sábado, 11 de agosto de 2018

A viagem de Marnoto pelo Portugal rural é a mostra de um mundo em mudança

Durante uma década, João Pedro Marnoto fez de Trás-os-Montes a sua casa. Fotografou, filmou, percebeu as entranhas do mundo rural. Nove Meses de Inverno e Três de Inferno é possivelmente "um dos últimos registos" de uma "ruralidade em mudança". E um retrato de todos nós.
Foto: Nelson Garrido

Ao terminar um dos seus primeiros trabalhos longe do mundo de cimento e correria onde nasceu, João Pedro Marnoto conseguiu a atenção de alguma imprensa e teve a oportunidade de publicar no Jornal de Notícias. Em duas páginas da revista Notícias Magazine, mostrou em 2007 um pequeno texto e algumas das fotografias do livro As Fragas, a Gente e a Memória, mergulho nas identidades do concelho de Alijó. Dias depois, ao regressar à vila transmontana retratada no seu portfólio, um amigo quis dar-lhe os parabéns. “As fotos são muito fixes”, avaliou, para logo de seguida acrescentar: “Mas quem escreveu aquele texto não percebe nada de Trás-os-Montes.”

Sinais de inquietação soaram. Afinal, o autor daquelas breves linhas era o próprio João Pedro Marnoto. “Escrevi que aquela era das zonas mais pobres da Europa. E estatisticamente isso é um facto. Mas estava a esquecer o contexto”, conta, agora ciente do lapso ali cometido.




A recordação do fotógrafo e realizador portuense vem a propósito de uma certa visão “paternalista” que tem diagnosticado nas reproduções feitas do mundo rural (“Tenho até compaixão, porque também cometi esse erro”, diz sorridente) e do “enorme privilégio” que sente por poder romper esse olhar pela capa, incapaz de ampliar cenários e narrativas, de ver para lá de rótulos e sentenças. Em Nove Meses de Inverno e Três de Inferno — livro e documentário agora editados — materializou-se a sua viagem de dez anos pela geografia transmontana, porventura “um dos últimos registos” de uma “ruralidade em mudança” que na Europa já só é palpável na outra ponta do continente, na Roménia.

Nas fotografias e documentário de Marnoto está todo um planeta em permanente rotação: o “universal” que é, afinal, “o local sem paredes”, como um dia escreveu Miguel Torga. Ou uma “metáfora da ruralidade”, nas palavras do portuense de 42 anos. Mas já voltamos ao Douro.

Marnoto não sabe dizer em que linha da sua história surgiu pela primeira vez a fotografia. Tinha um tio que rodava mundo a trabalhar de câmara na mão e, mesmo sem uma relação muito próxima com ele, acredita que possa vir daí o início do fascínio pela “ideia de viagem, de ausência e aventura”. Começou a pegar na máquina cedo e lembra-se de, pelos 14 anos, ter a noção de que “podia fazer algo mais sério do que uns cliques aqui e ali”. Uma nova relação nascia para nunca mais se dissolver.
João Pedro Marnoto - Foto: Nelson Garrido

A fotografia — e mais tarde o vídeo — tornaram-se arma de um menino tímido, chave de entrada em cenários que, sem câmara na mão, lhe pareciam inacessíveis. “É a minha forma de me relacionar com o mundo. É tanto a minha rama como a minha defesa. Há sempre um lado no nosso carácter que justifica o que fazemos.”


Os pais moveram-se de meios pequenos para a cidade grande ainda jovens: a mãe era natural de Fornos, aldeia de Santa Maria da Feira, o pai de zona de mar, em Ílhavo (o sobrenome Marnoto significa “pessoa que trabalha nas salinas”). João Pedro foi a primeira geração já nascida em meio urbano — mas não por isso esquecida das raízes.


Estudou fotografia, passou quatro anos em Inglaterra, voltou a Portugal, trabalhou como freelancer, fez “trabalhos de sobrevivência”, como casamentos e baptizados. E, por vias do coração, tornou frequentes as longas viagens entre o Porto e Alijó, onde — sem planos traçados, como gosta de viver — se deixou entranhar no território. Aos poucos, a teia foi ganhando fios, dimensão, consistência. “Chegou uma altura em que era mais o tempo que estava lá do que aquele que estava cá”, recorda, ao contar o momento de viragem: “Fez sentido mudar-me de malas e bagagens.”

