segunda-feira, 15 de outubro de 2018

Um acto de lesa–gentes

Por: António Orlando dos Santos 
(colaborador do "Memórias...e outras coisas...")
É bom recordar, mas vezes há em que à nostalgia se sobrepõe uma raiva, que devemos por obrigação abandonar, por já não resolvermos coisa alguma daquilo que é ou foi o objecto do nosso descontentamento. Razões que mesmo que ainda válidas de não conformação estão fora de tempo, mesmo juridicamente e quanto a possível ressarcimento é questão que não interessa nem nunca interessou pelo simples facto que a questão é sentimental e não se confunde com o vil metal.



Concretizando. Decorria o ano de 1964 quando começaram as obras de construção do Edifício do Hotel Torralta, Cinema e Filial bancária do Montepio Geral. Foi implantado no terreno a que chamávamos a Cortinha da Albininha Guerra.
Era aí que a miudagem da Caleja do Forte jogava à bola. Diga-se para que conste que só jogávamos quando o Pimpas, filho da dona da Cortinha estava de bons humores, pois quando estava com a tenebrosa corria o garotio à pedrada e era dia perdido, para os possíveis reforços do G.D.B.,que almejavam poderem um dia ascender ao primeiro "team" para ocuparem o lugar das vedetas que jogavam contra o Mirandela. Alguns ainda o conseguiram e com aproveitamento. O Quintana, o Zé Santana, o Alcino Pinto (Rodinhas) o Fernando Calcada e até o Simeão que casou na Caleja bem assim como o Leonel Cachimbo. 
Tinha a Cortinha forma de triângulo irregular, confrontando de um lado com as traseiras da Rua 5 de Outubro, de outro com a Caleja e ainda com o que é hoje a Avenida Sá Carneiro.
Pela Primavera desse ano, fomos surpreendidos pela azáfama inusitada de gente que montava uma máquina britadeira no espaço que confinava com a casa do tio Alberto Mirandela, o das casinhas para a Cascata, enquanto outros faziam medições topográficas na Cortinha, o que impediu de jogarmos à bola! Não bastava o Pimpas que era pior que a potassa, vinha agora a engenharia ocupar o nosso reduto. Mas, manda quem pode, obedece quem deve e o remédio foi irmos para onde é hoje a entrada do edifício jogar o Pingue e os "bulharacos" (bugalhos), que esferas eram caras para o garotio daquele tempo. 
A máquina britou pedra que dava para construir outro Castelo e fê-lo durante meses. Fazia uma barulheira tal que as mulheres passaram a rogar pragas ao inventor de tal mostrengo que infernizava as manhãs,  antes tão pacíficas. Creio que as pragas surtiram efeito pois que o resultado somado do aproveitamento comercial e social foram zero ou coisa nenhuma.
Tinha a Torralta na sua cúpula administrativa, alguns elementos da região Bragançana, que num gesto de boa vontade para com a cidade a quiseram presentear com um empreendimento de grandeza que pudesse potenciar a vinda de visitantes e até turistas estrangeiros e fizesse sair a região do marasmo que tinha sido imposto pelo desinvestimento nas regiões periféricas a que os sucessivos governos da nação a haviam votado,i sto sendo prática desde as Invasões Francesas. Os Junots e seus sequazes, levaram os navios carregados que dali em diante ficou a nação na banca rota e nunca mais houve fartura a não ser para Lisboa e seus fidalgos.
O projecto teve assinatura do Arquitecto Viana de Lima e parece-nos que que foi a única coisa de valor que a obra teve! Homem de génio, desenhou com a sua visão futurista, este e outros trabalhos em Bragança, todos com selo de qualidade. 
Não farei aqui narrativa que seja pormenorizada do "dossier " Torralta. Primeiramente por não o conhecer em pormenor, segundo porque sei apenas que a Câmara de Bragança se encarregou da expropriação pública dos prédios do lado direito da Caleja que foi a zona sacrificada ao camartelo e que resultou no que está à vista. Incluíram nas suas atribuições o realojamento das famílias que não sendo proprietárias deveriam ser realojadas algures.
