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SOBRE O BLOGUE: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite, Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues, João Cameira e Rui Rendeiro Sousa.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blogue, apenas vinculam os respetivos autores.

domingo, 17 de agosto de 2025

Plástico no corpo

 Os micro e nanoplásticos estão a invadir o nosso organismo e não faltam no mundo investigações sobre como estes resíduos representam um perigo para a saúde. Na próxima terça-feira, dia 5 de Agosto, serão retomadas as negociações para um tratado global contra a poluição de plástico.

PETER DAZELEY / GETTY IMAGES-O termo “microplástico”  foi criado em 2004 pelo investigador britânico Richard Thompson.  Hoje, sabemos que essas partículas, às quais não se prestou a devida atenção, estão presentes na cadeia alimentar e que os  fragmentos mais  pequenos são os mais perigosos para a saúde.

É um facto incontestável: a contaminação plástica implica uma ameaça grave para a saúde humana. Os microplásticos (partículas com menos de cinco milímetros de tamanho) e os nanoplásticos (com tamanho inferior a um micrómetro), contaminam todos os ecossistemas do planeta, dos oceanos ao ar que respiramos.

Já penetraram na cadeia alimentar e encontram-se nos corpos de uma multiplicidade de espécies, incluindo a nossa, como seria de esperar. Quais são então as consequências para a saúde humana desta contaminação maciça e generalizada? A comunidade científica está a trabalhar a todo o vapor para encontrar respostas, mas o tema é complexo: os microplásticos têm uma grande variedade de formas e tamanhos e são feitos de diferentes polímeros. Também contêm milhares de aditivos e produtos químicos, muitos dos quais nem sequer sabemos quais são. E os fragmentos mais pequenos, os nanoplásticos, são muito difíceis de detectar.

Embora falte percorrer ainda um longo caminho, já há conclusões relevantes. Segundo um estudo da Universidade de Leeds publicado recentemente na revista Nature, todos os anos libertamos cerca de 52 milhões de toneladas de produtos de plástico no ambiente. Com o tempo, estes resíduos decompõem-se em milhões de milhões de partículas cada vez mais pequenas e, por inalação, ingestão ou contacto dermatológico, entram no nosso organismo. Algumas delas, as mais pequenas, têm a capacidade de ultrapassar as diferentes barreiras defensivas, de chegar à corrente sanguínea e podem disseminar-se pelos intestinos, fígado, rins, bexiga, pulmões, coração e placenta.

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Os microplásticos infiltram-se no ar, na água e no solo e estão presentes em alimentos, bebidas, cosméticos e medicamentos.

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TIMUR MATAHARI / GETTY IMAGES-A bordo de pequenas embarcações, voluntários recolhem plásticos no rio Citarum, um dos mais poluídos do planeta, na passagem por Batujajar, na província indonésia de Java Ocidental.  
O Citarum, via de transporte na ilha e local de despejo de resíduos industriais, fornece água a cerca de 25 milhões de pessoas. A Indonésia é um dos maiores poluidores dos oceanos a nível mundial. Apesar das iniciativas privadas e do anúncio feito há alguns anos pelo governo de um plano ambicioso para reduzir a poluição  por plásticos, a situação pouco se alterou.

Também chegam ao cérebro. Outro estudo científico recente, liderado pela Universidade do Novo México, salienta que as micropartículas podem colonizar este órgão através da circulação sanguínea ou migrando da cavidade nasal através do nervo olfactivo. Depois de examinar amostras de 52 cérebros de indivíduos falecidos em 2016 e em 2024, constatou-se que a acumulação de partículas de plástico, principalmente polietileno, era 50% maior nas amostras mais recentes. Percebeu-se também que todas continham sete a 30 vezes mais microplásticos e nanoplásticos (MNPL) do que as amostras de fígado e rim dos mesmos indivíduos. Por fim, os níveis de MNPL eram três a cinco vezes mais elevados nos cérebros das 12 pessoas diagnosticadas com demência.

