Levantei-me tarde sem me importar com o que poderia ouvir quando chegasse à cozinha. Pura e simplesmente, dei a mim própria, algum tempo de adaptação e reflexão.
Não estava preparada para esta nova vida. Era e sou muito afetiva e essa qualidade estava a remeter-se para uma das gavetas mais recônditas que cada um de nós contém.
Estava fria. Não tinha frio. Começava a habituar-me ao clima. Lavei-me com muitos cuidados, calmamente. Vesti roupa nova. Pentei-me com esmero para mostrar toda a beleza do meu cabelo, naquela altura, belíssimo, sem falsas modéstias. Maquiei-me ligeiramente como era meu hábito.
Finalmente fui para a cozinha. Azafamavam-se as minhas tia e avó, às voltas com o almoço. Não me importei. Estava zen.
Dei os bons dias, fui à porta espreitar o tempo. Reparei que havia sol e que o gelo havia derretido. Ouvi o cantarolar da água nas pedras do ribeiro da Calçada. Apetecia-me ir até lá e saí para a rua. "Onde vais?" "Já venho, não demoro nada."
Segui a canção ligeira, marulhando sem ter mar. Cheguei ao ribeiro e estaquei. Não estava só, a natural poesia da água que, livremente, corria. Queixavam-se as mulheres que estava fria.
Levei algum tempo para entender o que faziam ali, num dia de inverno, aquelas quatro mulheres. As águas iam turvas.
O tempo parou quando elas olharam para mim. A canção da água serenou. "Olá, és a Maria!" "Sim." Respondi com voz sumida por não conhecer/reconhecer ninguém. Levantaram-se, todas à vez, e vieram abraçar-me. As mãos, vermelhas e geladas, tocavam-me gentilmente no cabelo e na face.
"És parecida com a tua mãe." "Que linda!" "Como está a tua mãe, minha filha? Sou uma grande amiga dela, a Lucinda."
"Está bem obrigada, estão todos muito bem."
"Que bonita és, Maria. Quero que vás lá a casa para comer um rojão. O teu avô quer que vás almoçar connosco amanhã."
Falava a tia Alexandrina, como mais tarde vim a saber, mulher do meu avô Zeca. Tinha uns lindíssimos olhos azuis. Uma meiguice que desarmava. Dei-lhe um beijo.
Perguntei que faziam... "Lavamos as tripas do porco para depois fazer as chouriças e os salpições, mas a água está tão fria..."
De repente senti um arrepio, reparei que tiritava. "Vai para casa, rapariga. Estás cheia de frio."
Fui. "Estava a ver que não querias voltar. Precisamos de ajuda e tu vais-te embora e, ainda por cima, estás gelada! Senta-te e aquece-te. Come qualquer coisa e vem ajudar-nos." Assim, imperativa, falou a minha tia.
"O que é que querem que eu faça?" "Ajuda a avó a fazer o arroz e a descascar as batatas. As carnes já estão a assar no forno da tia Engrácia. Daqui a um bocado vamos lá ver como estão."
O meu avô entrou vindo da rua. Trazia na mão uma faca enorme, brilhantemente polida, perfeitamente afiada.
"Avô, para que é essa faca?" "É para a mata porca. Amanhã vamos fazer a matança."
Fiquei a pensar que não era coisa que eu gostaria de ver. Assumi que não o faria. Sabia que o fumeiro de que eu tanto gostava seria feito com as carnes dos porcos que, amanhã, se matariam. Não gostava de ver sofrer os animais mas sabia que, alguns deles, teriam de ser sacrificados para a nossa alimentação. Era assim desde tempos imemoriais. As tradições fazem parte da cultura que respeito e admiro.
A primeira semana estava cumprida.
Mara Cepeda
in:nordestecomcarinho.blogspot.com
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