sexta-feira, 19 de abril de 2024

DOS JORNAIS E DA CULTURA - Polémicas e disputas

O “marco cultural” que nos volta a ocupar neste momento – entre os “marcos” que Armando Fernandes refere –, “será o da imprensa periódica, desde meados do século XIX, até à Ditadura militar, instaurada em 1926.
Nesse período, o despertar pelo gosto da discussão de ideias, da natureza dos governos e qualidade dos governantes, dos interesses individuais e coletivos, da vida e da morte, dos conflitos mundiais ou das pequenas questiúnculas locais, permitia a todos, com destaque para os professores, clérigos e militares (e eram muitos), expressarem as suas opiniões, polemizarem”. Esta imprensa, com grandes cultores e colaboradores, vai contribuir, de facto, para “adubar” as mentes brigantinas.
Componentes culturais e formativas estão quase sempre presentes nos órgãos de informação. Os propósitos doutrinários notam-se mais no periódico A Pátria Nova, dada a sua inspiração assumidamente política e partidária e os seus intuitos propagandísticos. Há, normalmente, um intuito claro de dar à doutrinação cultural e cívica, de inspiração republicana, uma dimensão pedagógica.
O que agora queremos dizer é que, para além dos artigos que abordam temas e assuntos considerados essenciais para a formação de vários grupos sociais e para o desenvolvimento da região e do País, também se nota uma preocupação com a informação e a formação dos homens do universo rural, desse Portugal rústico constituído por proprietários agrícolas e por uma grande diversidade de camponeses. São preocupações comuns a toda a imprensa local, que sobressaem, uma vez mais, no jornal republicano. Com o objetivo de contribuir para a educação cívica e para a doutrinação republicana dos camponeses, nada melhor do que a popularíssima obra de José Falcão, A Cartilha do Povo, que o jornal vai passar a publicar em “folhetim”, logo a partir do terceiro número. De uma forma pedagógica, revelam-se as prepotências e arbitrariedades cometidas pelos monárquicos.
A redenção estava na República.
É ainda habitual na imprensa destes tempos a existência de espaços para a divulgação de trechos literários de grandes escritores. Destaque para a secção cultural de A Pátria Nova, intitulada "Guarda-jóias", que dá a conhecer textos da literatura e da cultura portuguesas. As seleções passam, fundamentalmente, por autores e conteúdos em consonância com a ideologia republicana.
Folhetins de obras romanescas e de ficção histórica, baseados, sobretudo, na História Pátria, destinados a divertir e a ensinar, encontram acolhimento nas folhas locais e fidelizam leitores.
A vida cultural também se alimentava de homenagens aos grandes vultos da região, como é o caso de Trindade Coelho. Raul Teixeira cita Lopes Vieira – "escrever é falar-se no papel" –, para concluir que "ninguém jamais falou no papel como Trindade Coelho". Ele é também o "democrata, filho do Povo". Por isso, lá iremos todos a Mogadouro.
Um extenso artigo de A Pátria Nova, sobre Guerra Junqueiro, prima pela qualidade literária e pelo tom laudatório: está entre os homens grandes que parecem "ter arrebatado ao céu a centelha divina que os transforma em semideuses, são eles os condutores da grande caravana social…".
No respeitante à colaboração de personalidades importantes, conta-se, por exemplo, a de António José de Almeida. Destacamos, da sua autoria, “Solução fatal”, um texto que, apesar da sua fórmula sintética, nos dá, pela qualidade literária e conceptual e pela mensagem incisiva, a dimensão do orador e do político. A solução só podia ser a abolição da Monarquia… Aqui se deixam algumas passagens: "O Partido Republicano não pode, em caso nenhum, transigir com a Monarquia, porque entre os dois a conciliação é impossível. Quando muito, ser-nos-ia permitido dizer à Monarquia que tivesse o bom senso de nos dar os direitos que nos pertencem, maneira muito única de a vida se lhe prolongar um pouco mais. Esses direitos, porém, não são somente os que foram escritos na lei em tempos de menor opressão, mas também aqueles que se acham nos costumes e constituem uma aspiração da alma nacional. A Monarquia, todavia, não fará concessão alguma. A sua anquilose histórica…, o espírito retrógrado dos homens que a servem e a falta de crenças que a torna uma fórmula sem vida, demonstram que ela só procurará resistir pelo furor. Vive escabujando: a sua energia chama-se demência, a sua atividade chama-se desespero…”.