Enquanto a ciência se apressa em busca de provas, os especialistas já assumem que estamos perante um grave problema de saúde pública à escala planetária.

Quando o plástico entrou nas nossas vidas, o mundo inteiro considerou que tínhamos criado um material maravilhoso e ecológico. A invenção bem-sucedida substituiu muitas matérias-primas naturais e, inicialmente, também permitiu pôr fim ao abate de animais, como os elefantes, cujas presas de marfim eram a matéria-prima perfeita para as tão desejadas bolas de bilhar. Em 1867, The New York Times escreveu que, só no Ceilão, tinham sido abatidos mais de 3.500 animais para esse fim. As tartarugas-de-pente, mortas indiscriminadamente pelas suas carapaças, úteis para fazer pentes e muitos outros objectos, também foram poupadas graças ao plástico.

Um “olhar rápido” sobre a história da expansão dos plásticos leva-nos de volta a 1858, ano em que Michael Phelan, fabricante e proprietário de várias salas de bilhar em Nova Iorque, publicou um livro onde explicava como deveriam ser as bolas usadas neste desporto de precisão. Mas existia um problema, dizia: eram terrivelmente caras. Um dente de elefante proporcionava marfim para fabricar em média quatro a cinco bolas de bilhar. “Se algum génio das invenções descobrisse um substituto do marfim com as mesmas qualidades que o tornam valioso para o jogador de bilhar, faria uma pequena fortuna e ganharia a nossa sincera gratidão”, previa o empreendedor.

Em 1863, o próprio Phelan ofereceu dez mil dólares a quem o conseguisse, e um inventor entusiasta, John Wesley Hyatt, pôs mãos à obra. Depois de vários fracassos, Hyatt acabou por optar por uma mistura de nitrocelulose e cânfora (para a qual já existiam precedentes, como a parquesina ou nitrato de celulose), e triunfou. O novo material plástico, a que chamou celulóide, foi aperfeiçoado até substituir o marfim e a carapaça das tartarugas. Um folheto publicitário da empresa criada por Hyatt assegurava: “Tal como o petróleo veio em socorro da baleia [referindo-se aos tempos em que os candeeiros eram alimentados a óleo de baleia], também o celulóide deu ao elefante, à tartaruga e ao insecto coral [referindo-se aos pólipos de coral] um descanso nos seus habitats. Deixará de ser necessário saquear a Terra em busca de substâncias cada vez mais escassas.”

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O plástico substituiu muitas matérias-primas naturais e, inicialmente, também permitiu pôr fim ao abate de animais.

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SINCLAIR STAMMERS / SPL / ALBUM-Microscopia de uma gota de água de mar repleta de partículas do plástico que se acumula nos oceanos, lagos e rios e penetra na cadeia alimentar. Os animais marinhos, do plâncton às baleias, ingerem estes resíduos de forma habitual, por filtragem, por confusão com os seus alimentos habituais ou por estarem presentes nas presas que consomem.

A jornalista e escritora Susan Freinkel conta no livro Plastic, a Toxic Idyll: “O celulóide surgiu numa altura em que os EUA estavam a transitar de uma economia agrária para uma economia industrial. Onde antes as pessoas cultivavam e preparavam os seus próprios alimentos e faziam as suas próprias roupas, agora comiam, bebiam, vestiam e usavam cada vez mais produtos de fábrica. Estávamos a caminho de nos tornarmos rapidamente um país de consumidores.” Foi uma expansão sem precedentes, particularmente a partir de 1907 quando Leo Baekeland inventou a baquelite, o primeiro plástico completamente sintético, moldável e super-resistente. 

Depressa surgiram muitos outros plásticos sintéticos, altamente dependentes do petróleo, a sua principal matéria-prima. Os plásticos, acrescenta Freinkel, “libertaram-nos dos constrangimentos do mundo natural, dos recursos materiais e limitados que durante muito tempo restringiram a actividade humana. Essa nova elasticidade também esbateu as fronteiras sociais. A chegada destes materiais maleáveis e versáteis deu aos produtores a capacidade de criar um maná de novos produtos, ao mesmo tempo que alargou as oportunidades de as pessoas de meios modestos se tornarem consumidores.”

