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SOBRE O BLOGUE: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blogue, apenas vinculam os respetivos autores.

terça-feira, 2 de setembro de 2014

Moinho de Terroso

Com o regresso da chuva, o canal que leva água ao moinho volta a correr. Esta força natural faz girar a mó debaixo da qual surge o pó branco, que cobre de alvura as paredes e as teias de aranha.

      Se o ano passado o moinho de Terroso, no concelho de Bragança, não moeu, porque não houve colheita, este ano demorou a voltar a girar. Esteve muitos meses parado, à espera da força da água, que salta do canal para o rodízio, accionando a força necessária para que a mó (uma pesada pedra polida e redonda) rode. O grão vai caindo devagar da “tremoia”, ao espaço do “treme-treme”, orquestrado pelo “taravelo”, um pau que de cima da pedra do moinho retira o ritmo necessário para fazer tremer a canela, por onde cai o grão para o buraco redondo, feito ao centro da mó. Dos lados, as cambas impedem a farinha de sair por qualquer lugar. Este movimento dos elementos que compõem um moinho de água do Nordeste Transmontano gera um som característico, com um ritmo certo e regular. Alguma da farinha mais fina escapa ao reservatório, de onde é colhida, e salta para as paredes, para os olhos e a cara do moleiro.
      Aqui, moleiros de profissão, como os das histórias infantis, não são muito comuns. O que há é o povo que mói, usando o moinho que serve para todos. Hoje, só os mais velhos ainda se dão ao trabalho de descer ao rio, levar o grão e trazer farinha. Só que este não é um trabalho fácil, sobretudo quando as forças já são poucas e não há quem ajude.
      “O outro ano não moí porque não colhi. Este ano, tenho aí pão, mas um homem só não pode; não há quem ajude e também, até o outro dia que choveu, não tínhamos água”, explica-nos José Gomes. (Naquela aldeia, como em outras das redondezas, as colheitas do ano passado foram dizimadas por uma tempestade de granizo, como enfaticamente nos explica José Afonso: “Veio uma trovoada e esmagou tudo. Tinha 60 alqueires e esmagou tudo!”. Este ano foi a falta de água no rio Baceiro que levou a que, durante muito tempo, o moinho estivesse em silêncio. “Nunca calhou uma coisa assim no nosso rio. Porque a água ia toda para Bragança. Secavam-na aí ao ir para o Parâmio. Por aí abaixo não ia nenhuma”, afirma José Afonso, referindo-se às captações de água do município, para a cidade de Bragança, alternativas à barragem da Serra Serrada, em época de escassez deste recurso.)
      “Não há quem ajude, não é bem assim. É porque não queremos ficar em favores uns aos outros. Se não chegava aí e dizia-me: oh Zé, vais ajudar-me a levantar a pedra!”, replica o seu primo, José Afonso. José Gomes ainda contesta – “isso era dantes!”.
      Os dois contam-nos como era antes e é agora, em que já não são novos. “Estamos nos 80”, diz um para sublinhar a força maior, que os impede, hoje, de subir as sacas de 50 quilos de farinha, que outrora chegaram a trazer às costas, do moinho, para casa e, note-se que, o caminho, “é sempre ao cimo” (a subir). Mas, na altura, “não custava nada”, conta José Gomes, acrescentando que, “ainda há um bocado trazia dois baldes pequenitos de castanhas e já me custou a chegar aqui”.
      Antigamente, além de mais força, havia também mais pessoas a ajudar. Hoje, José Gomes é um dos poucos utilizadores do moinho de água da aldeia e queixa-se que, agora, quase ninguém “quer ir, a ajudar a compô-lo, quando é preciso”. 
      O seu primo comprou, no último ano, um moinho eléctrico, que tem em casa, para moer a farinha para os animais. José Gomes acha que isso deve “dar muita despesa”. “A despesa não é nenhuma, estás bem enganadinho”, responde o outro, explicando ainda, de seguida, que a televisão gasta muito mais luz. “Já o tenho aí há três meses e posso dizer que pago mais de televisão do que pago do moinho. Trabalha à luz, mas é de pedra, igual ao de lá em baixo. O que é, é pequenino! Mas, então, numa hora deve moer 50 quilos”, afiança. Além disso, hoje também não é precisa muita farinha. “Agora, quase que a cria acabou. Eu tenho aí três vacanhas. Moemos para os vitelecos. Ademais, temos lá umas pedras que, para moer assim para casa, se o trigo estiver lavado, é um amor. Não mói porque é a tal conta, compra-se farinha. Mas para comer, não há farinha melhor que a daquela pedra. Agora é que já há quatro ou cinco anos não trabalha”, conta José Afonso, explicando, ainda, que esta “ é uma pedra alveira”, a pedra utilizada para moer trigo para fazer o pão. 
      Contudo, antigamente, nem era o trigo a farinha do mais regular “pão-nosso de cada dia”. “De facto, no meu tempo, de garoto e homem, ainda moíamos aquela do centeio, para cozer”, diz-nos José Gomes, ao que José Afonso responde: “no tempo do Salazar, comíamos centeio”. “Preto como este casaco”, continua o primo. Além do mais, “eu tenho um grande amigo, que é doutor, e ainda outro dia a minha mulher teve de lhe fazer dois pães de centeio, para comer”, continua José Afonso. Para José Gomes, “esta gente nova” não sabe bem o que é trabalho e outras coisas. “Um homem diz-lhe coisas… E eles não acreditam, julgam que foi mentira, mas não foi.”
      Antigamente todos precisavam do moinho lá do rio, não só para moer farinhas para “as crias” (vacas e porcos), como também farinha para cozer o pão. Por isso, como em outras aldeias, sempre que era preciso, “tocava a conselho” e todos se juntavam para fazer os arranjos necessários. Hoje bem gostaria o senhor Gomes que o conselho se voltasse a juntar às badaladas do sino da igreja, porque o moinho bem precisa de arranjos, sobretudo por dentro. “Está todo esburacado”, explica. Há uns tempos foram feitos arranjos por fora, mas no interior ficou igual. Há outro mais baixo, o mais antigo, que já caiu. 
      Antigamente, “tocava ao sino e íamos. Calhava sempre no dia de Entrudo, para levarmos para lá umas chouriças”, conta José Afonso, lembrando-se menos do trabalho do que das verdadeiras “farras” que deviam ser esses conselhos de antigamente. 
      Além dessas, o próprio fabrico de farinha, parecia implicar um certo divertimento (além do trabalho) estranho a quem tem um moinho eléctrico. “Olha – dizia-me o meu primo – atrás de mim móis tu. Íamos os dois para o moinho, e às vezes não acabava ele, ou não acabava eu, e lá ficávamos os dois, de Inverno, frio como estava. Dormíamos lá, com uma pouca de palha e boa fogueira, e borrachices, que às vezes se arranjavam”. (Mais uma vez os primos entram em diálogo, alheios a estereótipos de entrevistas). José Gomes responde: “e eram pequenas. Uma vez, eu e o Manuel lá de baixo, até ao moinho lhe botamos fogo. Andámos depois a noite toda para o apagar.” 
      Histórias antigas não faltam a José Afonso, que fala ainda “dos lobos” e do medo que dava descer ao “caborco” (estreito por onde corre o rio, entre dois montes), para moer, quando os lobos uivavam (medo que ele nunca teve). “Nunca tive medo aos lobos, nem de noite, ia muitas vezes para a Espanha, ao contrabando…” Contudo, certo dia, “há aí um lombeiro que lhe chamam Lombeiro dos Mouros, que diz que dantes existiram lá uns mouros. Não sei se existiram ou se não. Cheguei ali perto e disse: os lobos estão no Lombeiro dos Mouros, mas, agora, se volto para trás enchem-se de rir de mim. E toquei com o lampião em frente. Era do lado do Parâmio que estavam. E faziam pequeno barulho! Assim que me meti dentro do moinho, fechei a porta e pronto. Tinha lá lenha e tinha tudo”, termina, de porta bem fechada, dentro do moinho. Esta história, que foi verdade, repetia-se muitas vezes, já antes havia muitos lobos e os moinhos ficavam, por vezes, longe das aldeias, e era preciso ir lá de noite para não deixar acabar o grão, ou deixar o moinho a moer em seco, o que constitui um desarranjo total do precioso bem comum. 

