quarta-feira, 14 de fevereiro de 2024

A Atividade Política em Bragança – ADESIVOS E ADESIVAGEM nos primórdios da República

Devemos começar por dizer que, logo após o triunfo da República, se registam, por um lado, apelos entusiásticos à adesão, uma vez que, como proclamavam alguns setores republicanos, “a República se fez para todos”.
Por outro lado, denunciavam-se os inconvenientes e os perigos que podiam resultar de adesões “interesseiras” e oportunistas, da “adesivagem” dos que, segundo se afirmava, estavam profundamente comprometidos com os “crimes” do regime anterior.


Mas o que parece constituir doutrina dominante – o que faz sentido num meio como Bragança, em que o supremo magistrado do Distrito é João de Freitas – é que na República há lugar para todos ou para quase todos.
Bastaria um arrependimento sincero.
A 2 de novembro, em A Pátria Nova, tentava-se pescar, o mais possível, nas águas monárquicas. A República devia ser inclusiva para alargar a sua base social de sustentação. Aliás, como se pretendia demonstrar, a “reabilitação moral” e a “reconciliação com a Pátria” só seriam possíveis com a adesão à República.
Com um título sugestivo, o artigo “Os Aderentes” começa logo por frisar: “A República fez-se para todos os portugueses e não só para os que eram republicanos. São bem-vindas todas as adesões”. “Reconsideraram? Querem penitenciar-se dos seus erros? Venham. Esse gesto é o começo da reabilitação moral, da reconciliação com a Pátria Portuguesa de que andavam completamente divorciados. Se estão arrependidos do mal imenso que causaram ao País, venham para a República”.
Contudo, para que a República não se transformasse num “albergue espanhol” que a todos abrigasse – mesmo os que nada tivessem que ver com ela –, vêm alguns avisos sobre comportamentos velhos e sobre os procedimentos novos a adotar: “não se iludam, não julguem que entram para continuar a sua inglória tarefa de ruína nacional. Senhores caciques não se iludam! Se vossas senhorias fossem governar de novo, não valeria a pena ter-se feito a Revolução, não valeria a pena terem-se sacrificado tantas vidas… A grande obra de reorganização do País há de ser obra dos republicanos. Os monárquicos, infelizmente para todos, deram as suas provas”.
“O Partido Republicano precisa do apoio desinteressado de todos os portugueses, mas o ressurgimento nacional, só os republicanos o poderão conseguir. E a primeira condição para o bom êxito desta santa empresa está no desaparecimento dos caciques que são tão prejudiciais ao País como a detestada família de Bragança”.
Parece andar-se próximo da doutrina que defendia que o País devia ser para todos – desde que o Estado fosse para os republicanos.
Prosseguem os apelos. O problema das “adesões” continua na ordem do dia. Escreve-se em A Pátria Nova de 8 de dezembro, no texto “Republicanos”, que “o Partido recebe todas as adesões sinceras que partirem de cidadãos honestos, logo que não venham com os rótulos das coterias monárquicas, embora nelas estivessem arregimentados”.
Adesões sonantes não podiam deixar de ser noticiadas. Eram vistas como uma vitória para a República e podiam funcionar como exemplo. Mas igualmente importante, dadas as circunstâncias, era a denúncia e o combate ao caciquismo e às falsas adesões. “O escalracho daninho do cacique ainda quer viver e medrar em terra portuguesa. Por isso pede, intriga, ameaça. Rasteja para subir”. O perigo vinha do cacique, porque “o povo vive nas trevas da inconsciência… Almas simples deixam muitas vezes seduzir-se pelo embuste e pelas artimanhas dos homens sem escrúpulos”. Em contraponto, “cidadãos beneméritos serão aqueles que mostram ao povo inculto o caminho do dever, iniciando-os na religião da Pátria”. Esta, sim, a verdadeira religião, em que os “sacerdotes” seriam os republicanos.
Ainda o compreensível receio de que as coisas retrocedam e a denúncia do perigo que podia representar o “republicanismo pegado com cuspo.” Título elucidativo: “Olho neles!” “Vai para três meses que o novo regímen se implantou… e há quase outro tanto tempo que uma apreensão nos tem preocupado: a de que a República venha a cair nas mãos infiéis que desonraram a Monarquia e a sepultaram por fim num mar de lama”. O perigo vem, ainda, por outras vias: “Mas também houve quem, aderindo a ela, o fizesse sem sinceridade e só por interesse e cobardia”. E se é certo que houve homens que, sem estarem filiados, souberam servir a causa, trabalhando pela República – veja-se o caso exemplar de Trindade Coelho –, outros houve que saíram “direitos à cevada.” Fizeram-se até ditadores e lacaios da ditadura. “Ora destes há muitos, alapardados… dos quais as novas instituições precisam de acautelar-se”.
O Governo “viu agora como teve de recorrer a um ato singularmente enérgico para fazer compreender à talassaria que a República se proclamou a 5 de outubro”. “É que confiara de mais. E é preciso não desarmar e ter de olho a súcia reacionária, vincada fundo de nacionalismo, talassismo, regeneradorismo ou progressismo, e só superficialmente caiada de republicanismo pegado com cuspo”. Linguagem forte e viva, para exorcizar os “infiltrados” reacionários e para denunciar os perigos que representam os que aderem à República, “sem sinceridade e só por interesse e cobardia.”


