(colaboradora do Memórias...e outras coisas...)
Às vezes, tenho a singular capacidade de me ver inteligente. Aquela inteligência útil de um adulto que cresce à força e continua a sonhar castelos, com a mesma certeza de que existem impostos para pagar. E todas as rugas me enganam a dizerem-me que sei da vida, quando é só o futuro, transformado em passado, que me desarranja o corpo.
Faço coleção de absurdos. Contas, papéis, e-mails, agendas, horários. Quando abro a gaveta a transbordar, estas desconfortáveis responsabilidades já ganharam o estatuto de monstros. De olhos fechados, volto a enxotá-las para um canto, na expetativa de que não cheguem a devorar-me. A incapacidade de quem não nasceu para ser prático. Para habitar este mundo consciente dos seres funcionais que vivem com os pés na terra, a nadar no betão armado e nos artifícios do quotidiano - quando eu mal adivinho onde deixei os sapatos - como grandes coisas que não me merecem o esforço da memória. É nesses momentos incautos que lamento a ausência de uma assistente, precavida e de boa lembrança, que preveja onde estarão escondidos os meus óculos.
Por falar em óculos, gosto de escrever. Mas suspeito que por ter lido demasiado Pessoa, nunca mais voltei a ser um sujeito normal. Mastigo ideias e cuspo palavras enquanto engulo copos de silêncios. E vou traduzindo o que sinto para a linguagem daqueles que desconhecem não conseguir sentir. Assim gosto de ficar, sem pedir autorização a ninguém, a morar em cima do meu sofá simples em segunda mão, entre pensamentos cheios daquilo que gostava de compreender. Sou pessoa de poucas aventuras, portanto. A adrenalina sobe o recomendável se passar um par de horas a alinhar, de forma insuperável, quatro adjetivos, esquecido do motivo porque me sentei em frente à mesa do restaurante.
Com todas as certezas de quem já me leu o horóscopo, uma amiga tenta convencer-me de que para me tornar num escritor a sério, de sucesso, é urgente que, pelo menos, tire umas quantas fotografias. Para o meu “perfil de autor”, para o meu press kit como agora está na moda dizer. Para vender mais nos eventos literários, remata. Um literato que dispensa a sua própria biografia e cuja maior história pessoal de amor é a que vive com as teclas do computador... Porquê parecer aquilo que sei que não sou? Uma caricatura de mim mesmo?! A fama está a tornar-se uma figura frívola, embrulhada em maquilhagem, que desfila nos palcos do mundo… Faço de conta que ouço a minha amiga, enquanto me sinto uma falsa estrela a fugir da órbita do sistema solar.
E fico sempre desconfiado quando me dizem que me compreendem. Se isso aconteceu, é porque me mostrei excessivamente objetivo. A banalidade do entendimento fácil está longe de ser um privilégio. A mim soa-me mais como um tipo de nudez desmazelada. Acho que as pessoas deviam ser como um bom livro. O que nos dá vontade de ficarmos presos a ele, é a beleza do mistério.
É o que me acontece com as mulheres.
Ah! As mulheres… Acusam-me de insensível. Não. Sou apenas uma alma suficientemente distraída ao ponto de se perder consigo própria. Mas não lhes peço a elas, às mulheres, que me percebam. Que já bem me basta ser eu neste contrato a tempo inteiro que nunca assinei. Por isso, resta-me somente pedir-lhes perdão por todos os diálogos em que, fisicamente presente, me fiz ausente. Nessas pausas, sujeitava-me a outras lides domésticas e menos domesticadas da mente.
Claro que não era por desinteresse ou por desleixo. Não tenho culpa se no meio de uma conversa no supermercado, sobre a frescura da fruta e dos legumes, o cérebro me acende uma centelha e o espírito se me desaparece do lugar onde estou, porque um estranho advérbio me conduziu, estupidamente, para dentro de um poema.
Só quem consegue lidar com isso é a A. Sabe-me de cor como um livro que continua a folhear, obstinada, como se fosse a primeira vez. Diz-me que prevarico por ser exageradamente realista (quem diria?) e, como uma boa irmã, só ela me absolve de todos os pecados que pratico por pensamentos, palavras, atos e omissões. Quando vem de visita, senta-se à mesa comigo durante duas ou três manhãs e, enquanto partilhamos um café amargo, olha-me como se eu fosse um museu contemporâneo. Sem entender nada, mas seduzida pela beleza da desordem.