Moinho turístico

      Entretanto, os moinhos de Terroso parecem começar a assumir uma nova função. A Junta de Freguesia de Espinhosela está, inclusive, a pensar requalificar o antigo moinho, aquele que está em ruínas, para fazer uma pequena habitação turística, junto à presa. Este empreendimento beneficia daquele espaço natural privilegiado, com pastagens e carvalhos, bem característico do Parque Natural de Montesinho. Junto à presa, a Junta de Freguesia dispõe ainda de alguns terrenos de pastagens, que podem servir o aproveitamento turístico que se pretende.
      Actualmente, muitas são já as pessoas que aproveitam o moinho que ainda trabalha, onde mói o senhor Gomes, com propósitos de puro lazer, como fazer magustos ou uma passagem de ano, “diferente”. A estas pessoas que, simplesmente, têm pedido a chave à aldeia, a Junta de Freguesia, até ao momento, ainda nunca cobrou nada, uma situação que, segundo Hélder Martins, o presidente de junta, estará em vias de mudar. “Até agora ainda não levámos nada. Deixamos o gerador e eles compram a gasolina. Porque o moinho tem luz eléctrica. Em princípio, vamos tentar cobrar alguma coisa, para a manutenção. Amanhã vão para lá umas pessoas fazer um magusto”, refere. Quanto ao projecto de habitação turística, segundo Hélder Martins, já foi feito o levantamento topográfico e, neste momento, o projecto de arquitectura está a ser elaborado, com o propósito de candidatar a obra ao Interreg ou a outro programa comunitário.

 Ana Preto, Mensageiro de Bragança, 17-11-2005

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