segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Património - «O nosso país tem descurado o legado da cultura imaterial»

Alexandre Parafita, docente na Universidade de Vila Real de Trás-os-Montes (UTAD), lançou recentemente o alerta sobre o risco de perda de um património imaterial específico em Portugal, como lendas, lugares de memória e rituais esquecidos e que resistem sobretudo nas regiões rurais do Interior. «Desaparecendo os seus intérpretes naturais, este património extingue-se pura e simplesmente», lamenta o autor da obra «Património Imaterial do Douro - Narrações Orais».
O especialista e investigador na área do património cultural justifica as suas preocupações com as «alterações céleres do modo de vida moderno», o abandono da vida rural e «o desenraizamento das novas gerações» em relação às suas referências culturais e que considera «agravadas com o desaparecimento das franjas da população que se têm assumido como «guardiãs da memória e da cultura imaterial».

Muitos desses intérpretes, a que Alexandre Parafita designa por «tesouros vivos do património» são pessoas bastante idosas, residem em lares de Terceira Idade e «irão levar com eles, quando partirem de vez, o saber e o conhecimento que trouxeram das gerações precedentes». E dá exemplos: «Veja-se como muitas das lendas estão ligadas a topónimos, a lugares de memória e a rituais hoje esquecidos, transformados ou extintos, pelo que, desaparecendo os seus intérpretes naturais, este património extingue-se pura e simplesmente».
Alexandre Parafita refere que é nas regiões rurais do Interior que este património está mais activo. «Os meios urbanos estão descaracterizados a todos os níveis. Nos meios rurais é onde resiste todo um conjunto de manifestações associadas a rituais festivos, às crenças do sobrenatural, à mitologia popular, aos cancioneiros e romanceiros, danças e jogos tradicionais, medicina popular», explica.
E lembra que é também nos meios rurais que persistem «as interpretações da memória oral sobre a história e o património monumental e arqueológico, que tantas vezes funciona como o único guião para hoje se poder chegar a muitas descobertas valiosas».
E não hesita em considerar que «o nosso país tem descurado o legado da cultura imaterial». Recorda, por isso, que «o Governo não mexeu uma palha quando, há dois anos atrás uma equipa de estudiosos galegos e portugueses, propôs fazer um trabalho exaustivo com vista a uma possível classificação deste património» junto da UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura)», critica.
«A modernidade é implacável»:
O professor da UTAD recorda que os trabalhos agrários e os ritos de religiosidade alteraram-se e, com eles, toda a literatura oral que os ritmava.

«Contra isso nada a fazer. A modernidade é implacável». Contudo, sublinha que isso não invalida que se possam recuperar em pólos museológicos todos os testemunhos activos, ou a realizar os ritos solsticiais e outros que possam integrar os mais novos «nesta energia identitária».
«Para além disso tudo, é essencial realizar as pesquisas criteriosas e os estudos necessários sobre esta riqueza que se vai perdendo. Sem ela, a nossa sociedade está a definhar culturalmente, embora mantenha uma aparência ilusoriamente culta», acrescenta.
E dá mais exemplos: «nos dias de hoje, os meios políticos, urbanos, mediáticos, usam correntemente expressões como “não sair da cepa torta”, “aqui é que a porca torce o rabo”, “nem sempre diz a bota com a perdigota”, “todos ao molhe e fé em Deus”, “tirar o cavalo da chuva”, “trazer água no bico”, “cair no conto do vigário”, “burro morto, cevada ao rabo”, “salvar a honra do convento”».
«E quantas pessoas é que conhecem a origem destas expressões?», questiona, lembrando que estas saíram de lendas e contos populares que o povo bem conhece e que estão a perder-se com o desaparecimento dos narradores da memória.
«Criou-se o hábito de que tudo tem de ser feito à custa da carolice de alguns. Mas não pode ser. É preciso visitar aldeias, lares de terceira idade, registar testemunhos, fotografar espaços naturais e culturais da paisagem, lugares de memória, e criar, por exemplo, roteiros de lugares de memória para um turismo cultural emergente», sintetiza.
E lamenta que os museus não tenham meios financeiros para trabalhos desta natureza. «E isto só acontece em Portugal, pois em outros países não é assim. Basta ir aqui ao lado, à vizinha Galiza, onde o panorama é radicalmente diferente. E não se pense também que, ao ser classificado o fado como Património Mundial, se resolve alguma coisa do que lhe disse. O fado tem a importância que tem, mas representa uma cultura marcadamente urbana e alfacinha, e está de boa saúde, com a salvaguarda assegurada pela proliferação de casas de fado e dos novos fadistas que abraçam a carreira», critica.
Sobre o papel do Estado português, Alexandre Parafita lamenta que a cultura «seja sempre o elo mais fraco na cadeia de prioridades». «Quando é preciso cortar, é logo na cultura que se começa. É sempre uma dor mais silenciosa. E quando se trata de um património intangível, frágil nos seus suportes, mesmo que nele more a alma e a identidade de um povo, ainda mais fácil é ignorá-lo e destruí-lo», lastima.
E acrescenta que Portugal vive tempos «muito desanimadores. É triste termos de reconhecer que o regime de Salazar fez mais pelo património imaterial que qualquer dos governos democráticos. Deu todas as condições a Leite de Vasconcelos, nos anos 30 do século passado, para que realizasse a obra monumental que levou a cabo no país e que lhe permitiu fazer o vasto levantamento da nossa Etnografia», frisa.
Nesta linha de raciocínio, termina, questionando: «que seria hoje da nossa memória cultural se esse trabalho não existisse? Deu todas as condições a etnólogos como Pires de Lima para que erguessem o Museu de Etnografia e História do Douro Litoral que fez a recolha de milhares e milhares de documentos e testemunhos de património imaterial de que as várias dezenas de volumes das revistas “Douro Litoral” e “Revista de Etnografia” são um excelente repositório. E hoje? Nos últimos anos? Que condições são dadas aos investigadores, aos etnólogos, para fazerem o trabalho que é urgente realizar?», conclui.


Ana Clara
in: cafeportugal.net

Sem comentários:

Enviar um comentário