terça-feira, 2 de setembro de 2014

Moinho de Terroso

Com o regresso da chuva, o canal que leva água ao moinho volta a correr. Esta força natural faz girar a mó debaixo da qual surge o pó branco, que cobre de alvura as paredes e as teias de aranha.

      Se o ano passado o moinho de Terroso, no concelho de Bragança, não moeu, porque não houve colheita, este ano demorou a voltar a girar. Esteve muitos meses parado, à espera da força da água, que salta do canal para o rodízio, accionando a força necessária para que a mó (uma pesada pedra polida e redonda) rode. O grão vai caindo devagar da “tremoia”, ao espaço do “treme-treme”, orquestrado pelo “taravelo”, um pau que de cima da pedra do moinho retira o ritmo necessário para fazer tremer a canela, por onde cai o grão para o buraco redondo, feito ao centro da mó. Dos lados, as cambas impedem a farinha de sair por qualquer lugar. Este movimento dos elementos que compõem um moinho de água do Nordeste Transmontano gera um som característico, com um ritmo certo e regular. Alguma da farinha mais fina escapa ao reservatório, de onde é colhida, e salta para as paredes, para os olhos e a cara do moleiro.
      Aqui, moleiros de profissão, como os das histórias infantis, não são muito comuns. O que há é o povo que mói, usando o moinho que serve para todos. Hoje, só os mais velhos ainda se dão ao trabalho de descer ao rio, levar o grão e trazer farinha. Só que este não é um trabalho fácil, sobretudo quando as forças já são poucas e não há quem ajude.
      “O outro ano não moí porque não colhi. Este ano, tenho aí pão, mas um homem só não pode; não há quem ajude e também, até o outro dia que choveu, não tínhamos água”, explica-nos José Gomes. (Naquela aldeia, como em outras das redondezas, as colheitas do ano passado foram dizimadas por uma tempestade de granizo, como enfaticamente nos explica José Afonso: “Veio uma trovoada e esmagou tudo. Tinha 60 alqueires e esmagou tudo!”. Este ano foi a falta de água no rio Baceiro que levou a que, durante muito tempo, o moinho estivesse em silêncio. “Nunca calhou uma coisa assim no nosso rio. Porque a água ia toda para Bragança. Secavam-na aí ao ir para o Parâmio. Por aí abaixo não ia nenhuma”, afirma José Afonso, referindo-se às captações de água do município, para a cidade de Bragança, alternativas à barragem da Serra Serrada, em época de escassez deste recurso.)
      “Não há quem ajude, não é bem assim. É porque não queremos ficar em favores uns aos outros. Se não chegava aí e dizia-me: oh Zé, vais ajudar-me a levantar a pedra!”, replica o seu primo, José Afonso. José Gomes ainda contesta – “isso era dantes!”.
      Os dois contam-nos como era antes e é agora, em que já não são novos. “Estamos nos 80”, diz um para sublinhar a força maior, que os impede, hoje, de subir as sacas de 50 quilos de farinha, que outrora chegaram a trazer às costas, do moinho, para casa e, note-se que, o caminho, “é sempre ao cimo” (a subir). Mas, na altura, “não custava nada”, conta José Gomes, acrescentando que, “ainda há um bocado trazia dois baldes pequenitos de castanhas e já me custou a chegar aqui”.
      Antigamente, além de mais força, havia também mais pessoas a ajudar. Hoje, José Gomes é um dos poucos utilizadores do moinho de água da aldeia e queixa-se que, agora, quase ninguém “quer ir, a ajudar a compô-lo, quando é preciso”. 
      O seu primo comprou, no último ano, um moinho eléctrico, que tem em casa, para moer a farinha para os animais. José Gomes acha que isso deve “dar muita despesa”. “A despesa não é nenhuma, estás bem enganadinho”, responde o outro, explicando ainda, de seguida, que a televisão gasta muito mais luz. “Já o tenho aí há três meses e posso dizer que pago mais de televisão do que pago do moinho. Trabalha à luz, mas é de pedra, igual ao de lá em baixo. O que é, é pequenino! Mas, então, numa hora deve moer 50 quilos”, afiança. Além disso, hoje também não é precisa muita farinha. “Agora, quase que a cria acabou. Eu tenho aí três vacanhas. Moemos para os vitelecos. Ademais, temos lá umas pedras que, para moer assim para casa, se o trigo estiver lavado, é um amor. Não mói porque é a tal conta, compra-se farinha. Mas para comer, não há farinha melhor que a daquela pedra. Agora é que já há quatro ou cinco anos não trabalha”, conta José Afonso, explicando, ainda, que esta “ é uma pedra alveira”, a pedra utilizada para moer trigo para fazer o pão. 
      Contudo, antigamente, nem era o trigo a farinha do mais regular “pão-nosso de cada dia”. “De facto, no meu tempo, de garoto e homem, ainda moíamos aquela do centeio, para cozer”, diz-nos José Gomes, ao que José Afonso responde: “no tempo do Salazar, comíamos centeio”. “Preto como este casaco”, continua o primo. Além do mais, “eu tenho um grande amigo, que é doutor, e ainda outro dia a minha mulher teve de lhe fazer dois pães de centeio, para comer”, continua José Afonso. Para José Gomes, “esta gente nova” não sabe bem o que é trabalho e outras coisas. “Um homem diz-lhe coisas… E eles não acreditam, julgam que foi mentira, mas não foi.”
      Antigamente todos precisavam do moinho lá do rio, não só para moer farinhas para “as crias” (vacas e porcos), como também farinha para cozer o pão. Por isso, como em outras aldeias, sempre que era preciso, “tocava a conselho” e todos se juntavam para fazer os arranjos necessários. Hoje bem gostaria o senhor Gomes que o conselho se voltasse a juntar às badaladas do sino da igreja, porque o moinho bem precisa de arranjos, sobretudo por dentro. “Está todo esburacado”, explica. Há uns tempos foram feitos arranjos por fora, mas no interior ficou igual. Há outro mais baixo, o mais antigo, que já caiu. 
      Antigamente, “tocava ao sino e íamos. Calhava sempre no dia de Entrudo, para levarmos para lá umas chouriças”, conta José Afonso, lembrando-se menos do trabalho do que das verdadeiras “farras” que deviam ser esses conselhos de antigamente. 
      Além dessas, o próprio fabrico de farinha, parecia implicar um certo divertimento (além do trabalho) estranho a quem tem um moinho eléctrico. “Olha – dizia-me o meu primo – atrás de mim móis tu. Íamos os dois para o moinho, e às vezes não acabava ele, ou não acabava eu, e lá ficávamos os dois, de Inverno, frio como estava. Dormíamos lá, com uma pouca de palha e boa fogueira, e borrachices, que às vezes se arranjavam”. (Mais uma vez os primos entram em diálogo, alheios a estereótipos de entrevistas). José Gomes responde: “e eram pequenas. Uma vez, eu e o Manuel lá de baixo, até ao moinho lhe botamos fogo. Andámos depois a noite toda para o apagar.” 
      Histórias antigas não faltam a José Afonso, que fala ainda “dos lobos” e do medo que dava descer ao “caborco” (estreito por onde corre o rio, entre dois montes), para moer, quando os lobos uivavam (medo que ele nunca teve). “Nunca tive medo aos lobos, nem de noite, ia muitas vezes para a Espanha, ao contrabando…” Contudo, certo dia, “há aí um lombeiro que lhe chamam Lombeiro dos Mouros, que diz que dantes existiram lá uns mouros. Não sei se existiram ou se não. Cheguei ali perto e disse: os lobos estão no Lombeiro dos Mouros, mas, agora, se volto para trás enchem-se de rir de mim. E toquei com o lampião em frente. Era do lado do Parâmio que estavam. E faziam pequeno barulho! Assim que me meti dentro do moinho, fechei a porta e pronto. Tinha lá lenha e tinha tudo”, termina, de porta bem fechada, dentro do moinho. Esta história, que foi verdade, repetia-se muitas vezes, já antes havia muitos lobos e os moinhos ficavam, por vezes, longe das aldeias, e era preciso ir lá de noite para não deixar acabar o grão, ou deixar o moinho a moer em seco, o que constitui um desarranjo total do precioso bem comum. 