Era o caso que se punha a mim e às minhas irmãs e sobrinha, que vivíamos na casa em que o meu pai havia nascido e que ele nunca conseguiu que o Coronel Castro, seu proprietário, lhe vendesse. Fomos assim transferidos para o Bairro de Santa Isabel.
Tão simples como digo, ninguém nos perguntou se estávamos bem ou mal. Foi como quem vai comprar couves para transplantar, tira daqui e põe ali. Durante o tempo que o Dossier Torralta durou, foi dito às pessoas da cidade que seria um investimento potenciador da melhoria das condições de todos os que estivessem envolvidos no projecto ou por ele afectados, bem assim a cidade que seria a mais beneficiada. Que a zona envolvente seria alindada a preceito e a rua velhinha daria lugar a um espaço aprazível onde os naturais e forasteiros teriam prazer em estar!
A verdade é que fracturou a relação social entre os moradores fazendo com que não mais fosse possível recriar aquela comunidade irrepetível. A tristeza que é hoje o estado em que a Câmara de Bragança permitiu que o lugar chegasse, primeiramente ao não cumprir nem obrigar outros a cumprirem, ou seja, a Torralta e o empreiteiro, a fazerem o que o Caderno de Encargos e a própria lei estabeleciam, abriu caminho àquela vergonha que é hoje tão lastimável e visível que serve de escárnio aos que acham que as intervenções efectuadas foram de uma incompetência total aqui e com os poderes que nos calharam em sorte.
Abandonado serve hoje de abrigo a marginais que já por duas vezes lhe atearam fogo e o delapidam e vandalizam. Foi de tal modo nocivo o Dossier Torralta que além de haver destruído uma comunidade de forma saloia, deslumbrada e irresponsável, não cumpriu com o mínimo exigível que seria não conceder licenças à Torralta sem que antes esta obrigasse o empreiteiro a terminar a obra sem omitir o correspondente ao espaço exterior, que era do interesse da cidade que não só da Caleja.
Escusado será dizer que ninguém reclamou coisa nenhuma! Os pequenos são-no não só pela falta de capacidade para recusarem o que lhes é prejudicial, mesmo quando imposto pela prepotente autoridade. Há que louvar três moradores que resistiram à ideia maioritariamente aceite de debandada e conseguiram com o seu denodado labor e resiliência, comprar propriedade que restava no lado poupado e no primeiro segmento do lado direito, para construírem os seus lares em moldes modernos que são visíveis do exterior. Dois deles nunca tendo deixado de morarem lá, o terceiro tendo estado na diáspora, quando pode regressou e comprou no lugar dos seus afectos como o coração lhe ditava.
Parabéns ao Abílio Reis, Professor Maximino e José Santana.
Não bastando este rosário de injustiças e de novo com a mesma ideia saloia e irresponsável resolveu predar a pretensiosa Comissão de Toponímia ! Inventou um Largo naquele caos urbanístico e decidiu dar-lhe o nome de S.João de Deus, que Deus lhes perdoe, pois a Web estará a criar-lhes ilusões virtuais pois já vêem Largos onde há uma quase circunferência com um rabicho de rua e umas escadas sujas pelo menos desde 1968. O trecho de Rua que sobreviveu acho que o nomearam de Viela, mas nem placa tem. Deve ter-lhe acontecido o mesmo que ao Relógio da Estação. Foi Tudo reduzido à expressão mais simples.



Tantas afrontas fizeram à minha rua que foram setas envenenadas no nosso coração. Não pode pela sua natureza ela rebelar-se, mas podemos nós, os seus antigos moradores, ainda que tarde dizer à Câmara daquele tempo e às que lhe sucederam que cometeram um crime de lesa comunidade, que continua impune e sem mostras de arrependimento por parte de quem o cometeu e continuado pelos que lhes sucederam.
A maneira possível de reparar este mal continuado é a Câmara mandar alindar o local e torná-lo digno e reporem o nome que tão bem lhe ficava; Rua de S.João de Deus - Antiga Caleja do Forte, com placa toponímica no começo e no fim

Bragança 07/ 10 /2018. 




A.O. dos Santos
(Bombadas)
(ex morador no número 70)

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