Esta euforia levou a revista Life a publicar, em Agosto de 1955, um artigo intitulado Estilo de vida descartável, ilustrado com a imagem de uma família posando sorridente sob uma chuva de artigos de plástico para a casa. “Demoraria 40 horas a limpar todos os objectos da imagem”, refere a legenda. “Mas as donas de casa não precisam de se preocupar: foram todos pensados para serem descartados depois de usados.” O reinado do plástico de um só uso começara e, com ele, o consumismo desenfreado.

Começámos a preocupar-nos realmente com as consequências dessa proliferação de resíduos perenes na década de 1960 quando começaram a emergir vozes de alarme face às primeiras acumulações em massa de plástico em praias e oceanos. Por acção da radiação solar, da chuva e do vento, os plásticos decompõem-se em fragmentos cada vez mais pequenos que se dispersam pelos lugares mais insuspeitos. O primeiro a constatá-lo foi o biólogo Ed Carpenter, que em 1972 publicou na revista Science os resultados das suas observações no mar dos Sargaços: milhares de artigos de plástico flutuavam então no oceano a mais de oitocentos quilómetros de terra firme. Em breve, foram também encontrados nos estômagos de muitos animais marinhos, desde pequenos organismos invertebrados a enormes baleias, tartarugas e aves marinhas. A sua biodisponibilidade abriu a porta à entrada do plástico na cadeia alimentar.

O estudo dos micro e nanoplásticos também tem feito o seu caminho em Portugal. Marta Martins, professora associada da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa e investigadora do MARE, não se esquece do papel que a agora reformada Paula Sobral teve na consolidação deste campo científico antes de o termo se mediatizar. “Ela começou a investigar microplásticos e lixo marinho bem cedo, em 2008”, conta.

SINHYU / ISTOCK-Existem evidências alarmantes da acumulação de nanoplásticos nos órgãos humanos. Nos intestinos (imagem microscópica do tecido do intestino delgado), podem provocar alterações no microbioma, aumentar  a permeabilidade intestinal e provocar inflamação.

Os avanços tecnológicos dos últimos anos permitem agora estudar partículas mais pequenas cujas repercussões potenciais para a saúde humana poderão ser ainda mais nefastas. Marta Martins já se interessava por toxicologia e pelos poluentes dos ecossistemas marinhos e a forma como estes polímeros se transferem ao longo da cadeia alimentar e potencialmente afectam a saúde humana era impossível de ignorar. A ecologia da Plastisfera (o ecossistema artificial que consiste em organismos adaptados a viver em desperdícios de plástico) é um assunto fascinante do ponto de vista científico.

Em 2023, a investigadora publicou com uma equipa internacional um artigo científico sobre as comunidades microbianas que colonizam microplástico marinho em dois ecossistemas estuarinos: no rio Sado e no Yarkon, em Israel. Sendo estes habitats produtivos e associados a intensas actividades de recolha de recursos para consumo humano, o grupo quis perceber as implicações para a saúde. Marta Martins sublinha que os riscos para a saúde humana não se esgotam na presença destes materiais.

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Em 2019, a Organização Mundial da Saúde alertou o mundo para a necessidade de investigar o potencial impacte dos micro e nanoplásticos na saúde humana.

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“Temos consciência de que os nanoplásticos também servem de transporte a outros poluentes e microrganismos patogénicos.” Em laboratório, a equipa de que faz parte tem testado como mexilhões expostos a microplásticos retêm partículas no tracto intestinal e, em parceria com a Faculdade de Farmácia, expõe também células humanas a nanoplásticos demonstrando o potencial inflamatório em tecidos como o intestino humano. Ainda há um longo caminho a percorrer e a União Europeia abriu entretanto uma linha de financiamento que deverá ajudar a fornecer respostas a muitas das perguntas dos próximos anos.

