terça-feira, 18 de março de 2014

As histórias de uma simples aldeia transmontana

Os rafei­ros, uns três ou qua­tro, cir­cu­lam à minha frente esquá­li­dos e famin­tos. A cor ama­rela do pêlo confunde-se com alguma vege­ta­ção seca e com os refle­xos do sol que, logo pela manhã, já teima em tostar-nos a pele. Quero dar-lhes pão. Pri­meiro  hesi­tam  e afastam-se, são fugi­dios. Compreendo-os! Já não me conhe­cem e, tal como se diz, não se deve dar con­fi­ança a estra­nhos. Insisto e con­ti­nuo a chamá-los. Len­ta­mente, o mais cora­joso, aproxima-se. Abo­ca­nha o pedaço de pão que lhe estendo e, como agra­de­ci­mento, lambe-me a mão. Afasta-se. Como não deve ter mais nada para fazer, supo­nho, deita-se na berma do asfalto, de bar­riga para o ar, a apro­vei­tar a las­si­dão que este sol pro­voca.  Olho em volta e reparo que a filha da  vizi­nha, que mora numa casa em frente à da minha avó, já regres­sou da Espa­nha. Varre o pátio em frente à porta de casa enquanto peque­nas par­tí­cu­las de pó voam no ar. Repara em mim e cumprimenta-me com as pala­vras da praxe: “Ah, olá! Então, estás cá?  Estás mais bonita, pre­ci­sas é de engor­dar mais um boca­di­nho senão nin­guém te vê mulher” Até que vem a per­gunta fatal, “Então, já arran­jaste emprego?”. “Ainda não”, res­pondo, “isto não está fácil”. “Ah, vais ver que vais ter sorte. Olha, a tua mãe, anda por aí?” “Sim, sim, está den­tro de casa, entre”.

Fico sen­tada nas esca­das da entrada enquanto ouço a vizi­nha a queixar-se da mãe, já nos seus oitenta anos. “Ah, não sabe como me põe a vida num inferno. Nem sei se fiz bem em vol­tar.” “Mas tem de ter paci­ên­cia, então, já sabe que os velho­tes são assim”, res­ponde a minha mãe. “Mas sabe lá as doen­ças que ela colec­ci­ona?!? Ainda me fala das doen­ças de há não sei quan­tos anos atrás. Se as fosse reno­vando, vá lá, mas são sem­pre as mes­mas e nunca curam. Ela não me quer ir para o lar, mas só não vai por res­peito ao meu pai, que já não está bom da cabeça. Depois como é que aquele homem, habi­tu­ado a andar e a mexer nas coi­sas dele, ia-se-me aguen­tar fechado, den­tro de qua­tro pare­des? Ainda se os meus irmãos me aju­das­sem! Mas já avi­sei a minha mãe que não sou a cri­ada dela. Não lhe faço o almoço nem o jan­tar. O comer vem da Santa Casa e é se quer.”

Enquanto con­ver­sa­vam, vejo que o tema da con­versa, aquela senhora já na casa dos oitenta anos, vem para fora e senta-se numa cadeira. Fico impres­si­o­nada com a ati­tude da senhora por­que tem pas­sado o último ano quase na cama. Os vizi­nhos, que habi­ta­vam mais três casas ao pé, já não con­se­guiam tole­rar aquela situ­a­ção por­que pas­sava o tempo a ligar-lhes para lhe faze­rem um chá, uma sopi­nha ou uma tor­ra­di­nha. Ao que parece, os tele­fo­ne­mas acal­ma­ram quando a filha a ame­a­çou que tinha de pagar a conta do tele­fone com a pró­pria reforma. Chama-me com ale­gria nos olhos e lá vou dar-lhe um dedi­nho de con­versa. A tarefa não é difí­cil. Basta perguntar-lhe “então, como é que se sente?”, que a senhora dá conta do resto. Quem está do outro lado basta só ouvir.

Após enu­me­rar as suas mil e uma doen­ças, desde uma colite até ao inchaço óbvio das per­nas cheias de vari­zes, con­se­guiu encon­trar um enca­de­a­mento qual­quer para come­çar a con­tar o iní­cio da sua vida. A mãe era cri­ada na casa de uma fidalga rica, numa outra aldeia, mas tive­ram de aban­do­nar aquela povo­a­ção gra­ças ao pai. Era o marido da sua tia, ou seja, o mais que tudo da irmã da sua mãe. Após o des­lize, a mãe vol­tou a refa­zer a sua vida com outro homem, mas a filha não se dava muito bem com o padrasto. As his­tó­rias con­ti­nuam. Ao que parece, o esposo da tal fidalga rica era um médico por quem as meni­nas sus­pi­ra­vam e inven­ta­vam doen­ças. Comportava-se de forma bas­tante edu­cada e falava bem, para além de ser alto e bonito. Era culto e, sem­pre que podia, gos­tava de ir ao Porto para poder ver cinema e peças de tea­tro.   O con­traste dos outros mari­dos que não se faziam roga­dos em apre­sen­tar a mão às res­pec­ti­vas mulhe­res. Quem naquele tempo não se der­re­tia com peque­nas aspi­ra­ções casa­no­vi­a­nas como esta: “A uma mulher não se bate nem com uma flor.”  Como a con­cor­rên­cia era muita e o médico até gos­tava das aten­ções das meni­nas,  a fidalga rica decide deixá-lo e o senhor dou­tor fica livre. Mui­tas foram as que qui­se­ram agarrá-lo, mas um médico demo­crá­tico não se pode dedi­car a uma só paci­ente. Ape­sar dos mui­tos casos que teve e que per­pe­tu­a­ram até ao final da sua vida, não se vol­tou a casar nem a par­ti­lhar a casa com mais nin­guém. Mas, como todos nós somos cor­rom­pi­dos pelos demo­nía­cos remor­sos, para se redi­mir ofe­re­ceu uma máquina de cos­tura, (daque­las ver­des da Oliva),a cada uma das suas pai­xões. “Bem jeito deu”, ale­ga­ram algumas.

