(Colaboradora do Memórias...e outras coisas...)
Félix Vagamundos conduzira durante horas, talvez dias, não sabia ao certo. Sabia apenas que vinha em fuga. Fugia da vida que lhe fora ficando cada vez mais apertada. Sem nenhum destino marcado, mas cansado de muito, andava à procura do tempo, da paz e do rumo que lhe escapavam por entre os dedos.
A verdade é que se perdera. E agora, ali estava ele, num lugar que não imaginava que existisse. Sem GPS que o explicasse, sem uma lógica que o justificasse, a aldeia, situada no cimo de um planalto e envolvida por uma penumbra invernosa, apareceu-lhe depois de uma curva apertada.
À beira da estrada, a placa de madeira, torta como se ali tivesse sido posta por alguém que não dava grande importância a nomes, anunciava: Brumadentro.
Decidiu continuar a pé com a ideia de que a friagem do ar pudesse arrefecer-lhe todos os pensamentos, por resolver, que lhe davam a volta à cabeça.
A aldeia tinha somente duas ruas. A Rua Direita que, inexplicavelmente, virava para a esquerda. E a Rua Esquerda que, curiosamente, terminava no mesmo ponto onde começava. Se não fosse um erro de construção seria, porventura, uma advertência? Será que andamos tanto para acabar sempre no mesmo lugar? As pessoas habituaram-se a isso, refletiu Félix Vagamundos.
E não deixou que a aldeia decidisse por ele. Avançou devagar, hesitante, pela Rua Direita. Uma rua deserta, larga e calada, embrulhada numa neblina densa, com terra molhada e pedras que pareciam gastas por muitas histórias que por lá tivessem passado.
As janelas das casas, com cortinas que abanavam como se o vento as soprasse, observavam-no com aquela desconfiança que os lugares remotos, por vezes, nos reservam.
Félix Vagamundos sorriu para si. Que sítio bizarro! Afigurou-se-lhe que, naquele local isolado, até a realidade já teria perdido o norte…
Parou no centro da rua e olhou em volta. Sentiu o aroma familiar de pão quente a esgueirar-se por uma porta entreaberta. Lá dentro, a padeira, de avental branco, amassava a massa com mãos pesadas.
Levantou os olhos quando ele entrou e fez um movimento semelhante a um aceno de boas-vindas.
— Perdeu-se, não foi? — perguntou-lhe, sem cerimónias.
Ele sorriu, acanhado.
— Acho que sim. Não sei como vim aqui parar.
Ela encolheu os ombros num gesto de descrença.
— Pois, ninguém sabe, meu querido. A verdade é que só descobrimos onde estamos quando deixamos de correr. Correr por correr, que seja atrás de nós próprios para ver se, com jeitinho, chegamos mesmo a algum lado.
Tirou dois pães de um cesto, pousado em cima do balcão, e ofereceu-lhos:
— Vejo que tem fome. São para si. Fique com estes sonhos em forma de pão… Leve-os consigo e atente para que, desta vez, não embolorem.
Félix Vagamundos, espantado com o presente e com a afirmação da padeira, quis agradecer mas nada lhe saiu.
Quem saiu foi ele, da padaria, com os pães na mão e uma estranha impressão de ter acabado de ser alvo de um gracejo urdido pelo universo.
Continuou a caminhar. Minutos depois, ao virar numa esquina, deu de caras com uma pequena barbearia. Ah, o salão nobre da aldeia! Entre mexericos, muito palavrório, cabelos cortados e bigodes aparados, há sempre respostas para tudo. Talvez lá encontrasse quem conseguisse esclarecer as suas dúvidas.
Afinal, estava vazia de gente. Só o barbeiro o viu entrar, ao mesmo tempo que afiava, energicamente, uma tesoura.
Apontou-lhe o cadeirão giratório em frente ao espelho.
— Ora então diga-me, caro senhor, quer cortar o quê?
— Nada. Não vim para cortar cabelo ou barba — respondeu-lhe o outro, um pouco apreensivo com a interpelação.
O barbeiro levantou uma sobrancelha e deu um leve toque nas costas da cadeira.
— Ninguém vem ao que pensa que vem. Sente-se. Sabe que metade dos problemas do mundo nasce porque não paramos um minuto para escutar?
Félix Vagamundos obedeceu, ligeiramente intimidado.
— Perdi-me enquanto viajava. Esperava que soubesse dizer-me qual a direção que devo tomar para regressar a casa — elucidou.
— Oh, uma necessidade séria! E legítima, claro — ironizou o barbeiro. — Não se preocupe, também sou especialista em aparar dúvidas.
E começou a passar-lhe a mão pelo cabelo. Analisava Félix Vagamundos como se este fosse um enigma filosófico.
— A tesoura corta, mas o pensamento também — proferiu, por fim. — Diga-me lá uma coisa… quando foi a última vez que olhou para o espelho e gostou do que viu?
A pergunta inesperada teve pontaria certeira. Vacilante na resposta a dar, ele engoliu em seco e não retrucou.
O barbeiro sorriu, zombeteiro, como se já estivesse à espera daquele silêncio.
— Então, o cabelo ou a indecisão, meu amigo?... Vá lá, siga em frente. Esta nossa aldeia não gosta de quem mente para dentro de si.
— Não sei — titubeou Félix Vagamundos.
— Pois devia saber.
Por cima da cabeça intocada, a tesoura, nas mãos do barbeiro, fez um clic no ar como se fosse um ponto final.
Aquele obsequiou-o com um conselho:
— Repare, o espelho não nos engana… A vida não fica perfeita porque mudamos de lugar. Ela melhora quando alteramos a rota. Quer chegar a casa? Troque o seu modo de olhar.
