharel formado em leis de Alganhafres, povoação vizinha, também ali representado. É impressionante a capacidade que tem de introduzir lendas de épocas longínquas na sua vida. Mas quem se atreve a demovê-la?
Seguimos para outra igreja, desta vez a de Santa Eufémia, no lugar de Lavandeira. Dada a fama de realizar milagres relacionados com o gado, acontece neste lugar, em Agosto, a Festa da Marrã, altura em que chegam à aldeia, com cerca de 120 habitantes, milhares de pessoas. Outrora os pastores vinham aqui benzer os seus rebanhos e, numa espécie de interpretação da passagem bíblica, ovelha que entrasse na igreja era sacrificada.
Em pleno altar, sempre pronta a fazer clique, Graça Morais explica que “hoje era impossível porem figuras com maminhas ao lado do sacrário”. A fotografia é a base do seu trabalho e a artista dispara mais fotos que o fotógrafo de serviço. 
Rumamos agora ao primeiro castelo que Graça viu na vida quando, aos 12 anos, ela e o irmão apanharam boleia do leiteiro, tendo vindo aqui dar. Dentro do castelo, a igreja de São Salvador, “jóia do românico em Portugal”, conserva no seu portal um juízo final intacto. O castelo da Lavandeira, ou de Ansiães, já foi palco do Festival de Música Medieval organizado pelo guitarrista Pedro Caldeira Cabral, marido de Graça. “Houve um ano em que entrou um nevoeiro por aí fora que parecia que estávamos no meio de um filme sobre a Idade Média”, recorda. Já em dias de sol sobressai na paisagem o castelo do Numão encavalitado na margem esquerda do rio Douro.
À saída, a pintora apanha um ramo de trovisco. Tal como o ramo de oliveira, o trovisco era usado nos vãos das janelas para afastar as trovoadas. Cristiano Morais graceja que ali perto, em Eucísia (Alfândega da Fé), conhecida pela vizindade como terra de bruxas, “ai de alguém que entrasse de trovisco em punho! Era imediatamente expulso!”.
Com o estômago a dar horas aterramos na Churrascaria Veiga, onde somos presenteados com “o” verdadeiro banquete. Sobre a mesa, presunto e paio de porco bísaro e alheira grelhada, a que se segue vitela mirandesa grelhada com naco de bísaro. “Metam à boca um bocadinho de bísaro com vitela”, diz Fernando Veiga. Seguimos o conselho do anfitrião proporcionando um verdadeiro festim às papilas gustativas. Já as batatas fritas caem no goto de Graça. “São tão boas que parecem as da minha tia Albertina, só que as dela eram mais gordas e fritas em azeite”. 
Entre conversas sobre a região ouvem-se explicações agrícolas sobre olivais, sobreiros e, claro, o néctar inconfundível destas paragens. Entramos com o tinto Vinhas do Tua e saímos com outro, um Negreiros. Apesar de absolutamente conquistados, a combinação do queijo de ovelha com doce de cereja deixa-nos sem fala.
Santuários para todos os gostos
O segundo dia começa numa peregrinação ao altíssimo – cerca de 700 metros de altitude – Santuário da Nossa Senhora da Assunção, a meia dúzia de quilómetros de Vila Flor. Saímos dali para outro lugar de veneração, desta vez dedicado à pintora. No Café Tony de Vila Flor, onde Graça vai comer uma torrada de manhã, há uma sala de refeições onde sobressai a obra da pintora transmontana. O dono explica que as pessoas vão ali de propósito ver as paredes forradas de fotografias, cartazes de exposições, recortes de jornais e serigrafias da própria. “Só faltam livros alusivos à obra para serem consultados enquanto se espera a refeição”, reclama o senhor Campos, que na juventude partilhou com Graça as carteiras do colégio de Santa Luzia.
A segunda paragem na vila faz-se no Museu Berta Cabral. Fundado por Raul Sá Correia, neste “museu de afectos” o que está exposto foi oferecido por locais. Graça doou um retrato a óleo que é uma homenagem à sua avó. Lá está também figurada a caixa de pó de arroz cor-de-rosa que a avó lhe deixou como herança e que hoje habita na sua mesa-de-cabeceira. 
Debruçado numa das margens do rio Tua, o chefe Manuel Gonçalves do restaurante Flor de Sal, em Mirandela, recebe-nos com um menu de degustação que é digno de reis. Principiamos com carpaccio de língua de vitela com agri-doce e, um pouco antes da xurufada (ou seja, um tira-gostos) de azeite e limão, é tempo de bacalhau grosseiro. A este desfile de pratos soma-se um cortejo de vinhos pensados para a ocasião. O manjar encerra com a dulcíssima tarte de chila com ovos-moles, amêndoa e gelado de canela acompanhado de um moscatel roxo de Setúbal. Cá fora a paisagem lembra o quadro do pintor francês George Seurat La Grande Jatte, que retrata todo o bulício próprio de uma praia fluvial num dia de verão.
Sons da terra
A próxima paragem é a mais ansiada de todo o fim-de-semana. Somos guiados ao Centro de Arte Contemporânea Graça Morais com a melhor cicerone que poderíamos desejar: a autora. Inaugurado em Junho passado, o museu encontra-se num edifício setecentista e foi projectado pelo arquitecto Souto de Moura. Bebidas umas águas para apaziguar os fulgores do Verão, encetamos a nossa viagem pela mostra Graça Morais – Pintura e Desenho 1982- 2005. Na primeira sala, dois quadros com Maria e Delmina, referências na obra da artista plástica, abrem-nos as portas do seu universo. Além de Maria e Delmina, a vida árdua da mulher transmontana está muito representada numa “exposição bastante ligada ao desenho”. Jorge Costa, o director do espaço, realça que há um elemento recorrente nesta mostra, “a ligação entre o ser humano e o animal”. A série Metamorfoses de 2000 salpicada por meninas transformadas em gafanhoto foi feita quando Graça e Pedro, o marido, andavam a pesquisar as segadas (ceifa). Da investigação resultou o disco de Pedro Sons da Terra Quente e esta série de trabalhos que documenta “os ritmos da canção, que recriam os ritmos do trabalho”.
A caminho do jantar no Solar Bragançano viajamos nas memórias da Graça estudante. Quando fez o liceu em Bragança ficou hospedada na Casa do Arco, um lar de freiras onde não existia a palavra liberdade. Recorda que uma vez aconteceu uma ingénua fuga colectiva com o objectivo de assistirem ao Festival da Canção na televisão do Café Flórida. A meio do acontecimento foram interrompidas por uma legião de senhoras de hábito que as levou de volta à clausura.
Longe já vão aqueles tempos e esquecidas estão as canções festivaleiras. Na hora da despedida é a música country que nos embala, enquanto dizemos adeus às lebres pintadas a sépia, às perdizes “nada comestíveis” e ao Homem-Peixe da praia de Sines, personagens criadas pela pintora. Vemo-la, a menina-mulher, estampada no seu traço, e vamos ter saudades. 

Por Maria João Veloso
in:upmagazine-tap.com

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