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SOBRE O BLOG: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blog, apenas vinculam os respetivos autores.

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

Inverno - Ano Novo


Como o tempo avança, inexoravelmente, assim aconteceu. Voltámos para a aldeia, quinta-feira ao fim do dia, com todas as coisas que havíamos comprado.
À nossa espera estava Joli que saltava e latia, feliz de nos ver. A gata enroscava-se nas nossas pernas mal nos deixando andar. Os meus avós vieram até à porta perguntar se precisávamos de ajuda.
O dia despedia-se rapidamente e mostrava-nos um céu vermelho, belíssimo, encantatório... “Anda rapariga, mexe-te!” Com muita pena deixei de olhar o céu e pus-me a levar as coisas para casa.
Senti-me, de alguma forma, confortada e protegida, quando o calor da lareira se entranhou em mim. Vinha com frio. Sentei-me num dos tripés feitos pelo meu avô que era carpinteiro e aqueci as mãos e os pés. O meu pensamento voou, autónomo, para outras paragens mais quentes. Sofri. Era o último dia do ano e eu estava sozinha, tão absolutamente só como uma pedra no meio do caminho.
"Maria, vai por um avental que temos muito que fazer. É preciso preparar a ceia e temperar as carnes para amanhã."
Levantei-me, agradecida, por me terem resgatado da caverna escura onde adentrara.
Incumbiram-me de fazer as filhoses de abóbora, as rabanadas, os bolos de bacalhau. Confessei a minha ignorância culinária e fiquei deveras aflita por temer não levar a bom porto as minhas incumbências.
"Eu digo-te como se faz e tu vais fazer tudo. Garanto-te que vai sair perfeito!"
Pensei para comigo que não deveria ser nada muito difícil de fazer desde que bem orientada e meti mãos à obra.
Para meu espanto, com as indicações precisas da minha tia e um pouco de improviso, consegui fazer tudo e bem.
O restante jantar foi feito ao lume nos velhos potes de ferro. Devo confessar que o rodeão assado na brasa, que nunca tinha comido, as alheiras, o salpicão e as chouriças acompanhadas por batatas cozidas e couves tronchas, souberam-me como um manjar dos deuses. Os bolos de bacalhau quase pareciam os que a minha mãe fazia e todos foram unânimes em dizer que estavam ótimos.
Comeu-se devagar, como convinha, para que a meia noite chegasse farta e feliz.
Para reforçar as sobremesas juntámos-lhe o bolo-rei e um belíssimo pão-de-ló feito pela tia Engrácia no forno a lenha, depois de ter cozido o pão.
Devo dizer que nunca havia comido filhoses, fossem elas de abóbora ou outras, o mesmo acontecendo com as rabanadas; as nossas eram embebidas em café porque a minha tia não gosta de leite. Acho que tive sorte de principiante e, felizmente, tudo saiu muito bem.
Mesmo tendo comido pausadamente, às dez horas já tinhamos acabado a refeição. Ato contínuo, o meu avô levantou-se do seu lugar e "Vou prá cama. Não fiqueis até muito tarde."
A minha estupefação deve-se ter refletido na minha cara pois, em tempo algum, podia supor que alguém se fosse deitar antes da meia noite na passagem de ano.
Comecei a pensar que, provavelmente, ficaria sozinha na minha primeira passagem de ano em Portugal. Entristeci.
"Ó pai, fique connosco até à meia noite." "Não tinhas tu a culpa! Com este frio, só vós que não tendes juízo nenhum!" Vira-se para a minha avó Elvira e diz-lhe que não demore.
A minha avó Maria levanta-se e encaminhasse para a porta. "Não avó, não vá ainda..." "Já é tarde filha. Tenho de ir." "Dorme comigo avó, cabemos as duas na cama." "Não, minha filha, volto amanhã."
Saiu para a noite gelada, cheia de estrelas como eu nunca vira. Fiquei à porta enquanto a minha avó se afastava ligeira. Olhei para o imenso céu, para os milhões de estrelas que continha e suspirei. Amanhã será outro dia.
Levantámos a mesa, lavámos a louça e sentámo-nos ao lume que, lentamente se consumia. Colocámos mais um pau na lareira e esperámos o tempo passar. Veio-me à lembrança a canção do Chico Buarque de Holanda: "Estava à toa na vida, o meu amor me chamou, pra ver a banda passar, cantando coisas de amor..."
Senti vontade de falar com os meus pais, irmãos, primos e tios, tanta que a saudade doeu. Não podia fazê-lo. Não tínhamos telefone. Senti-me tremendamente infeliz.
Conversávamos, pouco, monossilabicamente. Senti que elas estavam ali por minha causa. Não há champanhe, pensei...
Ali estava, à luz da candeia, o lume aceso, um silêncio sepulcral apenas entrecortado com os chamamentos do meu avô pela minha avó...
O tempo que mediou a chegada da meia noite, embora pouco, foi doloroso. A minha tia colocou o pequeno pote que utilizávamos para fazer café ao lume com água. Foi buscar a enorme tablete de chocolate, grossa e pesada que a minha avó Maria tinha trazido. Começou a ralá-lo para dentro do pote. Isaura sorriu: "Vai tomar o melhor chocolate quente do mundo. Vai ajudar a matar um pouquinho a tua tristeza."
Achei improvável que tal acontecesse. Esperei.
Quando me passou a caneca para a mão cheia de chocolate quente e espesso, ao primeiro gole, reconfortei-me. Bebi-o com enorme prazer. Olhei para o relógio e vi que eram onze e meia. A minha avó levantou-se, deu as boas noites e foi para a cama que o meu avô não se calava. A minha tia fez o mesmo. Fiquei só, teimosamente. "Vai-te deitar! Está muito frio e o lume está quase apagado.Não penses muito neste dia, faz de conta que é um dia como os outros."
"Já vou tia." Fiquei até pouco depois da meia noite. Chorei, simplesmente, sem alaridos.
Acendi a vela que me tinha sido dada, apaguei a candeia. Tiritava de frio quando me enfiei debaixo dos cobertos com os quais quase não podia. Continuei, silenciosamente, chorando pela noite fora. Adormeci de manhã e o novo ano encontrou-me a dormir o sono do esquecimento.
Era tarde quando, finalmente, me levantei.


Mara Cepeda
in:nordestecomcarinho.blogspot.com

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