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SOBRE O BLOG: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blog, apenas vinculam os respetivos autores.

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Um inverno - Maria, a minha avó

Fui a casa da minha avó Maria buscá-la. Já não tinha desculpas para se "esconder". Sempre fizera da sua vida o que bem entendera mas, por mim, condescendia. "Avó?" "Entra filha, entra..."
A pequena casa da minha avó era de uma simplicidade desconcertante. Minimalista a raiar a insuficiência. Era a primeira vez que ali entrava e o meu olhar refletiu a tristeza que senti.
Ela apercebeu-se e explicou-me que os móveis que a minha mãe havia deixado não lhe faziam falta e por isso os tinha dado aos sobrinhos, "coitadinhos", que precisavam mais do que ela.
"Mas, avó, a senhora deu a sua cama?!" "Ó filha, não preciso dela. Anda ver onde durmo." Pegou-me na mão e levou-me para o minúsculo compartimento a que ela chamava quarto. Não quis acreditar no que os meus olhos viam mas, não tive outro remédio senão render-me à evidência. O que ali havia era muito menos que o mínimo para um mínimo conforto.
Encostado à parede, um catre onde apenas ela caberia. Alguns cobertores, suficientes para não sentir frio. Uma pequena arca rústica de madeira de castanho onde guardava os seus tesouros que se resumiam a algumas fotografias da filha e dos netos, uns sapatinhos que me haviam pertencido e que ela guardou religiosamente, uma fita de seda de um dos meus vestidos, um chapéu de palha com aplicação de pequeninas flores azuis que reconheci como meu... alguns lençóis de linho bordados à mão com o monograma da família, mais algumas peças do mesmo teor com uma boa centena de anos, que foram passando de pais para filhos e que ela, milagrosamente, não havia dado a ninguém.
No canto oposto ao da cama estava um guarda roupa improvisado feito com um ferro espetado nas paredes onde ela pendurava a sua roupa que, contra corrente, era bastante. Como proteção, alguém improvisara umas cortinas que proporcionavam algum recato ao "roupeiro".
Esculpidas na parede, três prateleiras, cada qual com a sua função. Na mais alta, os seus santos. Nas outras duas bibelôs que a minha mãe lhe havia trazido do Brasil, uma candeia, algumas velas e duas caixas de fósforos.
Mostrou-me tudo com alegria e com uma agilidade impensável para uma pessoa de oitenta anos. Era feliz se os outros fossem felizes. Notava-se algum arrependimento por não ter uma casa em condições para mim, mas aceitava que eu tivesse de ficar em casa dos meus outros avós.
Na cozinha, dos muitos potes que a minha mãe deixara, restavam três. Pratos, apenas meia dúzia, antiquíssimos, alguns, poucos, talheres e todas as malgas onde eu comia a sopa. todas diferentes e tão antigas como os pratos, cada uma mais bonita que a outra, com diferentes desenhos e decorações.
Chorei. O dique abriu-se e deixou sair todas as mágoas que me corrompiam. Abracei a minha querida avó e perdoei-lhe o facto de viver tão miseravelmente por culpa sua. Bastava-lhe. Era essa a sua receita de felicidade.
"Vamos avó, vai jantar connosco." "Não filha, eu tenho comida que trouxe de casa do Graciano." "Come amanhã, agora quero que vá comigo. Está muito frio aqui." Só então reparei que não havia lume. Era noite e não havia luz.
Abotoou o casaco, compôs o lenço meteu qualquer coisa a um dos seus bolsos secretos. Peguei-lhe na mão que, inacreditavelmente, estava quente. "Tens as mãos frias, filha."
Saímos para a rua, fechou a porta e guardou a chave num dos seus compartimentos secretos. Abracei-a e senti o seu amor imenso, tão grande que arrebatava. Depressa chegámos a casa dos meus avós paternos.
Não tinha demorado mais do que uma hora e estava cansada como se tivesse caminhado por montes e vales numa cruzada sem fim.
"Já cá estás? Olá tia Maria, sempre veio? Só a sua neta conseguia esta proeza!" A minha tia estava sentada num dos tripés, finalmente sossegada. Os meus avós também. Receberam-nos carinhosamente. Acomodámo-nos as duas e eu agradeci pelo calor reconfortante. À luz da candeia fez-se silêncio. Cada um enredado nos seus pensamentos vivia, à sua maneira, o primeiro dia deste novo ano.
Joli estalou o silêncio com o seu latido. "Ó de casa! Pode-se entrar?"
A vida continua sem pesares que, esses competem-nos a nós.    


Mara Cepeda
in:nordestecomcarinho.blogspot.com

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