O tema continua a ser parafraseado. Em “Adesões”, informa-se que têm sido “bastantes ultimamente” e que “são bem-vindos todos os homens de caráter que estiverem dispostos a trabalhar desinteressadamente para bem da Pátria e da República”. Mas sempre se vai dizendo: “podiam, no entanto, ficar onde estavam aqueles que andavam na política por simples obediência do estômago, porque foi dissolvida em 5 de outubro a conferência de S. Rilha”.
Não deixam de ser comentadas, com espanto, determinadas adesões, pelas anteriores convicções ideológicas conhecidas, dos “convertidos” à pressa, pelo oportunismo dos “adesivos”. Estes casos constituíam apetecível matéria jornalística, como se pode ver, por exemplo, nesta notícia do Jornal de Bragança de 13 de novembro: “Em carta para o nosso particular amigo sr. José António Rodrigues de Paula, aderiu ao novo regímen o sr. padre Adérito Pimentel, jovem reverendo que há anos por aí jornalisou no Alerta, gazeta reacionária da sociedade Veritas da Guarda, propriedade dos jesuítas… Admiram-se? Pois se o padre Matos também aderiu”.
E logo no número seguinte, em “Candidato”, pode ler-se: “o dr. Olímpio Cagigal afirmou-nos que nas eleições para as Constituintes será deputado eleito por Bragança… Deputado no fim da Monarquia, ambiciona ser pai da Pátria no começo da República… Aqui, onde antes da implantação do novo regimen não havia republicanos, tem o dr. Cagigal de contar com os votos dos antigos progressistas e regeneradores para fazer a afirmação referida”.
Os progressistas conhecem-no desde a sua “inclassificável defeção”. Os regeneradores tiveram-no “poucos dias” por correligionário.
Em “Adesão e caciquismo”, o Jornal de Bragança, de 11 de dezembro de 1910, pede Bragança para os brigantinos.
Outro texto, de 6 de fevereiro de 1911, alerta para os riscos dos responsáveis pelo passado monárquico se estarem a aproximar da mesa do poder. São denunciados em “Apropinquando-se”: José Sousa – que tinha sido o último Governador Civil de Bragança na Monarquia –, assiste, no Porto, ao banquete oferecido a Afonso Costa.
Comentário: “Como eles se chegam”. “Ainda voltaremos a ter Sousas no Governo Civil … plus ça change, plus c’est la même chose.”
Pelas denúncias que são feitas, pelas apreciações e comentários que o tema merece, pelas polémicas que origina, parece ser de concluir que também aqui são muitos os indícios de “adesivagem”. É natural, por isso, que este “engrossar” das fileiras republicanas, de afogadilho, com muitas adesões apressadas e oportunistas, levantasse críticas e que os “adesivos” fossem, por vezes, alvo de comentários mordazes. Continuava a haver o receio dos caciques que poderiam fazer perigar a República. Em O Distrito de Bragança de 1 de fevereiro de 1911 – jornal “refundado” e dito independente –, Inácio Pimentel faz uma análise da cacicagem e dos seus diferentes tipos.
Para acabar com alguns desses caciques propõe soluções extremas, para que não continue a acontecer o que acontecia nos últimos tempos da Monarquia: haveria que acabar com os que se deixam “cacicar”. Chega a propor a restrição de voto a determinados setores que têm uma “ilustração” duvidosa, para exercer esse direito; se não votassem, não poderiam ser “cacicados”.
Eram poucos, numa terra como Bragança, os republicanos inscritos no Partido, verdadeiros militantes.

João José de Freitas - primeiro Governador Civil do Distrito de Bragança nomeado pela República

Teriam, por conseguinte, que se desdobrar em múltiplas funções: no jornal republicano, nas celebrações da 
implantação, nas tomadas de posse, nos cargos políticos e administrativos, na propaganda. Havia, como vimos, alguns reforços de peso vindos de fora, que tinham ligações às terras brigantinas. Poderia haver simpatizantes e apoiantes do ideário republicano e do Partido Republicano que não eram “inscritos”; podia haver outros que não davam ou não queriam dar a “cara”. Os poucos elementos da Maçonaria, ou eram republicanos, ou estariam próximos do ideário republicano.
Também Inácio Pimentel, a propósito dos comentários e das apreciações que tece à volta do “dossier” Cagigal, fornece elementos para caracterizar a situação, semelhante, aliás, à de outras localidades urbanas. Como não havia republicanos “históricos”, ou eram muito poucos – e como não se podia “fabricar” desses –, houve que arranjar dos outros. No comentário, fala nos “que espontaneamente ofereceram os seus serviços à República”, acentuando que, antes da Revolução, o Partido Republicano “no Distrito era insignificante”. Por isso, “a maior parte dos indivíduos que, depois desse dia, se apresentaram a reclamar o alvará de históricos, não primavam nem pela qualidade nem pelo número”. E vem a explicação: “É claro que, vista a impossibilidade de fabricar republicanos históricos, foi preciso aceitar aqueles que, não sendo republicanos até essa data, espontaneamente ofereceram à República os seus serviços”. “Muitos destes, dos que integram o Partido Neorepublicano, têm um passado vergonhoso”. Esclarecedora esta distinção entre o partido “histórico” e o “neorepublicano”.

Título: Bragança na Época Contemporânea (1820-2012)
Edição: Câmara Municipal de Bragança
Investigação: CEPESE – Centro de Estudos da População, Economia e Sociedade
Coordenação: Fernando de Sousa

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