A propósito, da última vez em que estivemos juntos, contou-me como sou curiosamente engraçado. Parece que durante o tempo em que falava com ela – sem nunca me interromper ou ofender com as minhas dispersões, que fique registado - consegui encontrar o sinónimo perfeito para “desalinho”. Deixei-o rabiscado em cima do envelope onde a fatura da luz ficou por pagar. Para ela, mais do que um indivíduo atento aos pormenores, sou um distraído com sentido. A. deve ser a única mulher com quem consigo ter uma conversa integral e íntegra. Questiono-me se ela existe.
Mas regressando um pouco atrás, e para que conste, gosto, sim, das mulheres. E nesta matéria prefiro, seguramente, ser bem interpretado. A verdade é que o amor seria lindo se não fosse o dia-a-dia. O que pode matar mais o erotismo do que discutir, logo de manhã, sobre a ementa do jantar? A sensualidade tem que ser escrita com o copulativo certo!
Mas atenção, não aprecio aquelas que chegam agarradas a uma espécie de compêndio de trivialidades, cobertas de aparências vazias, envoltas em clarões que brilham pelo excesso de nitidez. As que me trazem um soneto comprado no mercado e me o declamam a frio porque, quente, lhes queimaria os neurónios.
Gosto, sim, das mulheres que não inventam desculpas para viver. As que, vez por outra, me desviam com elegância do caminho que vou traçando. Aquelas que se sustêm, quase divinas, entre o requinte dos gestos e a placidez da contemplação. Que citam Cesariny com toda aquela graça natural, absolutamente deliciosa, em cada uma das suas palavras acesas como barcos. E o fazem com a mesma virtude com que cruzam as pernas na sala de espera de um consultório.
São como duas colheres de poesia nos dias com cheiro a inverno, estas mulheres que não tentam pôr-me na linha para além daquelas em que escrevo. As únicas linhas direitas a que me prendo. As delas, que são curvas, observo-as, com dedos vagarosos a girarem na orla de um copo. Os seus lábios frescos cheios de filosofias e a ciência de quem sabe que um vestido solto no corpo, e ombros nus abandonados ao convite de um toque, são a mais bela forma de provocação intelectual.
Eu sei… São mulheres impossíveis! Belas. E perigosas também. É quase um milagre sair ileso desta forma de subtileza sedutora que não me causa tédio. E quase um crime se acontecer o contrário. Eu, confesso transgressor, escuto as vontades da alma e deixo-me levar. Sempre por fascínio. A seguir, deixam de me ser intrigantes e eu, sem conhecer ao certo o nome exato do lugar onde acabei por cair, fujo como um culpado inocente, da roda das suas intrigas. Ad astra per aspera.
E lá troco uns vícios por outros. O cigarro.
Mas há quem creia que o corpo é um templo. Como tal, não sei ao certo se por convicção própria ou se, talvez por falta dela, deixei de fumar. O meu maior ato de coragem. O meu maior atentado, de sempre, à estética. Engordei seis quilos de ansiedade. Tenho saudades do cigarro. Era como aquela amante sensata que não me pedia justificações. Apenas um curto tempo de prazer. O suficiente para umas quantas epifanias e o cair, depois, nesse marasmo aprazível entre o intelecto e a inércia. Para compensar, tentei correr, fazer exercício. Foram três dias num sol de pouca dura. Não tenho dúvidas: prefiro o desafio das metas físicas. Pelo menos, com essas, sou como um fósforo aceso, sinto-me vivo. E posso transformá-las em literatura. Uma arte que não precisa de me provar nada para lá do que consigo viver poeticamente. E se isso me basta, por que razão hei de procurar mais?
Mas se vos conto sobre mulheres e cigarros, não é por acaso. Talvez sejam uma tragédia menor quando comparados com os políticos. É com eles que pratico o meu desporto mais radical: a paciência. Na minha melhor versão de imperfeição, abraço estes devotos não praticantes, como se abraça uma trovoada no oceano. Ao longe.
Na política, sou antitudo. É aqui que, condenado a tornar-me consciente, não por opção mas por impossibilidade de exílio, tropeço ainda mais na realidade.
