Por: António Orlando dos Santos
(colaborador do "Memórias...e outras coisas...")
Há, na minha memória, imagens antigas que, mesmo sendo velhas de sessenta e tal anos, revejo como se tivessem sido registadas ontem. O tempo não as tornou nebulosas, mantêm-se nítidas e parecem intemporais, resistiram a toda a erosão que ele quis infringir-lhe e que regularmente consegue nas lembranças mais antigas.
As que mantenho mais bem conservadas são as que pertencem ao álbum da minha rua.
Puxo as memórias atrás e deparo-me com a gente que povoa ainda o meu imaginário. Quase sempre a recordação é amigável. Não há mal-estar entre as pessoas que fizerem parte da minha infância.
É afável o semblante dos protagonistas e coloquial a linguagem. Há uma delas que me pertence e eu preservo com o sentido de posse apenas comparável ao de um colecionador que com a sua obsessão se haja tornado avaro.
Passo a descrever. Há uma parede num quintal e ao centro dela está um nicho lavrado em granito sendo mais profundo dentro do caixilho. A água é contida ali vinda da encosta e queda-se límpida e cristalina.
Em volta do nicho que emoldura a fonte há ervas várias que cobrem a parede e lhe dão um aspeto de frescura evidente, realçado pelo verde-escuro das azedas. Algumas flores espontâneas que salpicam o quadro: lírios roxos, amores-perfeitos, bocas de leão e bungavílias. São espontâneas porque não me recordo que alguém as plantasse ou mesmo cuidasse. Surgiam pelo tempo da Páscoa e mantinham-se até que, chegado Setembro, desapareciam para dar lugar às cores da horta em que se tinham transformado o quintal do meu fascínio.
Da janela da minha casa, olhando em frente, o objeto do meu encanto enchia a minha imaginação de criança, o nicho que continha a fonte e que, pela sua beleza ali exposta, fazia do quintal da Albertina, da Dulce e da Madalena uma admiração que ainda hoje retenho! Não posso saber se os outros viam aquele espaço com os olhos com que eu o via. Quantas vezes, na minha meninice, me acercava da janela e, olhando em frente, via ou imaginava ver o jardim mais belo do universo.
Já rapaz, era atrás da janela que lia os meus livros e, quando levantava o olhar, encontrava sempre essa beleza de pedra e flores. Ao progresso, que sem coração me levou o meu jardim imaginado, não perdoarei a ação vil e premeditada. Mantém-se a casa, danificada e descuidada, que, sempre que ali passo, me faz lembrar do meu jardim de ilusão e realidade, que tinha flores, virava horta e onde estavam a Albertina, a Dulce e a Madalena. Elas sorriam e eu sorria na fraternidade que só as crianças conseguem ter.
O cancelo estava sempre fechado e, da rua, não se via o jardim, só da janela da minha casa se podia ver o encanto e a fantasia que o jardim possuía.
No jardim, que era, assim,
Pequeno, lindo, encantado,
Havia flores e uma fonte
E, quase sem ser cuidado,
Me prendia e fascinava
e, ainda hoje, me retém
n´aquele tempo passado.
As imagens, dizem os que sabem, valem mais que as palavras. As palavras, no entanto, podem reconstruir as imagens e, assim, com elas é possível voltarmos ao tempo que, já longínquo, ainda perdura na nossa memória e imaginação.
Foi afinal assim que eu consegui hoje reconstruir, aqui, tempo e ação da minha infância na nossa amada rua que o dito progresso destruiu.
Bragança, 24/02/2018
A.O. dos Santos
(Bombadas)
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Que linda e emocionante história!
ResponderEliminarAbraços brasucas,
Antônio Carlos Affonso dos Santos - ACAS