Moinho turístico

      Entretanto, os moinhos de Terroso parecem começar a assumir uma nova função. A Junta de Freguesia de Espinhosela está, inclusive, a pensar requalificar o antigo moinho, aquele que está em ruínas, para fazer uma pequena habitação turística, junto à presa. Este empreendimento beneficia daquele espaço natural privilegiado, com pastagens e carvalhos, bem característico do Parque Natural de Montesinho. Junto à presa, a Junta de Freguesia dispõe ainda de alguns terrenos de pastagens, que podem servir o aproveitamento turístico que se pretende.
      Actualmente, muitas são já as pessoas que aproveitam o moinho que ainda trabalha, onde mói o senhor Gomes, com propósitos de puro lazer, como fazer magustos ou uma passagem de ano, “diferente”. A estas pessoas que, simplesmente, têm pedido a chave à aldeia, a Junta de Freguesia, até ao momento, ainda nunca cobrou nada, uma situação que, segundo Hélder Martins, o presidente de junta, estará em vias de mudar. “Até agora ainda não levámos nada. Deixamos o gerador e eles compram a gasolina. Porque o moinho tem luz eléctrica. Em princípio, vamos tentar cobrar alguma coisa, para a manutenção. Amanhã vão para lá umas pessoas fazer um magusto”, refere. Quanto ao projecto de habitação turística, segundo Hélder Martins, já foi feito o levantamento topográfico e, neste momento, o projecto de arquitectura está a ser elaborado, com o propósito de candidatar a obra ao Interreg ou a outro programa comunitário.

 Ana Preto, Mensageiro de Bragança, 17-11-2005

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