Autores:
António J. Andrade
M. Fernanda Guimarães
Em audiência de 9 de Junho de 1659, António Henriques da Costa “disse que, haverá 20 anos, em Vimioso, se achou com (…) Brites Lopes, viúva de António da Costa (…) e disse que, haverá 8 anos, no Porto, em sua casa, se achou com António da Costa”, filho daquela.
Uma tal declaração, em princípio e por ser única, não seria suficiente para ordenar a prisão das pessoas em causa. No entanto, o promotor da Inquisição assim não entendeu e fez o seguinte requerimento:
- Contra António da Costa, cristão-novo, mercador e Brites Lopes, viúva de outro António da Costa, moradores no Vimioso, ofereço a VM o testemunho de António Henriques da Costa, mercador, de 9 de Junho de 1659, no qual diz contra os delatos culpas de judaísmo em forma e jejum do dia grande e outros, o qual está ratificado com certidão de bom credito, e depõe contra os delatos muito verosimilmente, sendo de terra tão vulgar no judaísmo, aonde de presente estão decretadas muitas prisões e outrossim o delato é irmão de Francisco da Costa Henriques, preso e confesso, e é verosímil que o réu cometesse as ditas culpas e de presente vive a um quarto de légua de Castela, aonde de presente estão para se fazer muitas prisões e se fizerem poderão fugir (…) e de contínuo estão fugindo daquelas partes, como consta de repetidos avisos de Familiares delas (partes). E se presume que o réu fará da mesma sorte (…) Requeiro que decretem a prisão de António da Costa e Brites Lopes, com sequestro de bens.
O requerimento foi deferido e, no dia 5 de Junho de 1660, Brites Lopes e o filho eram entregues na Inquisição de Coimbra. E, 22 dias depois, foram também presas as 3 filhas daquela e irmãs deste, a saber:
Maria da Costa, moradora em Vimioso, viúva de Francisco da Paz, moradores em Carção.
Isabel da Costa, casada com Gaspar Rodrigues, moradores em Vimioso.
Catarina da Costa, casada com João Fernandes, moradores em Vimioso.
E também no mesmo dia 27 de Junho, foi preso um sobrinho de Brites, filho de seu irmão Manuel Lopes, chamado António Lopes, de 26 anos, surrador, residente em Carção.
Metida na cadeia, não seria difícil a Brites Lopes adivinhar quem a tinha denunciado: o filho Francisco, a nora Leonor e o pai desta, seu primo, os quais, duas semanas antes, tinham saído em auto-de-fé e ainda andavam por Coimbra, vestidos de sambenito, cumprindo a sua penitência. Por isso, logo ela confessou que “haverá 11 anos que, em sua casa, no Vimioso, se declarou com seu filho Francisco”. E também logo disse que se tinha declarado com seu filho António da Costa que consigo veio preso. Igualmente explicou que foi uma prima materna, Maria Lopes, a galega, viúva de João Lopes, que a introduziu na religião mosaica e lhe ensinou as suas regras. Claro que desta denúncia não resultava qualquer mal, porque Maria Lopes se tinha ausentado há muito para Castela.
Depois, Brites Lopes manteve-se firme, ao longo de ano e meio, não fazendo mais qualquer denúncia. Porventura não saberia que as suas filhas e o seu sobrinho também ali estavam presas e a tinham já denunciado a ela. Tal como a mãe dos Macabeus, tentava Brites proteger os filhos, mantendo-se inabalável em sua fé.
Não sabemos se por ingenuidade ou numa tentativa de confundir os inquisidores, confessou que em tempos era seguidora da lei de Cristo e da de Moisés, em simultâneo, dizia que ia ouvir missa às igrejas para salvação da sua alma e que, ao mesmo tempo, fazia jejuns e cerimónias judaicas.
Avisavam-na os inquisidores de que isso era um absurdo, uma repugnância, contrapondo ela “que a dita crença na lei de Moisés lhe durou só 2 anos e depois foi alumiada pelo Espírito Santo”. Logicamente que fazia coincidir esta “iluminação” celeste com a ida de seu filho para o Porto!
Os inquisidores, porém, tomavam nota e escreviam no processo: “ela tem 60 anos e é muito bem entendida”.
Advertiam-na das contradições e repugnâncias de suas confissões e ela mantinha-se na sua posição. Ameaçavam-na e ela continuava firme em suas ideias. Em interrogatório muito apertado perguntaram-lhe se tinha consciência do perigo que corria, mantendo-se assim negativa e se conhecia “os termos em que, de presente está o seu processo” e ela respondeu, desassombrada: - “Saberia se lho dissessem”!