Os rela­tos não fin­dam aqui. O pró­ximo con­ci­lia armas, reli­gião e uma valente tareia.  Uma vez, segundo me conta esta velha, a mãe de um certo jovem volta a casar após enviu­var do marido que mor­reu no Bra­sil. Até aqui tudo bem, não fosse o filho odiar o padrasto. O que faz? Começa a ven­der cereal para com­prar uma pis­tola e  pôr termo à vida do seu car­rasco. O azar do rapaz é que era reli­gi­oso e, mais uma vez para ali­viar a cons­ci­ên­cia, reve­lou ao padre em acto de con­fis­são que com­prou uma arma e ten­ci­o­nava dar-lhe uso. O padre, alar­mado, conta os inten­tos da sua ove­lha negra à mãe. O que esta faz? Espera pelo filho, paci­en­te­mente, em casa. Quando o nosso cow­boy apa­rece leva um enxerto de por­rada tal que teve de fugir de casa. O orgu­lho, esse, é que ficou um tanto ao quanto ferido. O padrasto sobre­vi­veu. O pequeno pis­to­leiro con­ti­nuou reli­gi­oso mas nunca mais se con­fes­sou na vida, nunca, nunca mais.

A con­versa con­ti­nuou. Para rea­fir­mar a sua hon­ra­dez, esta idosa con­tou his­tó­rias de outras meni­nas do seu tempo, mal com­por­ta­das, cujos pais tive­ram de levá-las ao médico para con­fir­mar a sua suposta vir­gin­dade. De pais que foram leva­dos a tri­bu­nal por­que que­riam fugir aos seus deve­res  de paren­ta­li­dade; das fes­tas da aldeia que tanto pode­riam aca­bar numa grande bebe­deira ale­gre ou aos tiros. A car­ri­nha da Santa Casa chega, é hora do almoço. Agora sim, a con­versa acaba.

A sua filha chega e a voz desta senhora fica, de repente, tré­mula. Sur­gem uns ais aqui e ali, “ ai as minhas cru­zes”. Lá se levanta e vai almo­çar. “Ai, tanto filho que criei para agora estar assim”. A sua des­cen­dente, assim que ouve isto, lança as mãos à cabeça em sinal de deses­pero, “onde me meti”.

Vou para casa, para o meu can­ti­nho no quin­tal. Olho para a imen­si­dão dos ter­re­nos, das vinhas, dos oli­vais, dos mon­tes. Que livros Cor­mac Mccarthy escre­ve­ria com as desa­ven­ças que esses mes­mos ter­re­nos cau­sa­ram entre irmãos, pri­mos e paren­tes de ultís­simo grau? Dou comigo, tam­bém,  a pen­sar na farra da última vin­dima em que um homem desa­fo­gava as suas lágri­mas enquanto can­tava “e às qua­tro da madru­gada o pas­sa­ri­nho can­tou.” Na mulher mais velha da aldeia,  que con­se­guiu sobre­vi­ver estoi­ca­mente a três casa­men­tos e enter­rou os seus três mari­dos. Na última vez em que as anciãs se reu­ni­ram para fazer os fola­res e tive­ram con­ver­sas que faziam corar  a mais moderna das meni­nas. É já de tarde e vejo as pes­soas a saí­rem para rezar o terço. Entre as velhas quais seriam as Annas Kare­ni­nas? Entre os homens quais seriam os Billy The Kids do seu tempo, de arma na mão? Melhor, quais seriam os Casas­no­vas que sabiam como falar ao ouvido de uma mulher? Tudo aqui é his­tó­ria e tudo me cheira a lite­ra­tura, mas há uma outra ques­tão que me inco­moda. Em que ponto é que as pes­soas pas­sam a ser pes­soas e não, ape­nas, um reflexo do seu tempo? Para des­co­brir a res­posta é fácil. Basta entrar pelo lado mal­dito das his­tó­rias. Só falta dizer que tudo isto se pas­sou numa pequena aldeia trans­mon­tana, o meu pró­prio Texas pes­soal. Vila­ri­nho das Aze­nhas, do con­ce­lho de Vila Flor, mesmo à bei­ri­nha do rio Tua. Não há nada melhor do que acor­dar de manhã ao som do cor­rer das águas de um rio. É algo que nunca mais se esquece, vá-se para onde se vá.

por Ana Fernandes
in:ip4mag.com

1 comentário:

  1. Adorei esta pequena história da Ana Fernandes. Simples e poético, o texto levou-me num regresso ao passado de Camilo, Eça ou Júlio Dinis, autores que não me cansei de ler na minha adolescência. Foi uma sensação de conforto. Obrigada.

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