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SOBRE O BLOGUE: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blogue, apenas vinculam os respetivos autores.

terça-feira, 28 de maio de 2019

Nós, Transmontanos, HOMENS DA INQUISIÇÃO - JOSÉ DA GUERRA FARIA, DE FREIXO ESPADA À CINTA

Os familiares do santo ofício eram os civis que, a mando dos inquisidores, executavam as prisões e conduziam os prisioneiros para as cadeias. Nos autos-da-fé, competia-lhes vigiar e acompanhar os réus. E eram também os informadores locais, espias ou “bufos”, como hoje se diz.

Pensar-se-á que era um trabalho sujo e pouca digno. Pelo contrário. Naqueles tempos, era uma grande honra fazer qualquer serviço em nome do santo ofício. E o cargo de familiar era extremamente cobiçado, pelo prestígio social que acarretava. Além de que proporcionava boas vantagens económicas, como era a isenção de impostos, de serviços comunais e militares e autorização para usar armas e vestuário de seda. Em termos simplistas, diremos que o título de familiar da inquisição era mais cobiçado e dava mais prestígio do que o de presidente da câmara ou capitão-mor do concelho.

A criação de uma rede de familiares por todo o país foi o instrumento usado pela inquisição para conseguir o controlo da sociedade e do poder político, tornando-se, em simultâneo, uma instituição verdadeiramente popular. A ponto de os autos-da-fé serem as mais concorridas e participadas festas populares.

Se em 1580 a rede contava apenas com 18 familiares, em 1640(1) o número ascendia 1600 continuando em franco crescimento nos 150 anos que seguiram. De acordo com o decreto publicado em 3.4.1693, a rede de familiares na área de Trás-os-Montes e Alto Douro, foi assim estabelecida: Lamego, 20; Torre de Moncorvo, 6; Miranda, 10; Bragança, 8. Nas restantes sedes de concelho, haveria 1 ou 2, conforme o número de moradores.(2)

Cargo muito cobiçado, era difícil de conseguir, organizando-se um rigoroso processo para a sua admissão. Por vezes demorava décadas e o pretendente gastava fortunas, com sucessivas diligências. Outras vezes era simples, como o caso que hoje apresentamos.

José da Guerra Faria, natural e morador em Freixo de Espada à Cinta, solteiro, de 21 anos, proprietário do cargo de escrivão dos órfãos. Em julho de 1636, apresentou um requerimento no conselho geral da inquisição, em Lisboa, dizendo que “deseja empregar-se em o serviço da santa inquisição, com a ocupação de familiar, porquanto na dita vila e seu termo se não acham mais de 2 e é das mais populosas do reino”. Com o pedido, o pretendente, logo entregou 6 mil réis.

O requerimento foi despachado para Coimbra e dali foi encarregado o comissário Sebastião Carvalho Torres, abade de S. Pedro da Silva, junto a Miranda do Douro, para, “extrajudicialmente, com muita cautela e segredo”, colher informações sobre as condições económicas e a qualidade de sangue de Faria Guerra e seus ascendentes. Sim, que os familiares deviam ser pessoas ricas, das principais da terra e não podiam ter sangue de “judeu, mourisco, negro, mulato, nem de outra alguma infecta nação das reprovadas em direito”.

Foi o comissário a Freixo, secretamente tomar informações, que mandou para Coimbra, escrevendo:

— O habilitando se trata limpa e abastadamente, do rendimento do ofício de escrivão dos órfãos, de que é proprietário e serve, e de outros bens, terá 25 anos, solteiro e não tem filhos. Seu pai tratava em fábrica de sedas e fora alferes de ordenança e seu avô paterno fora sapateiro e tocava charamela na igreja e procissões e o materno fora lavrador.(3)

Entretanto, fizeram-se investigações nos arquivos das inquisições de Coimbra, Lisboa e Évora, verificando-se que nenhum processo ou denúncia existia contra o suplicante e seus ascendentes. À partida, não havia obstáculo de maior e, por isso, o processo podia continuar. Para isso ordenaram os inquisidores de Coimbra que o mesmo comissário fosse a Freixo tomar informações judiciais ouvindo 12 testemunhas juramentadas, as mais idosas, cristãs-velhas, “noticiosas, verdadeiras, desinteressadas e das mais principais”, levando um escrivão de sua confiança, para lavrar os autos.