Há manifestações e práticas que muito nos elucidam, pelas informações que nos trazem, sobre o ambiente que se vivia e se respirava nesses tempos e sobre os homens que construíam esse ambiente.
Dissidências e conflitos, pugnas e lutas, que assumem, por vezes, uma grande virulência, resultantes de confrontos políticos, doutrinários, ideológicos, religiosos, sociais, culturais, éticos e morais, mais ou menos apaixonados, envolvem personalidades representativas de diversos setores. As polémicas são travadas com argumentos que não se coíbem de recorrer a uma linguagem insultuosa que visa apoucar e achincalhar. São grandes, algumas vezes desmesuradas, as paixões envolvidas. Muitas delas encontram guarida nos órgãos de informação. Os próprios jornais estariam interessados, em nome de valores que dizem defender – e da conquista de audiências –, em alimentar polémicas e disputas. Há ocasiões em que a troca de "insultos" vai além das ofensas verbais e acaba nos tribunais e em confrontos físicos, o que também é habitualmente reportado.
Em Bragança, na imprensa local, há muitos exemplos. Aparecem textos extremados. São conhecidos, por exemplo, casos que agitam profundamente a opinião pública brigantina: basta lembrar os “folhetins” do Seminário e do bispo. As questões religiosas aqueciam verdadeiramente os ânimos – o que já se verificava, como vimos, antes do 5 de Outubro de 1910.
Respigámos, apenas, alguns exemplos que nos parecem ilustrar o que teriam sido essas polémicas. Não constituem nada de novo, limitam-se a prolongar uma ambiência e uma "tradição" que já vinham da Monarquia Constitucional.
Uma delas, representativa do que acabámos de dizer, envolve personalidades muito conhecidas no meio, pelas suas atividades e desempenhos culturais, políticos e cívicos. A primeira peça é uma terrível diatribe contra Raul Teixeira, assinada por Augusto Moreno: “Doeu-lhe” – "O meu último artigo, Olho neles!, não visava cavalheiros de Bragança, que, filiados embora no Partido Progressista, no Regenerador ou no Franquista, não colaboraram nos banditismos do Crédito Predial, nas chapeladas da Azambuja ou nas truculências infames da ditadura...
O inofensivo artigo foi mal interpretado… Quando ataco, posso usar de estadulho, à trasmontana, mas não atiro pedradas nem escondo no bolso navalha de ponta e mola.”
“Eu nem sequer me referia ao sr. Raul Teixeira, acostumado como estou a fazer de conta que não existe este grotesco Quasimodo. Quasimodo, com cartas de bacharel, prendas de arlequim e talhe de abóbora porqueira.
Reparo, contudo, que no meu artigo há uma carapuça que o tipo enfiou até às orelhas e que lhe assenta à maravilha. É uma coincidência, mas feliz. Por isso, o bípede se torce e escoicinha! Doeu-lhe! Foi aquela ferroada dos que 'assinaram manifestos incendiários e depois se fizeram lacaios da Ditadura'. É que ele, realmente, foi dos tais”.
“Se ao escrever me tenho lembrado do sujeitório, quando me referi aos que 'furaram urnas', não deixaria também de aludir aos que 'furaram greves', sabido como o estudante R. Teixeira atraiçoou infamemente os seus colegas de Coimbra, quando foi da greve de 1907, se bem me recordo”.
Dos partidos monárquicos pode salvar-se muita gente honrada, mas na Monarquia como na República, a felonia, a rasa baixeza de caráter há de sempre marcar a face cínica dos Rauis Teixeiras com o estigma dos renegados. Caluniador, traiçoeiro, ele é ainda … tão inepto que há dois anos, na Monarquia, acusava-me aos poderes públicos de republicano, e hoje, na República, acusa-me de monárquico! O trapalhão! Falar nele causa-me a mesma repugnância que bulir num sujo trapo apodrecido… Mas é preciso. Não vá julgar a alimária que lhe tenho receio aos pinotes".
