Havia no Serafim qualquer coisa que não cabia no mundo tal como ele é, talvez por isso procurasse sempre, através do seu pequeno transístor, a forma mais simples e mais digna de se ligar à vida. O Serafim era um ser humano com deficiência, sim, mas acima de tudo era um homem de afetos, um coração inquieto que encontrou, no Albergue de Bragança, valência do Centro de Educação Especial, a margem segura onde podia pousar os dias. Veio de Benlhevai, com a leveza dos que trazem pouco nos bolsos mas muito na alma.
Quando alguém lhe roubava o transístor, aquele aparelho que era o fio frágil mas firme com que segurava o mundo, já todos sabiam onde o encontrar. Lá estava ele, a descer a Rua Direita, a entrar no Nova Luz, à procura de quem ainda o ouvisse, de quem entendesse o que significava ficar sem a música, sem as vozes, sem o barulho que o mantinha inteiro.
E havia sempre quem entendesse.
O Rego, das Finanças, era um pilar, daqueles que não fazem barulho, não aparecem em fotografias, mas sustentam vidas. Era o ombro pronto, sólido, paciente. À hora do café, após o almoço, quando o digestivo ainda pousava quente no estômago, lá nos juntávamos todos. Finanças e F.A.O.J., cada um à sua maneira cúmplice desta pequena missão de cuidar do Serafim.
O Rego, esse então… mal o víamos aproximar-se com aquele sorriso que era quase uma ordem de amizade, já vinha a frase que ainda ressoa: -“Bóta cá…” Não importa agora a quantia, eram escudos ao tempo mas valeram sempre muito mais que qualquer moeda. Em poucos minutos já tinha o necessário para comprar outro transístor para o Serafim. E claro, com pilhas incluídas. O Rego não deixava vidas pela metade. Reconstruía-as com a naturalidade de quem sabe que a dignidade é feita de coisas pequenas, urgentes, essenciais.
Há saudades que não passam, que se agarram à memória como uma fotografia que não queremos arrumar na gaveta. Saudades mil do Rego… e de todos nós. Uns deste lado, outros do outro, porque cada um seguiu o seu caminho, mas há caminhos que nunca deixam de se cruzar dentro da gente.
O Serafim também aparecia, de quando em vez, para os lados do Loreto, sempre com aquele ar de pássaro que sabe que pertence a algum lugar mas que gosta de se aventurar. E a verdade é que nunca teve de regressar a pé ao sítio de onde se escapava. Havia sempre quem o levasse, quem lhe desse boleia, quem percebesse que a liberdade dele tinha rota própria.
Mas um dia o Serafim desistiu. Em tempos de Covid, quando o mundo ficou mais estreito, mais frio, mais distante. Talvez lhe tenham faltado as vozes do transístor, ou os gestos simples do Rego, ou a presença silenciosa de todos aqueles que o rodeavam. Talvez tenha sido apenas a vida, essa que às vezes cansa. O certo é que partiu. Bragança ficou mais vazia, Benlhevai guardou-o de novo, e nós ficámos com esta saudade que não passa.
Lembras-te, Gino?
Lembras-te dele a descer a Rua Direita, do Rego a juntar moedas, do transístor novo a chegar às mãos certas?
Lembras-te da força invisível que unia toda essa gente?
Eu lembro-me contigo.
E o Serafim, esse, continua a ouvir-nos onde estiver. Talvez com um transístor novo, talvez com pilhas eternas. Porque há vidas que, mesmo frágeis, iluminam tudo em redor. E ele foi uma delas.

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