Por 7 dias assentaram arraiais em Freixo de Espada à Cinta, em casa de Francisco Saraiva do Amaral, familiar da inquisição e capitão-mor da vila, o comissário Torres e o escrivão, padre Gregório Supico. Não vamos referir as testemunhas ouvidas e respetivas declarações que, sobre o assunto, todas foram positivas e elogiosas, revelando-se muito interessantes para o estudo da ambiência económica, social e cultural da terra. Resumindo, diremos que José Guerra se tratava “à lei da nobreza”, vivendo desafogadamente, com 60 mil réis/ano que recebia do emprego de escrivão dos órfãos e dos rendimentos do casal “que ele e sua mãe possuem e tem o valor de 10 a 12 mil cruzados”, (4 ou 5 contos de réis). Para além disso “tratava de mandar compor e fabricar seda a seus criados e obreiros”. Aliás, também o seu pai tinha em casa torno de fiar seda e vendia panos de peneiras.

Em sua ascendência, o menos qualificado e digno, seria o avô materno que era sapateiro. A seu favor pesava, no entanto, o facto de tocar charamela na igreja. O comissário Torres concluiu assim o seu relatório:

— É pessoa de boa vida e costumes, muito capaz para servir o santo ofício (…) somente tem, em um olho um vermelhão, por respeito que, sendo menino lhe nasceu um carbúnculo e ficou com algum defeito, mas que lhe não tira a vista. Este é o defeito que lhe achei.

Como se vê, até o aspeto físico do candidato era esquadrinhado. Resta dizer que o comissário e o escrivão procuraram também os livros paroquiais para deles extrair certidões de nascimento e casamento do pretendente, seus pais e avós. Encontraram apenas alguns registos, muito poucos, apesar das buscas que fizeram nos livros paroquiais, muitos deles já depositados em Torre de Moncorvo, onde o comissário gastou mais um dia.

Claro que o requerente pagou todas as custas: ao comissário, 10 588 réis; ao escrivão, 6 192; notificações, 240. Fazendo contas, verificamos que por dia de trabalho, escrivão recebeu 774 réis e o comissário 1 323,5 reis, ou seja o correspondente a mais de 13 jornas de um operário normal.

Em 1750, o familiar José Guerra quis casar, com Catarina Pereira Meireles. Antes, porém, foi-lhe necessário promover iguais diligências para averiguar a sua limpeza de sangue e modo de vida “à lei da nobreza”, começando logo por depositar 5 mil réis. Da missão foi encarregado o comissário Manuel Zuzarte Coelho, morador em Freixo, que, pouco tempo depois, faleceu.(4) Substituiu-o o comissário José Domingos Espinosa, abade da igreja de Santa Maria de Mós, comarca de Moncorvo que levou o padre Manuel Lopes Pinto, de Carviçais, por escrivão.

O processo foi analisado pelos membros do conselho geral que decidiram passar-lhe carta de familiar em 4.4.1747. Interessante: no dia em que a carta lhe foi passada, um dos membros do conselho encontrava-se ausente. Por isso foi necessário ir a sua casa para assinar, debitando ao pretendente 10 tostões de despesa.

Mais barata ficou a carta de familiar de seu irmão, Amaro de Faria Guerra,(5) passada em 31.8.1753, já que estavam feitas as diligências sobre seus pais e avós na vila de Freixo de Espada à Cinta. Fizeram-se apenas diligências a respeito de sua mulher Maria Luís, essa sim muito rica, herdeira de dois tios padres e possuidora de uma grande casa agrícola em Vilar Chão, onde o casal morava. Resta dizer que Amaro Guerra era formado em medicina pela universidade de Coimbra. A propósito veja-se um naco da informação do comissário:

— É bem procedido e com capacidade para servir a ocupação, trata-se com decência, vivendo de suas fazendas, sem usar de suas letras de medicina.

Veja-se: o curso de medicina não abonava a favor das pretensões do candidato, antes seria um obstáculo à sua nomeação de familiar! Na sociedade de então, gozava de mais nobreza um lavrador que um médico.

Notas:

1 - GREEN, Toby, A Inquisição o Reino do Medo, p. 280, Editorial Presença, Lisboa, 2010.

2 - TYPOGRAPHIA Dominici Gonçalves, Opusculum de Privilegiis Familiarium… Ulyssipone, MDCXLVII, Anexo. O decreto não seria respeitado, decidindo os inquisidores casuisticamente.

3 - ANTT, tribunal do santo ofício, conselho geral, habilitações, José, mç. 41, doc. 661.

4 - O escrivão foi o padre Francisco Geraldes da Guerra e o local de audição das testemunhas foi a capela do Senhor da Fonte Seca.

5 - ANTT, tribunal do santo ofício, conselho geral, habilitações, Amaro, mç. 3, doc. 47.

António Júlio Andrade / Maria Fernanda Guimarães
in:jornalnordeste.com

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