Será que tudo isto pode afectar os seres humanos? Essa foi a pergunta em 2017 do gastroenterologista Philipp Schwabl, da Universidade de Medicina de Viena, surpreendido com uma notícia sobre microplásticos encontrados em peixes. “Lembro-me que estava a tomar banho e não conseguia tirar a notícia da cabeça”, conta. “Teriam estas estranhas partículas progredido na cadeia alimentar? E se sim, poderiam ser detectadas nas pessoas, ou nas suas fezes? Ainda a secar-me, procurei um artigo científico que pudesse confirmar ou refutar a minha hipótese, mas descobri que a investigação sobre microplásticos no campo da medicina era ainda muito escassa. Foi então que decidi desenvolver um projecto para detectá-los em amostras de fezes humanas, algo que realizei em colaboração com a Agência Austríaca do Ambiente para seguir os métodos adequados.”

Depois de pedir a amigos e colegas de todo o mundo que lhe enviassem amostras de fezes (Schwabl brinca com o facto de a sua proposta lhes ter parecido peculiar), o investigador descobriu algo que alarmou a comunidade científica internacional: apesar da variabilidade das amostras, foram encontrados microplásticos em todas, sem excepção.

FUNDAÇÃO PLASTIC SOUP-Em 2020 uma equipa de cientistas italianos descobriu pela primeira vez microplásticos nas paredes da placenta humana. A Fundação Plastic Soup criou o “Bebé de Plástico”, uma alegoria visual para representar as novas fronteiras de um enorme problema sanitário.

“A descoberta foi surpreendente e, por sorte, teve grande repercussão mediática”, recorda. O termo tornou-se tão popular que, em 2018, “microplástico” até foi a palavra do ano em Espanha. Em 2019, a Organização Mundial da Saúde (OMS) alertou o mundo para a necessidade de investigar o potencial impacte dos MNPL na saúde humana. Nessa altura, já tinham sido detectados em todo o lado. As principais fontes de emissões são os aterros sanitários e as estações de tratamento de resíduos, bem como as actividades agrícolas e industriais. Infiltram-se no ar, na água e no solo e estão presentes em alimentos, bebidas, cosméticos e medicamentos. São constantemente libertados pelas tintas com que protegemos os edifícios, pelos pneus dos automóveis, pelas roupas sintéticas que colocamos na máquina de lavar, pelas pontas de cigarro, pela relva artificial... e até por certas saquetas de chá e biberões (que contêm com frequência polipropileno) com que alimentamos os bebés.

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Em Agosto, serão retomadas as negociações para um tratado global contra a poluição de plástico.

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A descoberta de Schwabl foi o gatilho para pôr em marcha numerosos estudos científicos em todo o mundo, cinco dos quais foram realizados no âmbito do programa de investigação e inovação Horizonte 2020 da União Europeia. O projecto AURORA estudou as repercussões na saúde humana causadas pela exposição aos MNPL durante a gestação e o início da vida; o IMPTOX, a relação entre os MNPL e as doenças alérgicas; o PlasticFatE investigou a influência que a ingestão e inalação dos contaminantes presentes nestas partículas pode ter na saúde; o POLYRISK centrou-se nos efeitos adversos causados no sistema imunitário. 

Uma das questões com que vários investigadores desta área ainda se debatem é com a ausência de métodos e procedimentos padronizados de recolha e análise destes contaminantes que facilitem a comparação entre diferentes realidades. Na Faculdade de Ciências da Universidade do Porto, Yuliya Logvina está há três anos a desenvolver a sua tese de doutoramento sobre os níveis de variação e distribuição a longo prazo de fibras e microplásticos transportados pelo ar. O percurso desta investigadora é peculiar. Quando emigrou da Ucrânia para Portugal há 13 anos, trazia formação em Economia e experiência de trabalho no sector bancário, mas a mudança permitiu-lhe dedicar-se à sua paixão de sempre – contribuir para superar os desafios ambientais. Encontrou o seu espaço numa equipa dedicada ao estudo de contaminantes aéreos, que começou em 2022 a recolher dados na cidade do Porto e há um ano alargou a recolha a Coimbra e à Guarda. Os resultados ainda são preliminares, mas há claramente níveis preocupantes de microplásticos no ar.