Numa linguagem e com um "estilo" que vêm do século XIX – como é sabido, talvez se possa falar mesmo numa "escola", que tem, aliás, grandes cultores –, não há aqui contemplações. Acusa-se, ridiculariza-se, achincalha-se.
Os ataques vão conhecer novos desenvolvimentos… No artigo “Fugindo”, em A Pátria Nova, Augusto Moreno continua a zurzir Raul Teixeira, a quem acusa de querer abandonar a peleja; aliás, é a "fuga" que dá o mote. O tom não esmorece. "O que eu não cuidei foi que me bastassem duas ripadas para o estatelar esquadrilhado na calçada. O covarde! Caso é que eu agora envergonho-me de continuar a castigá-lo no chão". Prosseguem as invectivas achincalhantes: "Embora deitado ou de pé a posição lhe seja sempre a mesma… eu tenho melindre em lhe bater assim, abaixo derreado como se me deixou ir, logo aos dois primeiros pontapés. E mais foram em sentido metafórico! Que faria se lhos tenho aplicado em sentido e em sítio próprio!"
“'Cabotino' e dissimulado, com 'linguagem de estrebaria', 'arma em vítima e, tendo feito o mal, faz também a caramunha'… Isso de 'chicotes', 'varões', 'carroças', ‘retrancas', etc., são lá belezas do seu estilo, e objetos muito da sua toilette e do seu uso. Pertencem-lhe e… ficam-lhe bem". O que se deixa dito, com cinismo e uma linguagem desapiedada, pressupõe, como se pode ver, que tinha havido uma resposta de Raul Teixeira.
Depois, com incisivo sentido de humor, vai perguntando e, simultaneamente, insinuando: "É calúnia, por exemplo, que Raul Manuel se tenha metido com as pessoas que enumerei no meu artigo anterior e com muitas mais, que por esquecimento omiti, como por exemplo o sábio e modesto Abade de Baçal, os doutores Rapazotes, os honestos e inofensivos senhores Passos da antiga Rua dos Oleiros? É calúnia que Raul Manuel tenha assinado manifestos republicanos incendiários? É calúnia que Raul se tenha mesmo alistado no Partido, traindo-o depois?”
E volta a lembrar que aquele aderira à greve dos estudantes de 1907, e que a teria furado; e que, quando João Franco “sovou o País”, serviu-o “como lacaio, na usurpação dos cargos municipais”.
Continua a ladainha: "É calúnia que tivesse desafiado um dia Armando Rocha, levando dele bengalada bravia, e recorrendo depois para os tribunais, apesar de ser o provocador? É calúnia tudo isto, ou é absolutamente verdade?"
Os factos – como assevera – provam o que diz. "São os factos que provam que eu nunca andei em politiquices, nem em tramoias, nem em tranquibérnias. São justamente os factos que provam que nunca furei urnas, nem greves, que nunca fui venal, nem trampolineiro, nem covarde... São justamente os factos que provam que, para conservar a integridade moral, tenha mais de uma vez posto em risco o pão de seis crianças que vivem apenas do trabalho de seus pais".
"E sou eu que lhe digo, para terminar…, que também me parece que a nossa questão se não dirimirá nos jornais…" Vem a ameaça: "porque professor de ginástica a sério e ainda leve apesar dos 40, há dois anos (desde que me provoca) que me lembro de lhe fazer o que um dia fiz a outra cucurbitácea…".
Nestes ambientes, com o “caldo cultural” existente, e em função do que por vezes se passava, as palavras nuas e cruas, como sugerimos, não eram suficientes. Há ameaças físicas que, nalguns casos, se concretizam. Uma notícia que relata o que teriam sido as "Polémicas à tareia": em Macedo de Cavaleiros, "o denodado farmacêutico de reserva sr. Morais arvorou a vistosa fardamenta da durindana, zurziu feramente um reverendo que com ele questionara na imprensa".

Título: Bragança na Época Contemporânea (1820-2012)
Edição: Câmara Municipal de Bragança
Investigação: CEPESE – Centro de Estudos da População, Economia e Sociedade
Coordenação: Fernando de Sousa

Sem comentários:

Enviar um comentário