Vejamos, então. É um facto que não sei de todas as coisas certas. Mas não duvido nada das que estão erradas. No meu outro trabalho, aquele que me faz pagar as dívidas, vivo mal. Sobretudo mal pago. Mas também por causa dele, mal durmo e mal como. Guiado por laivos de ingénua esperança, a minha conta bancária já mudou de domicílio mais vezes do que eu de apartamento. E aqueles que me conhecem aéreo, perguntam-me, por vezes, onde estacionei o carro. A esses questiono: qual carro? Não porque me tenha perdido dele, mas pela overdose de despesas que a imposturice não paga. Se pudesse, deslocava-me sobre demagogias, mas a criatividade do autor ainda não foi eficaz ao ponto de permitir que a mobilidade não seja feita senão com os meus pés.
Do mal, o menos, quem sabe desengorde a meia dúzia de quilos a mais. E enquanto aqueles senhores vão amadurecendo pelo engano e eu, espectador das suas autobiografias, continuando a apodrecer por falta de alternativas, aguardo que me prendam por abuso de inconveniências, expressas com a minha liberdade literária, de cada vez que me apetece publicar um livro só para me vingar deles.
Pensando bem, também na política, tal como com as mulheres, é um risco colocar condimentos e temperar o prato que não se deseja comer – como me dizia, certa vez, uma amiga, que não era a A. Mas pronto, estou a ser honesto, o que hoje em dia é quase uma utopia.
E já que insisto na honestidade, admito sem hesitar que, se a vida me desse outra oportunidade, faria algo que, a bem dizer, nunca me pareceu totalmente reprovável. Casaria com uma mulher rica. E é óbvio que não o faria por amor. Essa foi uma quimera dos tempos de cara enfeitada com acne. Agora, fá-lo-ia pela minha santa libertação. Para comprar a paz que o dever me usurpa. Não me veria mais nessa necessidade, tão entediante como desgastante, de continuar a fingir que a liberdade se alcança com luta e suor.
Uma mulher rica de coração generoso, com arroubos maternais, que me desviasse, por caridade, dos fósseis administrativos e não me falasse do incumprimento das tarefas diárias como se fosse uma catástrofe global. Que me deixasse viver cada parágrafo da existência entregue à minha essência reflexiva, qual rato de biblioteca que acorda todos os dias ao som de uma bela estrofe.
Talvez uma senhora que me tratasse com aquele carinho de luxo com que as tias cuidam dos seus cãezinhos de raça. Que confundisse a minha desorganização com genialidade e concordasse que a aparente inutilidade é também uma coisa digna. E me chamasse de “meu querido” nas suas soirées aristocratas, onde eu apareceria de lenço de seda policromático ao pescoço, como um pássaro exótico. Excentricidades a que um marido artista não poderia escusar-se.
Mas enfim, à falta desta remota possibilidade de me tornar num parasita novelesco, fico-me pela poesia e pela música. No fundo, o meu manual de sobrevivência no planeta dos TikTok’s e da fast food.
Além disso, é para suprir ambições pouco tangíveis e lutar contra o enfartamento da alma e do corpo, que serve igualmente a espiritualidade.
E ora aqui está uma palavra que não gosto de pagar para acreditar.
Muitos por aí andam a vender falsas castidades. Já me vi enganado por gurus bem vestidinhos com cara de cartão de visita. Vendedores de luz que se regalam com velas apagadas. Mas eu pertenço ao clube dos que já pouco se surpreendem com alguma coisa. E se o mundo oculto está cheio de intrujice, que me desculpem todos os beatos, mas este lado do hemisfério não vive em melhores condições.
Por isso, sou um adepto de forças superiores com bom gosto, as que profetizam à margem do cinismo e que se encontram fora desse espaço dos mortos que dita auspícios para punir os que ainda estão vivos.
Posto isto, a minha espiritualidade? Vivo nela e com ela, na medida certa e sem despropósito. Pronto para não entender tudo, mas crente de que existirá lógica em qualquer lado. No fundo, tenho a impressão de que entre a castidade piedosa dos seres etéreos e a iluminação pomposa dos homens, Deus é, sobretudo, um poeta bastante incompreendido.
Portanto, sou espiritual, efetivamente. Mas sem devoções. Assim, não tanto por fé ou por dúvidas, mas mais pela teimosia de, por alguns instantes, precisar de não estar vivo, vou praticando meditação. Deste modo prossigo a minha jornada: entre o diabo odiado e os anjos que não sabem se curam, que é como quem diz, entre o pecado e a salvação.
Quem não nasceu com humores emocionais para vislumbrar arcos-íris, é assim que aprecia a vida: a preto e branco. As cores, especialmente quando a luminosidade se assemelha a um grande ruído, deixam-me baralhado. Prefiro assimilar o que os meus olhos veem. Um traço nítido, limpo e honesto entre o que é e o que não é.