STEVE GSCHMEISSNER / SPL / GETTY IMAGES-Microscopia electrónica de varrimento (MEV) de cor falsa de uma secção transversal de uma artéria muscular. Os nanoplásticos podem provocar  uma redução do fluxo sanguíneo e aumentar o risco de enfarte do miocárdio e de acidente vascular cerebral.  

Uma das incógnitas que a equipa quer esclarecer prende-se com a grande variação entre amostras recolhidas em dias diferentes. “Encontramos mais partículas quando há ventos dominantes de norte do que quando sopram do quadrante sul”, diz a investigadora, mas os picos de partículas no ar parecem potencialmente associados a epifenómenos. “Pensamos que podem ser consequência de variáveis que incluam obras, recolha de resíduos, queimadas e até acidentes de viação nas imediações das estações de amostragem.” Tal como nos ambientes marinhos, estes polímeros podem transportar metais pesados e outros contaminantes.

Yuliya está entusiasmada. Agora tem ao seu dispor ferramentas de espectrografia Raman (em homenagem ao físico indiano Chandrasekhara Venkata Raman) que lhe permite detectar partículas com 0,5 micrómetros. Já passaram três anos desde que iniciou o doutoramento, e Yuliya sabe que tem de se concentrar na escrita, mas continua a adicionar novos dados. Este é, infelizmente para a nossa saúde, um campo em expansão e os investigadores que se dedicam ao seu estudo não ficarão sem trabalho tão cedo.

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Yuliya Logvina recolheu dados no Porto, em Coimbra e na Guarda. Os resultados ainda são preliminares, mas há claramente níveis preocupantes de microplásticos no ar.

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Ao contrário de outras amostras usadas em ambientes científicos, as amostras de microplástico não estão disponíveis de forma padronizada, o que requer um processo longo e laborioso, como está patente em Homo plasticus: plastic inside us, um interessante documentário do canal ARTE que ainda não foi lançado, mas ao qual tivemos acesso, e que explica como diferentes cientistas de diferentes organizações europeias estão a trabalhar para descobrir os riscos dos MNPL para a saúde humana. 

O documentário mostra como um membro da equipa PlasticHealerosion desgasta manualmente um pedaço de plástico para obter, após semanas de dedicação exclusiva, quatro escassos gramas de nanopartículas de PET. Uma das proezas foi observar como penetram na membrana celular e chegam ao interior do núcleo, uma previsão de futuras disfunções no nosso organismo. Quando as células sentem que algo está a tocar na sua membrana, “engolem” as nanopartículas, que permanecem inalteradas no interior. Ao fim de quatro anos de investigação, tornou-se claro que os nanoplásticos afectam de facto o ADN celular, o que pode produzir inflamações crónicas, alterações no sistema imunitário e aumento da sensibilidade a outros contaminantes conhecidos, como o arsénico ou o tabaco. Em paralelo, começaram a ser identificados os grupos populacionais com maior risco de exposição ou susceptibilidade: pessoas com doenças prévias, em situações de fragilidade (como mulheres grávidas ou bebés) ou expostas a determinadas condições ambientais (como as que trabalham na indústria dos plásticos).

Outras equipas científicas sugerem que os MNPL podem também gerar mutações genéticas e desencadear doenças oncológicas e processos inflamatórios crónicos, uma vez que as células lutam para se livrarem daqueles agentes intrusos. Afectam a microbiota, favorecendo o aparecimento de bactérias patogénicas, e danificam o sistema imunitário: os macrófagos, as primeiras células de defesa a actuar, não conseguem destruir os nanoplásticos, o que acaba por produzir hiperactividade e sobrecarga na rede que nos protege das agressões externas.