Não quis procurador para a defender, nem quis apresentar contraditas, afirmando que não tinha inimigos. Efectivamente, foram perguntadas muitas pessoas em Vimioso e Carção e todas, gente do povo, da nobreza e da governança da terra, todas testemunharam que era “pessoa de muito crédito” e que nunca teve “brigas nem dúvidas com pessoa alguma”.
Pareciam esgotadas todas as hipóteses de “redução” à fé católica e, em sessão de 28 de Março de 1662, foi tomado o seguinte assento em Mesa:
- A ré está julgada por convicta no crime de judaísmo, falsa, dissimulada, confitente, diminuta, impenitente e que, como tal, herege e apóstata da Nossa Santa Fé Católica, devia ser relaxada à justiça secular.
Estava, pois, condenada à morte na fogueira e esta sentença foi-lhe comunicada em 26 de Junho de 1662. A verdade é que, nem assim, Brites Lopes recuou em suas posições, dizendo, mais uma vez, que não tinha mais culpas a confessar!
No dia 7 de Julho seguinte, foi o notário da Inquisição e um guarda à sua cela para a informarem que no domingo seguinte, dia 9, seria o auto-de-fé e para lhe atarem as mãos, como era da norma do regimento, deixando com ela o padre da Companhia de Jesus para tentar convencê-la a confessar suas culpas e, ao menos, morrer como católica.
Não sabemos se por medo ou convencida pelo padre ou por saber então que suas 3 filhas também estavam presas e sairiam no mesmo auto, a 8 de Julho, Brites Lopes desatou a confessar suas culpas e a denunciar toda a sua parentela: filhos, netos, irmãos… incluindo o primo Jorge Henriques que “se ausentou para Castela” e dali para Livorno… dizendo que, afinal, tinha sido instruída no judaísmo há mais de 30 anos, por sua parente Catarina Lopes, de alcunha a bicha, de Vimioso.
Com esta confissão, Brites Lopes escapou à fogueira, sendo condenada a “hábito penitencial perpétuo, com insígnias de fogo e degredo de 7 anos para o Brasil”.
Mais leves (penas espirituais e hábito a arbítrio) foram as penas aplicadas a suas filhas, filho e sobrinho, que todos saíram no mesmo auto-de-fé.
Dos processos de António da Costa e António Lopes há uma nota que nos parece muito importante registar: um e outro são proprietários de boas vinhas, declarando um que deixara em armazém 200 almudes de vinho e o outro 90. Se atendermos a que se estava no mês de Junho, quando a produção deve estar meio vendida… pode concluir-se que eles eram mesmo grandes produtores, à escala local, já se vê e que a sua agricultura não era apenas de subsistência, antes revela um carácter empresarial.
Das confissões de António da Costa, retiramos a seguinte nota:
- Disse que haverá 7 anos, em Castela, no caminho que vai de Rio Seco para Valladolid, se achou com seu tio segundo, por via materna, Jorge Henriques, cristão-novo, mercador, então morador em Carção e morador hoje em Livorno; e estando ambos, não se lembra em que ocasião, doutrinou-o e ele se apartou.
Do processo de Isabel da Costa registamos que foi a prima de sua mãe, Catarina Lopes, a bicha, que a doutrinou e entre essa doutrinação lhe ensinou as belíssimas orações que se seguem, repletas de lirismo e de grande profundidade ideológica:
I
Vossos amores, Senhor,
Me trazem mui descuidada,
Que não quero outro cuidado
Senão servir-vos Senhor.
Se tu a mim servires,
Eu a ti te guardarei,
E quando me demandares,
Senhor, sei que tudo te darei.
De meus filhos e marido,
Eu terei grande cuidado,
E saberão as nações
Que sou de ti advogado.
Serás bendito no campo
E das ruas da cidade
Limparás tu a maldade
E estarei em povo santo.
II
Ó vivo e eterno Senhor,
Que céus e terra fizestes
E a toda a criatura destes
E a mim, servo e sem valor,
Rogo-te por teu amor
Que me reías meus sentidos
Que sendo por ti regidos
Não farão nunca error.
III
Senhor que estás nas alturas,
Minha boca consolastes,
Louvemos as criaturas
Quantas no mundo criastes.
Ó alto Deus de Abraão,
Ó forte Deus de Israel,
Tu que ouviste a Daniel,
Ouve a minha oração.
Minha oração perfeita,
Posto lá nas alturas,
Ouve-me a mim, pecadora,
Que te chamo das baixuras.
Fontes
A.N.T.T. Inquisição de Coimbra
Processos 1518, 3495, 4556, 5720, 6025, 6706
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