Nas imagens de Marnoto habita o quotidiano pueril e sorridente da ruralidade. Mas também dores e apertos, rugas e solidão, costumes e paisagens. E sangue — literalmente. É um olhar “autoral” (e não documental), com assumido ponto de vista e vivência de quem perdeu o deslumbre de turista e se arrogou morador. Sem paternalismos (outra vez) e floreados. Em Nove Meses de Inverno e Três de Inferno — expressão típica de Trás-os-Montes —, Marnoto omitiu propositadamente nomes dos lugares e dos entrevistados (ou das pessoas com quem conversou, como prefere dizer). Mais do que o retrato de uma região, queria um registo “abstracto” que pudesse ser “representativo de uma certa ruralidade” que, sendo mais típica do Norte, poderia acontecer em muitos outros territórios. Fora do país inclusive. Porque esse conflito entre cidade e campo — ou progresso e tradição — é universal.
Foto: Nelson Garrido

Marnoto viveu uma nova liberdade no ritmo desacelerado do campo. Não tinha as discotecas do Porto, mas na mesa de jantar nunca estavam menos de 15 pessoas. A televisão era a lareira. O convívio mais real. As necessidades e estímulos distintos. Os valores também. Um testemunho com os dias contados, acredita. Marnoto abre o livro e aponta para uma das suas fotografias. Uma lareira improvisada no chão, lenha, um homem de cabelo branco. Imagem tipicamente rural que o fotógrafo quis incluir no seu livro, mas que teve de procurar, porque “já não se encontram aos pontapés”. “Muitos velhinhos têm as suas casas a cair, mas ao lado construíram outra já com aquecimento central”, conta o também autor do documentário Fé nos Burros. “Seria hipócrita ir lá tirar um selfie com o senhor, para mostrar aos meus amigos no Porto, e pedir para ele ficar assim porque me dá jeito.” Será o futuro das aldeias uma aproximação da vida nas cidades? “Não vai deixar de haver velhinhos, mas os próximos já vão de moto 4 fazer o trabalho com as ovelhas. E os burros já não serão para transporte, mas sim turismo.”

Nas últimas semanas, João Pedro Marnoto tem feito vida de nómada por várias aldeias portuguesas, com projector e tela às costas e a preciosa ajuda do parceiro Manuel Gomes. Improvisam uma sala de cinema, quase sempre ao ar livre, e lá mostram o documentário de 94 minutos (ao qual se tem acesso na compra do livro, da Âncora Editora, disponível em livrarias, nestas sessões e no site do projecto). Uma espécie de prolongamento da viagem de Marnoto, que quer também fazer paragens em cidades e se possível além fronteiras. Ou não fosse o Portugal em extinção por ele retratado um pedaço de um mundo em mudança.

Foto: Nelson Garrido

Resposta rápida

A que lugar (ou livro, filme, fotografia, pessoa) voltas quando precisas de inspiração?

Não tenho um, mas um baú de trabalhos e inspirações sempre a crescer e que servem para recarregar ideias e vontades. Robert Frank (The Americans) pela irreverência. Joakim Eskildson (The Roma Journeys) pela beleza e simplicidade da cor. O filme Baraka e a Trilogia Qatsi (nome informal dado à série de três filmes produzidos por Godfrey Reggio, com trilha sonora de Philip Glass; Os títulos dos filmes são palavras da língua hopi, onde a palavra "qatsi" significa "vida". Koyaanisqatsi: Life out of balance (1983); Powaqqatsi: Life in transformation (1988); Naqoyqatsi: Life as war (2002)) pelo fascínio da contemplação audiovisual; Larry Towell, The Mennonites, pela relação do fotógrafo com a comunidade que retratou. Paolo Pellegrin pelo mistério e assombro da sua forma de fotografar conflitos sociais. Pedro Costa, No quarto da Vanda, pela sua dureza e frontalidade; e tantos outros.

Se tivesses de escolher um frame para representar a ruralidade em Portugal, qual seria?

Não é fácil, mas assim de repente surge-me uma imagem que sempre se diferenciou: a da mulher a carregar velhas cepas na cabeça para fazer o seu lume. Na realidade, fiz esta imagem mesmo no início das minhas aventuras pela região, um encontro inesperado mas feliz, que depois se reproduz numa fotografia que tem tanto de fascínio como de assombro: o contraste ainda vincado na nossa ruralidade entre o animalesco, representado pela cabeça a carregar a natureza morta, e o chamado desenvolvimento, realçado tanto pela camisola de marca como pela bengala já feita de forma não manual mas sim industrial.

Que projecto tens agora em mãos? 


De momento estou a desenvolver um trabalho sobre o lobo. Mesmo sendo numa dimensão bem diferente dos meus trabalhos anteriores, é um tema com tanto de fascinante como de delicado, pois açambarca em si todos os ingredientes do eterno conflito do homem com o seu meio natural e a constante necessidade de se encontrar um equilíbrio.
Mariana Correia Pinto - Texto
Nelson Garrido - Fotografia
Jornal Público

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