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Quando as células sentem que algo está a tocar na sua membrana, “engolem” as nanopartículas, que permanecem inalteradas no interior.

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SUPHACHAI PRASERDUMRONGCHAI / / ISTOCK-Esta angiografia, uma técnica de diagnóstico que utiliza raios X e contraste para visualizar os vasos sanguíneos, mostra a complexa e delicada rede de artérias cerebrais. O cérebro é  um dos órgãos que mais acumula MNPL (micro-plásticos e nanoplásticos). As suas portas de entrada são o sistema circulatório e o nervo olfactivo.

Muitos cientistas estão a trabalhar para encontrar as respostas de que necessitamos para compreender e enfrentar este problema de saúde pública. Segundo uma investigação da Universidade de Columbia, um litro de água engarrafada contém uma média de 240 mil fragmentos detectáveis de plástico, entre 10 e 100 vezes mais do que as estimativas anteriores.

Há ainda muitas perguntas no ar: que quantidade de MNPL temos no nosso corpo e a partir de que quantidade começam a representar um risco para a nossa saúde? Quanto tempo permanecem no organismo? Que quantidade é excretada? Em que órgãos se alojam mais e em quais são mais perigosos? Que substâncias químicas contêm e qual o perigo de cada uma? Que sectores da população são mais vulneráveis?... As respostas a estas questões terão importância para melhorar a regulamentação e a certificação dos materiais plásticos e para desenvolver medidas adequadas de saúde pública e de sensibilização para combater este perigo ambiental que afecta todos os seres vivos e ecossistemas da Terra.

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Já foram  identificados os grupos populacionais com maior risco de exposição ou susceptibilidade: pessoas com doenças prévias, em situações de fragilidade ou expostas a determinadas condições ambientais.

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A boa notícia é que o número de trabalhos de investigação sobre o tema cresce exponencialmente. Em 2019, só foram publicados cerca de trezentos artigos científicos; nos últimos três anos, o número anual ronda sete mil. Como explicou Steffen Foss Jansen, especialista em poluição ambiental da Universidade Técnica da Dinamarca e membro da PlasticHeal, durante a apresentação dos resultados deste projecto europeu, a inteligência artificial será essencial para filtrar este volume colossal de informação.

A ausência de consenso impediu mais de duzentas nações de chegarem a acordo na quinta ronda de negociações sobre o tratado global contra a poluição por plásticos, promovida pela ONU em 2022 na cidade sul-coreana de Busan em Dezembro. Carmen Morales, investigadora do Instituto de Investigação Marinha (INMAR) da Universidade de Cádis, esteve presente numa iniciativa recente criada por uma rede internacional de especialistas que participa nestas negociações. “Muitos países e regiões estão a trabalhar para chegar a esse acordo e alguns são particularmente ambiciosos, como a União Europeia, o Panamá, o México, a Noruega e o Ruanda”, afirma.  

O país africano luta contra a poluição causada pelos plásticos desde 2008, ano em que se tornou um dos primeiros a proibir os sacos de plástico de utilização única e, actualmente, é proibido trazê-los para o país. Peter Katanika, consultor ruandês do Banco Mundial, explica:“A proibição foi imposta quando constatámos os impactes negativos dos resíduos de plástico na produção agrícola (contaminam o ambiente), na erosão dos solos (dificultam a compactação dos solos) e na qualidade da carne (como vacas e cabras afectadas pela ingestão de plástico).”

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Segundo uma investigação da Universidade de Columbia, um litro de água engarrafada contém uma média de 240 mil fragmentos detectáveis de plástico.

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Como é óbvio, há interesses económicos em jogo. “Mais de 220 influenciadores da indústria dos plásticos e dos combustíveis fósseis constituíram a maior delegação nas negociações na Coreia do Sul, ultrapassando todos os Estados-membros da UE, para deixar claro que não querem abordar a questão dos produtos químicos nos plásticos, apesar de milhares deles estarem classificados como perigosos e de muitos outros ainda não terem sido avaliados”, diz Morales.

