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SOBRE O BLOGUE: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blogue, apenas vinculam os respetivos autores.

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Um inverno - a matança do porco

Levantámo-nos cedíssimo, noite escura. As estrelas brilhavam como diamantes lapidados. O frenesim respirava-se... Era o dia da matança. 
O meu avô Zéca já lá estava com o meus tios Pedro e Firmino e o tio João Caetano. O tio Zé Tarela juntou-se ao grupo com uns bons dias sorridentes. O Graciano, o Quintino e o "Ponês" desciam a rua a assobiar, iluminados pelo luar. A eles juntou-se o Elias grande. Da Portela surgiram o tio Miguel e o tio Américo, primo da minha mãe. 
Na cozinha, afadigavam-se as mulheres, à volta do lume imenso, onde os potes da matança já fervilhavam. Ultimava-se o mata-bicho. A mesa estava posta. Não faltavam os figos secos e as nozes. O pão, cozido na véspera, que cheirava maravilhosamente. A tia Engrácia fritava o bacalhau e o polvo. O queijo de cabra, um naco de presunto, um salpicão da última matança convidavam à degustação. As azeitonas do ano passado, curadas pela minha avó estavam, milagrosamente, conservadas. E, claro, a carne gorda de que o meu avô muito gostava. Para beber, o famoso vinho do Videira, a aguardente e o café feito ao lume, no pote.
Os homens entraram e, depois dos bons dias, sentaram-se para comer. Um ou outro chegou-se ao lume que a manhã estava gélida. Comeram e beberam à vontade e em alegre cavaqueira. De repente, fez-se silêncio, estranho silêncio.
Encaminharam-se todos, juntamente com o meu avô Videira, para o cabanal onde já estava o banco, feito por ele, e demais apetrechos necessários para a função: a corda, a sovela, um pau, perfeitamente polido e limpo para servir de apoio ao pendurar o porco na escada de madeira que, também, ali se encontrava, um recipiente de barro com sal e vinagre para aparar o sangue, os manhuços de palha para o chamuscar, os cântaros com água para o lavar, as pedras de granito para o limpar e, obviamente, a faca, especialíssima, que apenas era utilizada para esse fim. O matador era o meu avô.
No lar e na zona do louceiro não faltava que fazer mas, isso, era trabalho das mulheres. Não se sentaram para comer, iam comendo. A minha avó, com um pedaço de pão e polvo frito na mão, observava com os seus brilhantes olhos azuis. 
"Avó, tome." Estendi-lhe uma caneca com café. Acordou do seu devaneio e sorriu-me. Bebeu um pequeno gole e mordiscou o pão. A minha outra avó entrou nesse momento, ligeira e leve.
"Bom dia tia Maria! Estava a ver que não vinha." "Eu não queria vir mas, se não viesse, a minha neta ficava zangada..." "Entre avó, entre. Aqueça-se que está frio. Já lhe dou de comer." Dei-lhe o mesmo que à avó Elvira. Bebeu um bom gole de café quentinho. Sentou-se.
Por breves momentos, olhei para elas e o meu olhar marejou-se. Ali estavam duas das mulheres responsáveis pela minha existência. Velhinhas as duas, sofridas também. As suas vidas não haviam sido fáceis. Com percursos diferentes, destacavam-se pelo carácter, pelos valores que defendiam e aplicavam no seu dia a dia. Uma e outra eram exemplos na pequena comunidade a que pertenciam.
"Ó rapariga, sai-me da frente que não me deixas trabalhar! Já comeste? Come que preciso da tua ajuda."
Fui buscar uma caneca e enchi-a de café. Bebi-o com enorme prazer. Pedi que me dissessem o que havia de fazer.
Na rua, os homens lutavam contra a resistência dos porcos que não queriam abandonar a loja. Os pobres animais grunhiam desconsoladamente como se adivinhassem.
A tia Glória, mulher do meu tio Firmino, deixou escapar um breve suspiro. "Coitadinhos!"
"Helena, vais lá tu para aparar o sangue." Mandou a tia Engrácia. Helena, enquanto comia, acenou com a cabeça, soltando um vernáculo, "Pois vou, c...".
Eu, que nunca tinha assistido a uma matança, perguntei se podia ir ver.  "Estamos aqui muitas mulheres, deixa ir a garota. Não precisamos dela." "É, deixe-a ir Isaurinha. Ela ainda tem muito tempo para aprender." "Vai. Não sei se vais gostar mas vai...", disse-me a minha tia.   
Para mim, desenrolava-se um mundo novo. Aquele frenesim, aquele ambiente de festa e, ao mesmo tempo, algum constrangimento, alguma tristeza, faziam-me confusão. 
Fui para a rua e recebi no rosto o ar ar frio da manhã. Não sei porquê, soube-me bem.


Por: Mara Cepeda
in:nordestecomcarinho.blogspot.com

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