Félix Vagamundos retomou o caminho com a sensação de ter levado um murro no pensamento. Para aquietar o espírito optou, nesse momento, por seguir pela Rua Esquerda. Acelerou o andamento com o vento a soprar-lhe, vagaroso, sobre o rosto como a querer serenar-lhe a perturbação interior.
Mas uma dúzia de passadas à frente e ainda não recomposto, ouviu um assobio. Aproximou-se dele um homem alto e magro, vestido de farda e com um saco ao ombro.
— A pressa é inimiga da alma… e olhe que a alma precisa de sossego para saber quem é — observou, entregando-lhe um envelope.
Em seguida, baixou a voz e continuou, em jeito de confidência.
— O senhor tem cara de quem devia ter recebido isto há muitos anos.
O outro piscou os olhos, confuso, e o carteiro clarificou.
— Coisas que se esquecem e que o tempo entrega atrasadas. Sabe como é.
Não, ele não sabia. Ainda estava a tentar compreender todo aquele cenário inusitado e misterioso.
— Desculpe, eu ando perdido e só queria mesmo que alguém me explicasse qual o percurso de regresso a casa — aventurou-se, mais uma vez Félix Vagamundos, impaciente.
Mas o carteiro apenas declarou, apontando para a vereda à frente deles:
— Ninguém se perde, meu bom amigo. As pessoas só adiam. E quem adia, corre o risco de chegar sempre ao mesmo lugar. Como esta rua, por exemplo.
E afastou-se, sem mais explicações.
Félix Vagamundos ficou parado no chão a imaginar que devia ter caído, desamparado, numa qualquer realidade paralela. Pensou no encontro metafísico com aquelas figuras caricatas e ocorreu-lhe, com um arrepio, que todos pareciam estar a aguardá-lo e que aquela aldeia atípica sabia mais sobre ele do que ele próprio.
Subitamente apercebeu-se, ao fundo, onde as duas ruas quase se tocavam, de uma luz quente e acolhedora a tremer. Talvez um convite a chamá-lo. Caminhou, decidido, até lá. Deparou-se com uma casa de madeira com telhado baixo. Por cima da porta, o nome de batismo: Chalé dos Filosofemas.
Nota:
Ouso fazer aqui, caro leitor, um breve intervalo sobre os motivos porque trouxe Brumadentro até ao seu olhar. Se tiver curiosidade em conhecer o que Félix Vagamundos encontrou e, sem o saber, veio a todos lembrar-nos, regresse quando se sentir preparado. Estarei ao seu lado na próxima parte.
Paula Freire
Paula Freire - Natural de Lourenço Marques, Moçambique, reside atualmente em Vila Nova de Gaia, Portugal.
Com formação académica em Psicologia e especialização em Psicoterapia, dedicou vários anos do seu percurso profissional à formação de adultos, nas áreas do Desenvolvimento Pessoal e do Autoconhecimento, bem como à prática de clínica privada.
Filha de gentes e terras alentejanas por parte materna e com o coração em Trás-os-Montes pelo elo matrimonial, desde muito cedo desenvolveu o gosto pela leitura e pela escrita, onde se descobre nas vivências sugeridas pelos olhares daqueles com quem se cruza nos caminhos da vida, e onde se arrisca a descobrir mistérios escondidos e silenciosas confissões. Um manancial de emoções e sentimentos tão humanos, que lhe foram permitindo colaborar em meios de comunicação da imprensa local com publicações de textos, crónicas e poesias.
O desenho foi sempre outra das suas paixões, sendo autora das imagens de capa de duas obras lançadas pela Editora Imagem e Publicações em 2021, “Cultura Sem Fronteiras” (coletânea de literatura e artes) e “Nunca é Tarde” (poesia), e da obra solidária “Anima Verbi” (coletânea de prosa e poesia) editada pela Comendadoria Templária D. João IV de Vila Viçosa, em 2023. Prefaciadora dos romances “Amor Pecador”, de Tchiza (Mar Morto Editora, Angola, 2021), “As Lágrimas da Poesia”, de Tchiza (Katongonoxi HQ, Angola, 2023), “Amar Perdidamente”, de Mary Foles (Punto Rojo Libros, 2023) e das obras poéticas “Pedaços de Mim”, de Reis Silva (Editora Imagem e Publicações, 2021) e “Grito de Mulher”, de Maria Fernanda Moreira (Editora Imagem e Publicações, 2023). Autora dos livros de poesia: Lírio: Flor-de-Lis (Editora Imagem e Publicações, 2022) e As Dúvidas da Existência - na heteronímia de nós (Farol Lusitano Editora, 2024, em coautoria com Rui Fonseca).
Em setembro de 2022, a convite da Casa da Beira Alta, realizou, na cidade do Porto, uma exposição de fotografia sob o título: "Um Outono no Feminino: de Amor e de Ser Mulher".
Atualmente, é colaboradora regular do blogue "Memórias... e outras coisas..."- Bragança e da Revista Vicejar (Brasil).
Há alguns anos, descobriu-se no seu amor pela arte da fotografia onde, de forma autodidata, aprecia retratar, em particular, a beleza feminina e a dimensão artística dos elementos da natureza.

Félix Vagamundos, um nome para uma experiência que é universal...
ResponderEliminarÉ verdade, Henrique, um nome pouco provável, mas exato, para uma personagem que, de uma forma ou de outra, nos identifica a todos e a essa procura pelo sentido da vida que cada um vai fazendo à sua maneira.
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