DENNIS KUNKEL MICROSCOPY / SPL / ALBUM-Imagem microscópica de um hepatócito e dos seus principais organelos, estruturas especializadas que permitem à célula hepática desempenhar  as suas funções:  glicogénio (azul), lípidos (amarelo), mitocôndrias (vermelho) e núcleo com ADN (rosa e roxo). O fígado é altamente susceptível à toxicidade potencial dos MNPL.

Os países cujas economias dependem da produção e exportação de petróleo também não estão dispostos a negociar a redução do consumo, admitindo apenas a necessidade de tratar os resíduos, apesar de apenas 9% serem reciclados. Os restantes são depositados em aterros, o que significa que há ainda caminho pela frente.

Consegue imaginar o volume de resíduos que estamos a deitar fora? Actualmente, fabricamos cerca de 460 milhões de toneladas de plástico por ano, a maior parte do qual é de utilização única. Se as tendências actuais se mantiverem, essa produção duplicará em 20 anos.

Em 2008, a produtora holandesa de televisão Maria Westerbos ouviu falar pela primeira vez da sopa de plástico no oceano – a constatação de que o plástico nunca se decompõe por completo, pelo que todo o plástico produzido até então ainda existia de uma forma ou de outra. Considerou a ideia tão chocante que decidiu virar as costas à televisão. Em 2011, fundou a Fundação Plastic Soup, uma organização de base que começou na mesa da sua cozinha.

A primeira campanha incidiu sobre as microesferas, os pequenos pedaços de plástico que constituem ingredientes ocultos em produtos de higiene pessoal, incluindo em pasta de dentes. A campanha teve tanto sucesso que a União Europeia proibiu a adição deliberada de plástico em cosméticos, tintas e produtos de limpeza. Em 2016, o foco mudou para a nossa saúde: será que o plástico nos deixa doentes?

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Os países cujas economias dependem da produção e exportação de petróleo também não estão dispostos a negociar a redução do consumo de plásticos. 

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Há algumas semanas, conversei com Robbert Meulenveld, o actual director da fundação, um homem com fé absoluta na ciência. Disse-me que uma das suas “descobertas” mais perturbadoras foi um artigo científico que sugeria que as partículas de plástico danificam as nossas células cerebrais e também parecem causar doenças como a demência e o Parkinson.

“Temos de considerar o efeito do plástico e dos aditivos químicos, muitas vezes nocivos, como uma das maiores crises de saúde da nossa época”, disse. “No entanto, estamos a produzir cada vez mais plásticos descartáveis, envenenando-nos a nós próprios, aos nossos filhos e ao planeta. Já não estamos a falar de um problema ambiental, mas de uma substância que pode ser fatal para as gerações futuras. Os humanos são a única espécie do planeta que polui o seu próprio ninho e envenena os seus filhos. Daí a imagem do Bebé de Plástico. Precisamos de fechar a torneira do plástico o mais rapidamente possível.”

O mundo, porém, depende deste material leve, resistente e barato que inventámos há 150 anos, mas que hoje nos inunda. Face a esta realidade, por que motivo reciclamos tão pouco? Na opinião de Carmen Morales, existem várias razões: “O plástico é um material duradouro, mas, uma vez fabricado, inicia um processo de degradação. A sua composição vai mudando, pelo que muitas vezes, a sua reciclagem torna-se inviável. Além disso, o plástico virgem é barato, pelo que do ponto de vista puramente económico é mais barato comprá-lo do que reintroduzir com sucesso o plástico usado na cadeia de produção.”

“Apenas nós, os humanos, geramos resíduos que a natureza não consegue digerir”, disse um dia Charles J. Moore, oceanógrafo e descobridor da “ilha ou sopa de plástico” do Pacífico Norte. Hoje, 70 anos depois da celebrada “vida descartável”, a festa acabou e os danos estão à vista.

Eva van den Berg
Jornalista especializada em Ciência e Natureza

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