terça-feira, 9 de setembro de 2014

Georges Dussaud, o fotógrafo que revelou a alma de Trás-os-Montes

Em França, onde é representado pela prestigiada agência Rapho, é o “fotógrafo de Portugal”, aqui, o homem que captou como ninguém o último suspiro da ruralidade lusa. Em 1980, quando Trás-os-Montes era um país distante e agreste, que poucos se orgulhavam de conhecer, Georges Dussaud descobriu o Barroso.



Fê-lo no final de uma viagem de férias estivais no Alentejo, com a mulher e os três filhos, num regresso à Bretanha pelas estradas mais longas e improváveis. “É quando nos perdemos, que encontramos as coisas mais interessantes” há de dizer-me nesta primavera instável de 2013, 86 regressos depois da viagem inaugural.

Naquele agosto soalheiro, ao passar pelas aldeias de pedra recolhidas entre as fragas graníticas, ao deparar com pessoas que preservavam um modo de vida ancestral mas feliz, soube que tinha de voltar. Passados poucos meses, no pico do inverno, instalou-se na aldeia de Negrões, situada a poucos quilómetros de Montalegre, “numa casa modesta, sem eletricidade, muito fria”. Seria a partir daí que, ao longo das estações, haveria de documentar rituais que se vão tornando raros: ceifas e debulhas em reuniões alegres, o uso de fornos comunitários, a matança do porco. Isto numa altura em que as escolas ainda se enchiam com as brincadeiras das crianças, protegidas da neve por capas de burel e croças de palha. Aí começou “um compromisso a longo prazo, uma descoberta, uma aventura humana que nos levou muito longe” – é Christine Dussaud, quem o escreve, no prefácio ao livro Crónicas Portuguesas, editado pela Assírio & Alvim.

Centro de Fotografia em Bragança
O resultado dessa aventura pode ser apreciado no Centro de Fotografia Georges Dussaud, recentemente inaugurado em Bragança, cidade a que o fotógrafo decidiu doar cerca de uma centena e meia de imagens, considerando que esta é a “cidade mais dinâmica de Trás-os-Montes”. Foi ali, a 25 de Abril, que o encontrei pela primeira vez, depois de anos a seguir o seu trabalho em livros e exposições. Rodeado por políticos, artistas, amigos e jornalistas, deu-nos um pouco da sua atenção, prometendo que nos faria uma visita. A promessa, cumprida pouco depois, deu origem a muitas horas de conversa à mesa, caminhadas pelo monte, um piquenique num lugar maravilhoso. Ao longo desses dias pude observar a forma discreta como fotografava aqueles que ia encontrando. Com a Leica de objetiva fixa (35 mm) pendurada ao pescoço, deixava que se esquecessem da sua presença antes de apontar a câmara, que utiliza como uma extensão de si mesmo.

Não surpreende que muitas das suas imagens mostrem o interior de casas que se lhe abrem sem pudor. Tal como os sorrisos, mesmo que tímidos, se abrem para este homem sem pose nem arrogância, que poderia ser um desses lavradores “pobres mas não miseráveis” que ele capta com tanto respeito, porque “a sua condição modesta, a sua simplicidade” o emocionam.

Pois, se a alma está muitas vezes presente nas suas fotografias, Georges Dussaud não rouba os instantes, aceita-os como “presentes” oferecidos por aqueles que se deixam fotografar. Mulheres que abrem as janelas para que a claridade inunde as casas sombrias. Olhares diretos de gente que aprecia a atenção da câmara virada para si. Uma mãe dobrada para confortar a filha pequena, mãos enfarinhadas pelo pão acabado de amassar, à “luz de uma pintura holandesa”, que tantas vezes encontra na região transmontana.

Outras vezes, as imagens são o resultado de um enquadramento preciso, de uma espera paciente, para que aconteça, não o momento decisivo de Cartier-Bresson, mas o “momento instintivo”, aquele em que o fotógrafo sente que guardou o gesto mais terno, o olhar mais nostálgico, a gargalhada solta.

Encontros felizes
Há um mundo de histórias atrás de cada imagem, que Georges e Christine vão desfiando ao correr dos dias. “De Portugal só temos boas memórias, nenhuma má experiência.” Como aquela senhora que pegou nas mãos geladas de Christine para as aquecer entre as suas, ou a guardiã da chave de uma capelinha no cimo de um monte, que os recebeu com abraços, como se os esperasse desde há muito.

Sempre esses encontros felizes a traçar-lhes o destino e os regressos. Miguel Torga, acolheu-os na sua casa natal em S. Martinho de Anta e revelou-lhes o Douro, com entusiasmo apaixonado. António José Rosas, “um homem excepcional”, guiou-os até Quinta de Ervamoira, onde assistiram à plantação das primeiras vinhas.

Manoel de Oliveira recebeu-os com o bom humor habitual, Jorge Sampaio e Mário Soares, no ofício das suas funções como chefes de Estado, revelaram uma amabilidade “impossível noutro país”.

E depois há todos aqueles – transmontanos, mais uma vez – que partilham o fruto do seu trabalho nas horas livres. São recordações que conservam com carinho: azeite produzido pela artista plástica de renome, frascos de mel dos apiários do diretor de um museu, vinho vindo das quintas de um outro diretor de um museu à beira-Douro. “É extraordinário como têm tempo para tudo”, comentam com assombro.

Uma curiosidade infinita
Ao lado de Georges está sempre Christine. Mulher, companheira, assistente, autora de muitos dos textos que acompanham as imagens do marido, quase diria sombra permanente, se não fosse tão luminosa: um brilho nos olhos azuis que acompanha o sorriso fácil, as frases cheias de humor e um incrível entusiasmo por tudo que vê.

Tem uma memória extraordinária, parece saber o nome de todos com quem se cruzou ao longo da vida, conhece as datas precisas, os detalhes de cada encontro.

Se as imagens são feitas por Georges, agora sei que Christine está também em cada uma delas. Imagino-a a encetar uma conversa (foi aprendendo algum português), a proteger o marido da chuva, a afastar-se do enquadramento na altura certa, a chamar-lhe a atenção para um pormenor, ela também artista por direito próprio, quando agarra nos pincéis para retratar os outros à sua maneira.

Em qualquer dos casos, as pessoas sempre presentes. Mesmo quando Georges Dussaud fotografa paisagens é a geografia humana que desvenda: um trilho numa seara, campos murados, largas panorâmicas do Alentejo rasgadas por caminhos, o nevoeiro do mar da Apúlia a esconder uma silhueta distante.

Uma imensa melancolia a evolar-se das imagens, que nos retratam sem máscaras. Ali vemos um povo simultaneamente nostálgico e alegre, capaz do mais árduo trabalho e de uma solidariedade infinita, que estende toalhas no chão com a mesma generosidade com que abre os braços e o coração.

Na despedida, um abraço apertado a selar uma intensa afinidade e a certeza de um reencontro em breve, em Trás-os-Montes, onde há sempre algo novo a fotografar, a descobrir. Até porque, “nós mantemos sempre a curiosidade”, dirá Christine com esse olhar de eterna menina. Ao lado, Georges sorri, no seu modo sereno de olhar o mundo.

Além da coleção permanente do Centro de Fotografia Georges Dussaud, em Bragança (rua Abílio Beça nº 75/77, aberto de segunda a sexta, das 09h30 às 12h30 e das 14h00 às 17h30), até ao final de junho a exposição «O Douro de Georges Dussaud» pode ser vista no Museu do Douro, na Régua (Rua Marquês de Pombal, todos os dias, das 10h00 às 18h00):

in:papelonline.pt

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