Por: Fernando Calado
(colaborador do Memórias...e outras coisas...)
Há pouco chegamos a casa, já acendemos a nossa lareira, amiga de mil Invernos. A ruralidade da nosso espaço é profanada pelo espavento dum computador onde demoradamente escrevemos pedaços de vida, coisas sem importância, ou então, intervenções que em nada mudarão o mundo, mas que pelo menos nos devolvem o sonho de podermos tornar a humanidade um pouco melhor e mais fraterna. A um canto do lume repousa uma panela de ferro, memória de outros jantares e outros comeres no alvoroço da chegada dos almocreves viajantes de todo o mundo. Os cães dormem tranquilamente como se a existência fosse somente um rosário de coisas boas, de comida farta e de afagos onde cabem universos de ternura. E nós aqui estamos à volta com este mês de Novembro mergulhando na intimidade das nossas recordações, efémeras, vindas dum passado onde a morte era tão somente um acontecimento que tinha lugar na moradia dos outros e levava os idosos para um céu feito de algodão em rama e coisas doces. Um dia, a gata branca foi triturada pela camioneta do correio e pela primeira vez sentimos a morte como um acontecimento injusto e tremendamente trágico. Crescemos e a morte entrou em casa deixando este frio de Novembro à beira do escano onde o pai construía mundos no contar de contas fantásticas, mas que terminavam sempre em paz e em beleza. O xaile da mãe espera a sua dona que treme de frio à beira da nossa saudade. O nosso lar de novo se povoa neste convívio ameno com todos os Santos e sem querermos a finitude perpassa o nosso estar recolhido dolorosamente neste santuário de Novembro e dos Santos.
Neste dia de todos os Santos, bem cedo, para evitar o choro teatralizado, com frases ouvidas desde sempre e nos chocam, fomos visitar os nossos Santos que repousam em campa rasa no cemitério Bragançano. Os cemitérios são tragicamente taciturnos e o de Bragança encheu desmesuradamente. Um novo cemitério foi construído, igual a todos os cemitérios portugueses. Sem dúvida que todos os cemitérios são profundamente tristes mas poderiam ser mais humanizados, como um jardim, com muita relva, com árvores, com bancos para os vivos repousarem na proximidade e na companhia daqueles que partiram e somente nos deixaram esta solidão enorme.
Continuamos esta romagem a Novembro pelas terras da Lombada onde ainda se acende o magnífico lume de Todos os Santos. O carro de bois, no respeito pela Santidade, é puxado pelos rapazes que vão ao monte e trazem a lenha que arderá durante toda a noite, enquanto se reza pelos mortos, o sino toca a finados e no entretém da longa vigia assam-se sardinhas, ou na sua ausência o frango caseiro e tudo pela alma daqueles que Deus já lá tem.
E assim de novo regressamos ao tema da morte que seria tão-somente o absurdo se as Religiões não nos conferissem o dom da fé e a aceitação da transcendência que devolve a dignidade à tragédia do fim.
E se olharmos para o ano que findou como a morte andou por aí, à solta e no maior desconsolo e vilania levou meia dúzia dos nosso melhores amigos, pessoas a quem queríamos bem e amávamos desde sempre. Mas esta é a nossa contradição, a morte para nós, só é verdadeiramente trágica se andar por perto e muitas vezes esquecemos, como, por exemplo mo Hauti, a morte entrou em quase todas as casas, dizimou famílias inteiras, semeou o caos e a dor.
E pronto, o lume apagou-se, Ernest Hemingway está por perto com o seu recado que nos causa desassossego e nos diz que quando ouvirmos os sinos dobrar não vale a pena perguntar por quem dobram, pois, de certo, eles também dobram por nós.Fernando Calado nasceu em 1951, em Milhão, Bragança. É licenciado em Filosofia pela Universidade do Porto e foi professor de Filosofia na Escola Secundária Abade de Baçal em Bragança. Curriculares do doutoramento na Universidade de Valladolid. Foi ainda professor na Escola Superior de Saúde de Bragança e no Instituto Jean Piaget de Macedo de Cavaleiros. Exerceu os cargos de Delegado dos Assuntos Consulares, Coordenador do Centro da Área Educativa e de Diretor do Centro de Formação Profissional do IEFP em Bragança.
Publicou com assiduidade artigos de opinião e literários em vários Jornais. Foi diretor da revista cultural e etnográfica “Amigos de Bragança”.
Lindo texto !!
ResponderEliminarLembrei de meu pai, que faleceu este ano, e chorei...não de tristeza, mas, de saudades !!!!