Antes de terminar, não posso deixar de fazer uma confidência. É só uma revelação ingénua, ainda que possam julgar-me como louco. Pressinto que o fim do mundo esteja para amanhã. Não sei se é porque o calendário insiste ou porque o tempo me convenceu.
Mas se vier mesmo o apocalipse, pelo menos que me encontre com um livro entre os olhos e um copo a meio.
Assinado: Ló
(na incerteza de me tornar sal ou livro, fiquei-me pela crónica)
P.S. Se alguém me leu até ao final, peço desculpa… Ou não. Talvez nesta página de tolas verdades mascaradas de pilhérias, possa ter-se reconhecido. E se isso aconteceu, os meus parabéns. Acabou de se demorar numa conversa consigo mesmo. O único com quem poderá falar sempre genuinamente, para além do seu terapeuta.
- Paula Freire -
Paula Freire - Natural de Lourenço Marques, Moçambique, reside atualmente em Vila Nova de Gaia, Portugal.
Com formação académica em Psicologia e especialização em Psicoterapia, dedicou vários anos do seu percurso profissional à formação de adultos, nas áreas do Desenvolvimento Pessoal e do Autoconhecimento, bem como à prática de clínica privada.
Filha de gentes e terras alentejanas por parte materna e com o coração em Trás-os-Montes pelo elo matrimonial, desde muito cedo desenvolveu o gosto pela leitura e pela escrita, onde se descobre nas vivências sugeridas pelos olhares daqueles com quem se cruza nos caminhos da vida, e onde se arrisca a descobrir mistérios escondidos e silenciosas confissões. Um manancial de emoções e sentimentos tão humanos, que lhe foram permitindo colaborar em meios de comunicação da imprensa local com publicações de textos, crónicas e poesias.
O desenho foi sempre outra das suas paixões, sendo autora das imagens de capa de duas obras lançadas pela Editora Imagem e Publicações em 2021, “Cultura Sem Fronteiras” (coletânea de literatura e artes) e “Nunca é Tarde” (poesia), e da obra solidária “Anima Verbi” (coletânea de prosa e poesia) editada pela Comendadoria Templária D. João IV de Vila Viçosa, em 2023. Prefaciadora dos romances “Amor Pecador”, de Tchiza (Mar Morto Editora, Angola, 2021), “As Lágrimas da Poesia”, de Tchiza (Katongonoxi HQ, Angola, 2023), “Amar Perdidamente”, de Mary Foles (Punto Rojo Libros, 2023) e das obras poéticas “Pedaços de Mim”, de Reis Silva (Editora Imagem e Publicações, 2021) e “Grito de Mulher”, de Maria Fernanda Moreira (Editora Imagem e Publicações, 2023). Autora dos livros de poesia: Lírio: Flor-de-Lis (Editora Imagem e Publicações, 2022) e As Dúvidas da Existência - na heteronímia de nós (Farol Lusitano Editora, 2024, em coautoria com Rui Fonseca).
Em setembro de 2022, a convite da Casa da Beira Alta, realizou, na cidade do Porto, uma exposição de fotografia sob o título: "Um Outono no Feminino: de Amor e de Ser Mulher".
Atualmente, é colaboradora regular do blogue "Memórias... e outras coisas..."- Bragança e da Revista Vicejar (Brasil).
Há alguns anos, descobriu-se no seu amor pela arte da fotografia onde, de forma autodidata, aprecia retratar, em particular, a beleza feminina e a dimensão artística dos elementos da natureza.


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ResponderEliminarEU! li até ao fim. Peço a todos que façam o mesmo. Paula... Serve para todos sem exceção. Uns pelo cú, outros pelas calças. O que escreveste é a vida. A vida de todos. E depois, claro, aqui e em todo o lado, uns disfarçam melhor que os outros.
ResponderEliminarMeu amigo Henrique… só tu para leres até ao fim e ainda encontrares fôlego para um comentário objetivo, capaz de me dizer que vale a pena continuar. Obrigada por estares desse lado, a ler com olhos de ver. Um luxo a que nos vamos desabituando…
EliminarNos dias em que o mundo estiver mais feio do que tu mereces, guarda isto: gosto muito de ti.
Quanto ao 'c.' e às calças… bem, a crónica é democrática!... :)